"Agora eu sou inspiração"

Ludmilla se reconhece como ícone para pretas e lésbicas e fala de encontro com Deus

Luiza Souto de Universa, em São Paulo Rodolfo Magalhães/Divulgação

"No início da carreira eu chorava porque só queria ser aceita. Depois que eu percebi a importância de ser empoderada, ninguém pode mais me parar", decreta Ludmilla. De nascer na Baixada Fluminense, uma das regiões onde mais se executa jovens negros no Rio de Janeiro, até virar a primeira cantora negra da América Latina a alcançar mais de 1 bilhão de streams somente no Spotify foi uma estrada longa para Lud: não só profissional mas também pessoal.

Lud cresceu num cenário em que poucas mulheres negras ascendem socialmente e hoje tem total consciência que sua história é exemplo. "De onde eu vim, praticamente a gente não tem muita esperança. Agora estou aqui, e eles têm inspiração", fala a cantora que também acumula números de impacto no Youtube (mais de 1 bilhão de views) e Instagram (22,7 milhões de seguidores), além de indicações em todas as grandes premiações de música brasileiras e até ao Grammy Latino.

Ela também representa outra minoria. Casada com a dançarina Brunna Gonçalves desde dezembro de 2019, Ludmilla diz que ouviu um chamado de Deus para representar não só as mulheres negras mas as lésbicas e bissexuais. "Sou representatividade por onde quer que eu passe. Até sem falar nada, sentada numa cadeira perto de um bando de gente padrão, já estou ali representando. Tomei posse disso", afirma.

A cantora acaba de lançar o single "Rainha da favela" no qual presta uma homenagem a outras mulheres que, como ela, tem origem humilde e apostaram na música para mandar sua mensagem ao mundo. "Aqui é só trabalho lindo", canta. O clipe traz grandes nome do funk como Taty Quebra Barraco, Valesca Popozuda, MC Kátia A Fiel e MC Carol de Niterói para representar as inspirações de Lud.

Para abrir a semana em que se celebra o Dia da Consciência Negra, na próxima sexta-feira (20), Universa conversou com Ludmilla sobre carreira, racismo, religião, amor e até filhos - ela e e Brunna planejam embarcar na maternidade em breve.

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O meu lugar

Quando Ludmilla nasceu, Duque de Caxias figurava entre os municípios mais perigosos do país, e já teve o índice de mortes entre jovens de 12 a 18 anos maior que a média nacional. O cenário não mudou muito 25 anos depois, mas hoje a artista destaca que agora seus conterrâneos têm uma referência para acreditar que podem ser exceção a uma regra tão negativa.

"Olho para meu passado com muita admiração e determinação. De onde eu vim a gente praticamente não tinha muita esperança. Eu não tinha referência nenhuma para chegar onde estou, tanto que fui buscar [inspiração nas cantoras] Beyoncé e Rihanna, lá de fora, porque a música que eu faço é muito diferente das coisas que a gente já tinha visto por aqui. Agora eles têm inspiração, uma luz no fim do túnel. E isso eu ouvi deles", fala, referindo-se aos jovens que moram hoje na periferia do Rio de Janeiro.

"Foi tudo muito difícil. Saí de um lugar sem muita perspectiva de vida para virar uma das pessoas mais famosas do seu país, ser respeitada, estar na televisão, ter premiação internacional."

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"Ninguém pode mais me parar"

Injúria racial e racismo são crimes com penas de até três anos cada. Ludmilla sabe disso e inclusive já registrou ocorrências por ataques que sofreu. Mas ela nem sempre teve esse entendimento. A artista, que começou a cantar aos 8 anos, lotava bailes funk aos 16 como MC Beyoncé e assinou com uma gravadora aos 20, diz que até o tom da pele pensou em mudar para tentar se enquadrar.

"Você sabe que o racismo tem essa função, né? De sempre fazer a gente se sentir mal, de querer trocar as partes do corpo para alguém te aceitar, de pensar em ter outra cor. No início, quando começam a fazer isso com você, essa é a primeira coisa que a gente pensa: se diminuir para caber na caixinha deles. Esse pensamento passou por mim várias vezes."

Mas como bem canta Beyoncé, uma das divas de Lud, na potente "Apeshit", é melhor a plateia aproveitar, porque ela conseguiu.

"Várias vezes, no início da minha carreira, eu chorava porque só queria ser aceita. E para isso, precisava ser que nem eles. Tinha que ter um tom de pele mais claro, meu nariz tinha que ser mais fino, minha boca também. A minha fala tinha que ser diferente. E isso não era eu. Eu vim da Baixada, sou negra, tenho os traços negros, sou assim. Quem gostar de mim, tem que ser do jeito que eu sou. E depois que percebi a importância de ser empoderada, depois que senti a minha força, amor, ninguém pode mais me parar a não ser aquele que está lá em cima."

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Encontro com Deus

Ludmilla sempre foi uma pessoa de fé e diz que sempre soube da existência de Deus. Mas no ano passado uma experiência fez essa relação se ressignificar e tomar uma grande importância na sua vida. Ao mesmo tempo em que se lançou no mercado internacional e gravou com a rapper americana Cardi B, Ludmilla teve uma inflamação séria na coluna e precisou cancelar shows. Ela chegou a não conseguir andar. E foi neste período, conta, que aconteceu seu entrosamento definitivo com sua fé e cura para suas dores físicas e psicológicas.

"Eu estava deitada na cama, ele brotou na minha frente e falou: 'Vi que você queria me conhecer, e estou aqui para te levantar desta cama!", narra. "A minha força vem toda de Deus, que mantém a minha base para não surtar. Quando acontecem fofocas com meu nome, quando começam a me ofender pela pessoa com quem estou casada, pela cor da minha pele, pela música que eu canto, quando o 'salseiro' está pegando com meu nome e minha família, é só Deus. Minha união com Ele me mantém estável".

