'Era bomba por todo lado!'

Refugiadas da guerra na Ucrânia enfrentam violência, viagens a pé e racismo para fugir das zonas de conflito

Nina Lemos (texto) e Tuca Paoli (fotos) De Universa, em Berlim Tuca Paoli/UOL

Cinco dias. Foi o que a estudante de farmácia Jessica Abu, 23 anos, levou para conseguir sair de Kiev, capital da Ucrânia, e chegar a Berlim, na Alemanha. São 1.350 quilômetros de distância, mais ou menos como São Paulo e Porto Alegre. Cinco dias.

Passei noites em abrigos, era bomba por todo lado. Só tive tempo de pegar algumas coisas e fugir.

Com três amigos, ela pegou um táxi de Kiev para Liev, perto da fronteira da Polônia. Mas, ao chegar lá, eles foram impedidos de passar pela polícia. "Não conseguimos porque somos negros. Foi coisa da polícia da Ucrânia e da polícia polonesa. A gente teve que voltar andando e tentar pegar um trem. Eu estava com meus amigos homens, que são como irmãos. Então, o que fizeram? Me deixaram embarcar, e não deixaram eles. Foi muito difícil."

Jessica é uma das muitas estudantes nigerianas que foram fazer universidade na Ucrânia —existia um convênio entre os países— e se viram ameaçadas pela guerra.

Nos últimos dias, pipocam denúncias de que estudantes negros estão sendo barrados na fronteira com a Polônia. Ela confirma: "Para a gente fica muito mais difícil sair". Ela morava na capital Kiev, onde, de um dia para o outro, se viu tendo que fugir de bombardeios.

Na manhã de quarta-feira, finalmente em Berlim, Jéssica esperava pelos amigos, aliviada. "Eles já me mandaram mensagem, estão no trem e chegam às 15h."

Quanto ao futuro, ela diz que pensa em ficar na Alemanha. "Quero continuar meus estudos de farmácia. Mas agora o que eu realmente preciso é de um lugar para descansar."

'A polícia estava sendo muito agressiva'

Desde o início da semana, Berlim viu, de um dia para o outro, o número de refugiados da Ucrânia quadruplicar. Na quarta-feira, mais de 6.000 pessoas desembarcaram na cidade, chegando de trem. Outras mil, de ônibus. Em sua maioria, mulheres. Muitas com crianças no colo, carregando o que conseguiram de uma vida que ficou para trás. Desde a semana passada, homens entre 18 e 60 anos são proibidos de deixar a Ucrânia e convocados a lutar.

Miriam Lumen, 21 anos, do Congo, também era estudante universitária na Ucrânia e teve que sair do país às pressas.

A polícia estava sendo muito agressiva. Alguns homens precisaram esperar lá por três dias. Não queriam deixar os meus amigos saírem porque o presidente baixou uma ordem de que homens jovens não podem deixar o país. Mas, escuta, como eles iam ficar e lutar por um país que nem é o deles?

A estudante conta que a situação é péssima. "Era assustador saber que eles [os russos] iriam chegar a qualquer momento e podíamos ser bombardeados."

'Tenho lugar na minha casa'

Pouco depois de meio-dia, a situação no subsolo da estação Hauptbahnhof fica movimentada de repente. Muitas pessoas chegam, e os voluntários trabalham sem parar. Um trem vindo da Polônia traz cerca de 800 refugiados.

A capital alemã é conhecida por ser uma cidade aberta e receptiva. Vários grupos de Telegram tentam organizar o fluxo de voluntários, as necessidades de doação e transporte. Cidadãos também são convidados a oferecer suas casas. E muitos o fazem.

Um casal carrega um cartaz onde está escrito em russo: "Tenho lugar na minha casa". Os dois caminham ao lado de uma moça refugiada com seu filho bebê, que acabaram de conhecer.

Pelo telefone, uma amiga conta que seu namorado foi para a Hungria tentar trazer ucranianos que estariam sendo barrados na fronteira. Outra, avisa que vai oferecer um quarto.

A estação central de Berlim foi convertida em um campo de recepção improvisado. Há um setor de alimentos e um de produtos de higiene. A Cruz Vermelha montou uma tenda onde profissionais prestam os primeiros socorros a quem precisa. Há um estande de roupas e até um canto para as crianças, com lápis de cor, papel e canetinha. Os desenhos são pendurados.

Quem não tem para onde ir pode tomar o ônibus da prefeitura rumo a um dos centros de refugiados da cidade. Muitos novos estão sendo criados.

A assistente social Lena (ela prefere não dar seu sobrenome) tenta administrar a confusão com a chegada dos trens, ao mesmo tempo em que carrega seu cachorrinho amarrado no colo.

"Meu trabalho aqui é, junto de outras pessoas, coordenar a recepção dos refugiados. Fazer com que eles tenham comida, água, um descanso e também informações sobre para onde podem ir."

A consultora Angelina Leah, 26 anos, pediu uns dias de folga do trabalho para trabalhar como voluntária na estação, ajudando a receber os refugiados que chegam a Berlim.

Como muitos ali, ela nunca tinha sido voluntária na vida. "Veja o quanto eles precisam de ajuda. Nunca tinha feito isso antes, mas vou fazer o que for preciso."

'A gente não teve opção a não ser fugir'

Janna Yuska, 20 anos, andava pela estação abraçada à cachorra Emma. Ela saiu da Ucrânia com a mãe e o irmão adolescente, carregando três malas grandes e várias sacolas. Parte da fuga da família foi feita a pé.

Estávamos longe de Kiev. Mas em todos os lugares a situação está péssima, se deteriorando muito rápido. A estação de trem da minha cidade foi bombardeada. A gente não teve opção a não ser fugir antes que a nossa cidade fosse invadida.

A estudante diz que a viagem foi exaustiva e que chegou a pensar que não conseguiria sair do país. Diferentemente de tantos refugiados sem destino, ela planeja encontrar o pai, que vive em Paris.

"Precisamos agora conseguir pegar o trem para a França. Mas, antes, temos que descansar um pouco, arrumar um lugar para ficar por enquanto."

A mãe tenta falar algo, mas chora. "É muito difícil", murmura. "Minha mãe fica sentimental", diz Janna.

Janna estuda literatura francesa na Ucrânia. Sugiro que ela continue os estudos na França. A mãe, ainda emocionada, interrompe, firme e serena:

"Um dia, nós vamos voltar".

Tuca Paoli/UOL Tuca Paoli/UOL

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