Nascida e criada em Três Rios, a 130 quilômetros do Rio de Janeiro, Letícia viveu até os 16 anos sem ouvir da avó paterna um elogio sequer sobre sua beleza. Até então, a atriz era considerada a "neta mais feia entre os milhares de primos". Anos de análise foram necessários até ela se aceitar e gostar do que vê hoje no espelho. E atualmente, garante, acha graça da história.

"Ela tem muitos netos e cada um tinha uma característica. Eu, por acaso, era a mais feia. Hoje eu e um primo muito próximo conseguimos rir disso. Quando fiz 16 anos, ela falou para mim, superfofa: 'Até que pra neta mais feia você ficou bonita'. Foi o que ela conseguiu fazer", ri.

Letícia faz questão de que sua maquiagem não seja muito carregada. Revela preferir se ver ao natural. E ser vista também.

Manda até fotos ousadas sem qualquer "tapa no visual".

"Quando é preciso ir a algum lugar, eu me arrumo para me sentir bonita. Mas quando estou comigo mesma, eu não gosto de ver tudo isso [aponta para seu rosto pintado]. Eu acho que é um resgate dessa Letícia, dessa criança que não se achava bonita e tudo mais. Então, quando chego em casa à noite, depois do trabalho, quando tiro a maquiagem toda e tomo banho para dormir, me acho linda. No momento que estou mais inchada, me acho linda. E mando nude sem make."

"A personagem da Letícia Lima em 'Amor de Mãe': bunda, bunda, mostrar a bunda 5 minutos por semana, sexo, bunda, sexo, sexo, calcinha, lingerie, bunda", escreveu um internauta revoltado no Twitter. "A Letícia Lima nessa novela só serve pra ficar andando de calcinha dentro de casa?", questiona outro seguidor.

De fato, a Estela da novela das nove já apareceu com uma infinidade de lingeries — lindas, aliás — e fazendo sexo com três parceiros diferentes. Mas também procurando emprego, trabalhando numa lanchonete, comendo, bocejando, tomando banho, como todo ser humano faz (inclusive quem escreve comentários machistas nas redes). Para quem tem dúvida: ela não está incomodada com as cenas.

"Não me incomoda. Eu faço uma novela extremamente realista. É totalmente condizente com a minha personagem a maneira como ela se comporta em casa ou como ela está vestida fora dela. De fato, o machismo é uma coisa completamente enraizada na nossa cultura. Surpreende ainda como isso chama muita atenção. Porque ela tem milhares de cenas que não são de lingerie em casa, mais até do que de lingerie. E aí as que chamam mais atenção são essas. Então está nos olhos de quem vê ou de quem está fazendo?".

Vai ter mais Letícia de calcinha, sim.

Filha de cozinheira e funcionário público, Letícia trabalha desde os 14 anos. O primeiro emprego foi com animação de festa infantil. Também atuou como vendedora de loja para bancar sua mudança para o Rio de Janeiro, aos 18. Hoje, morando sozinha no seu próprio apartamento, na Zona Sul da capital carioca, identifica-se com a independência da piloto de avião Estela.

No entanto, diagnosticada com depressão e há anos fazendo análise, a artista vê-se completamente distante da fragilidade emocional da personagem. Na trama global, Estela mantém um caso com Tales (Alejandro Claveaux) e Álvaro (Irandhir Santos) e teve um relacionamento tóxico com Raul. O personagem de Murilo Benício era casado enquanto encontrava Estela — que, no fim da relação, desenvolveu uma obsessão por ele.

"Ela tem uma fragilidade, eu diria, emocional, muito grande, que faz essa mulher perder completamente toda a sororidade", afirma a atriz sobre Estela. "Ela não só não tem filtro como não tem limite quando ama alguém ou acha que está apaixonada", Letícia avalia, e logo admite: "Já me perdi por amor, mas não nesse sentido".

Em sua vida, a atriz acrescenta, não há espaço para uma relação a três.