E para agradecer a "esse cara tão fenomenal, mesmo eu sendo a maior pecadora", foi que ela tomou como missão apresentá-lo ao maior número de pessoas possível. Assim, criou uma célula religiosa (grupo que realiza estudos da Bíblia) com seu nome: a Big Célula da Ludmilla, que reúne centenas de pessoas uma vez por mês para falar de Deus. Ela afirma que aceitou a missão de levantar bandeiras e ser a voz da — ainda — considerada minoria.

"Deus já tinha me revelado isso. E eu falei: 'Não! É impossível. Sou a maior torta, nem falo bem, não tem como representar as mulheres negras, as bissexuais. E ele falou: 'Eu te escolhi pra isso, amor'. Aí vesti a camisa. E agora eu sou isso, entendeu? Eu sou representatividade por onde quer que eu passe. Até sem falar nada, sentada numa cadeira perto de um bando de gente padrão, já estou ali representando. Tomei posse disso."

Eu sou representatividade por onde quer que eu passe.

Ludmilla

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Rainha que chama?

Dona de sua própria carreira após romper parceria de sete anos com o empresário Alexandre Baptestini, Ludmilla diz que hoje, enfim, está conseguindo executar tudo que planejara para sua vida. E essa independência tem a colaboração de mulheres poderosas, algumas delas homenageadas no recentemente o hit "Rainha da Favela", escrita em parceria com Cabrera, com quem também trabalhou em "Tua raivinha", e Pablo Fierro.

No clipe, gravado na Rocinha, maior comunidade do país localizada na zona sul do Rio, quatro dos maiores nomes que compõem a realeza do funk fazem uma espécie de passada de coroa simbólica: Taty Quebra Barraco, Valesca Popozuda, MC Kátia A Fiel e MC Carol de Niterói.

A realeza de Ludmilla

Arquivo pessoal

As principais rainhas da minha vida são a minha avó e a minha mãe. Eu cresci e levo a vida do jeito que aprendi com elas. Elas são muito guerreiras, otimistas. E não param em qualquer barreira, em qualquer pedra que jogam nelas. São 'raçudas', e isso me fez muito forte para encarar o mundo que eu resolvi viver. Não é nada fácil , ainda mais por ser uma mulher negra, periférica, que canta funk e bissexual. E tendo essa base dentro da minha casa, isso me empodera e me dá força para seguir.

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Saindo de dentro de casa vem logo a minha diva Beyoncé. Tem a Rihanna também. E tenho outras várias insipirações: cresci ouvindo Alcione no pagode, Tati Quebra Barraco no funk. A Valesca [Popozuda], de quem depois acabei virando amiga, a Carol de Niterói, que tem aquela voz potente, a MC Kátia... São todas da comunidade, todas maravilhosas, funkeiras. Escolhi esse time para representar todas as funkeiras e as mulheres guerreiras e maravilhosas.

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Sabe o amor?

Bissexual, foi somente em meados de 2019 que Ludmilla assumiu pela primeira vez manter relacionamento com mulheres, ao anunciar namoro com a bailarina de sua equipe Brunna Gonçalves, 28. As duas se casaram em dezembro passado, e a cantora já avisou que não vai demorar para terem filhos, apesar do receio sobre o preconceito que a criança poderá enfrentar num mundo em que ainda não se entende que o amor é diverso.

"Ainda tem muita coisa para mudar. Mas a cabeça que eu cresci, que meus amigos estão crescendo, já é diferente. Eu acho que a geração dos nossos filhos já vai estar uma parada muito melhor. Extinguir do mundo o racismo e o preconceito é impossível, mas com nossa geração unida e aprendendo, nossos filhos virão numa época boa", fala ela, após se derreter no sofá de sua casa, na Ilha do Governador, pela companheira. "Sabe como é você não conseguir explicar o amor? Então. Tipo isso. Só sei viver e é maravilhoso estar com ela. E ela me ajuda muito. Sabe aquelas pessoas que edificam o lar? É ela. A Bruna sempre quer que eu seja a melhor no que eu possa ser."

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Privilégio por não ser assediada hoje

Rebolar de roupa curta e cantar "Tô livre e solteira na pista" não dá o direito de acharem que a mulher é propriedade de alguém. Mas muito homem não entende isso, e já aconteceu de um dono de uma rádio, por exemplo, passar a mão na bunda de Ludmilla, quando ela tentava alcançar a fama apenas com o seu trabalho.

A cantora diz que ainda sente olhares abusivos, de como se fosse objeto, mas se considera privilegiada por andar com segurança e no seu carro, evitando qualquer tipo de assédio. Apela para os homens ouvirem mais as mulheres, e se mostra indignada com o caso Mari Ferrer, que tomou conta das notícias recentemente.

"Os homens têm que abrir mais a mente deles e começar a dar ouvido para as mulheres, não achar que tudo é 'mimimi'. Porque é chato passar na rua e parece que você é um pedaço de frango ali rodando na padaria em dia de domingo. Graças a Deus agora sou meio que privilegiada de não estar nesses lugares por andar com segurança e no meu carro, diferente das minhas amigas".

"O que aconteceu com essa menina [Mari Ferrer] foi de uma baixaria, de uma maldade, que não tem tamanho. Eu fiquei passada como existem pessoas assim ainda na vida. É um grande caminho que a gente tem para lutar, porque a coisa ainda é pesada, mas a gente está cada vez quebrando mais esse tabu e se impondo mais."

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