"A gente pode se apaixonar? Pode. Mas não é ok ficar com homem casado. Eu acho que ela até tem um pouco de consciência de que isso não é legal, mas ela não consegue fazer diferente disso. Não me aconteceu nada parecido, mas acho que é porque faço análise há muitos anos. Quando percebo uma situação que vai me colocar num lugar que não seja confortável, levo para a terapia."

Letícia casou-se duas vezes. Ficou oito anos com o diretor Ian SBF, um dos criadores da produtora "Porta dos Fundos", e morou cinco anos com a cantora Ana Carolina. Desses relacionamentos, boas lembranças. De outros mais antigos, a lição de como identificar relacionamentos tóxicos.

"O mais comum que já aconteceu comigo, até mais de uma vez, foi me anular do convívio social, deixar de sair, ou não me aprofundar numa amizade porque poderia causar ciúme", admite. "Esse tipo de coisa a gente demora um pouco a perceber quando é mais jovem. Pelo menos foi assim comigo. A agressão física nunca chegou, mas uma agressão emocional ou um pouco de manipulação, sim."

Para sair de um namoro ruim, ela lembra, chegou a ficar anos na análise — e por isso destaca a importância para a mulher em ter uma rede de apoio.

"Sou muito privilegiada. Tive muita sorte porque eu sou muito bem informada e consegui, antes que a coisa ficasse muito mais grave, procurar uma análise — o que a maioria das mulheres não consegue fazer. Não é um serviço disponível para todo mundo. De qualquer maneira, sua rede de apoio é o que mais ajuda. É mãe, a família, a melhor amiga, alguém que está perto e dá um toque. É uma avó que nota alguma coisa e que fala."

Em fevereiro de 2017, Letícia Lima estampou a capa de uma revista em que contava pela primeira vez, e de forma muito natural — como deve ser —, sobre seu namoro com a cantora Ana Carolina. Dois anos depois, foi a vez de o casal Nanda Costa e Lan Lahn falar abertamente sobre sua relação em outra publicação. As atrizes Bruna Linzmeyer, Vitória Strada, Camila Pitanga e Alice Braga e a cantora Ludmilla também já se pronunciaram sobre seus relacionamentos homoafetivos em entrevistas.

Conclui-se disso que parece mais fácil para as mulheres falarem sobre sua sexualidade. É mesmo?

"É um assunto que gera muito medo, principalmente em pessoa pública", acredita Letícia. "Pelo menos é o que eu noto nos meus colegas. Estamos evoluindo, mas é um país ainda muito preconceituoso. E as pessoas têm medo de perder oportunidades, de serem julgadas, apontadas, de perderem dinheiro, contrato ou publicidade por conta da sexualidade. Eu entendo, mas não acho que seja mais difícil ou mais fácil para homens ou mulheres, não."

Letícia não teve medo, e os trabalhos continuaram chegando.

"Eu nunca escondi a minha relação com ela [Ana Carolina]. Aconteceu de uma forma linda. E, depois de falar sobre o assunto na capa de uma revista, muitas começaram a falar sobre a sua vida sexual. Não vejo outra alternativa melhor do que a transparência", ela decreta, antes de revelar não ter ficado — ainda — com outra mulher.

"A química é uma coisa incrivelmente maravilhosa, e ela pode bater com qualquer pessoa. Não me senti atraída por outra mulher, mas pode ser que aconteça. Eu só me sinto aberta, me sinto livre. Não é uma uma escolha, no sentido de só vou olhar por aqui ou só vou olhar por ali."

No vídeo de estreia do canal "Anões em Chamas", publicado há nove anos no Youtube, a personagem Amanda dá dicas para esconder os hematomas provocados por uma violência doméstica, como carregar na maquiagem. E decreta: "Provavelmente, se o marido te bateu, foi porque você mereceu". Nos dias de hoje, em que a cada 2 segundos uma mulher é vítima de violência física ou verbal, segundo o Instituto Maria da Penha, é bem capaz que a personagem machista de Letícia Lima sofresse alterações. Mas ela, que já atuou no "Porta dos Fundos", pondera: liberdade de expressão é fundamental, apesar dos temas delicados.

"A Amanda era justamente uma sátira ao machismo", afirma. "Acho que o humor é muito generoso, muito democrático nesse sentido. Foi superválido [fazer a personagem] para levantar essa questão toda, numa época que a gente falava muito pouco disso. Hoje, como tudo que tem uma evolução, acho que o texto e o vídeo da Amanda poderiam se modernizar, melhorar."

Antes do Natal, o canal Porta dos Fundos, do qual Letícia fez parte, lançou um especial sugerindo que Jesus fosse gay, provocando a ira de fiéis. Por causa do vídeo, disponível no "Netflix", a sede do grupo, no Humaitá, Zona Sul do Rio, foi alvo de um ataque com coquetéis molotov. Afinal, vale mexer com o deus de alguém?

"Primeiro, eu acho que a liberdade de expressão é fundamental", diz. "Acho que tem os seus limites. É muito tênue, porque para cada um esse limite varia. É um dos motivos pelos quais não sou autora ou diretora, porque eu sempre esbarro nesses limites. Sou uma atriz autoral, gosto de improvisar, de criar. Tenho a questão: é deus deles, é meu, seu ou de todo mundo? Então é delicado mesmo. Agora, repudio totalmente o ataque. A violência não se justifica de maneira alguma."

Nem nas perguntas mais íntimas Letícia suspira ou para pra pensar no que vai responder. Mas, instada a falar se as mulheres estão bem representadas no governo Bolsonaro, o tempo fecha mais do que o dia chuvoso que fazia lá fora.

"Não! É um momento tão difícil para a gente falar disso...", diz. "É um momento de retrocesso no governo. Às vezes eu acho que não é possível. Deve estar acontecendo essas coisas para camuflarem alguma outra coisa, como o caso 'meninas gostam de rosa, meninos de azul'. Porque é tudo tão grave que tem hora que parece que estão fazendo uma grande piada com a gente", ela analisa, citando a frase da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves. No dia da sua posse, em janeiro de 2019, um vídeo circulou na internet em que a política afirmava que era inaugurada uma "nova era" no país, em que "menino veste azul e menina veste rosa".

"Como chegou a esse ponto? Eu acho que as mulheres não estão bem representadas. Nem os homens. Ninguém está bem representado."

Letícia ainda não era uma figura pública quando diagnosticada com depressão, mas falava abertamente sobre a doença com familiares e amigos. Para ela, nunca foi um tabu, e nem deveria ser. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a doença afeta 322 milhões de pessoas no mundo. E cientistas da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, mostraram recentemente que as mulheres têm duas vezes mais probabilidade de ter depressão do que os homens.

"Quando fui diagnosticada, me deu um alívio. Falei: 'Então é isso: tenho depressão!'. Queria que todo mundo já soubesse, de cara. E acho importante mesmo falar, porque é muito comum. É uma doença que angustia muito e ainda há um tabu na sociedade. Tem que botar para fora, falar sobre si, normalizar a doença."

Ela conta que passa um período sem medicação. "Mas isso tudo muito acompanhado. Não pode ser uma coisa que você vá uma vez no terapeuta. Não dá", afirma. "Tem que ser feito bem certinho, porque no caso da depressão é uma coisa química, então a medicação serve para balancear essa química e te colocar no lugar. Já entrei em crises horríveis e nunca passei do ponto. Até porque, quando entro numa crise muito grande, é um vazio existencial. Não é tipo: vou tomar muito remédio para acabar com isso. Tanto faz. Não faz diferença, tomar muito, tomar pouco. Pelo menos é assim que se dá comigo."

Ouça a íntegra da conversa com Letícia Lima no podcast UOL Entrevista. A entrevista completa em vídeo está disponível no canal do YouTube do UOL.