Pausa na passarela

Pequenos estilistas contam como encaram a crise e mantêm o negócio vivo em meio à pandemia

Natália Guadagnucci Colaboração para Universa Divulgação

Um estudo da consultoria McKinsey & Company aponta que, antes da pandemia do coronavírus, 34% das marcas de moda enfrentavam problemas financeiros nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa. Depois da crise, com fechamentos das lojas por cerca de três meses, a previsão é de que mais de 80% das empresas do setor tenham que encarar dificuldades para se manterem vivas.

No Brasil, as perspectivas seguem incertas e desafiadoras, especialmente para as pequenas marcas e os criadores independentes, que não contam com grandes reservas financeiras ou apoio de investidores externos. Alguns deles, inclusive, estão lidando neste momento com o prejuízo do cancelamento da São Paulo Fashion Week, que, se não fosse a pandemia, estaria acontecendo neste momento.

O que faz uma marca resistir ou não a um momento de crise? Tentando desvendar uma resposta que está longe de ser simples, quatro nomes de destaque da moda brasileira, com negócios criados há no máximo 5 anos, relatam suas experiências diante destes tempos e suas perspectivas para o futuro.

Em comum, os diretores criativos acreditam em um modo de produção consciente, além de uma rede de apoio colaborativa entre as próprias marcas. Se pensar em roupa agora parece irrelevante, os estilistas acreditam que, mais do que nunca, a forma como consumimos vai assumir novos contornos sociais —e a moda, para fazer sentido, precisará estar ainda mais aliada à arte e a um propósito. A seguir, a palavra está com eles.

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Isaac Silva: diálogo com o tempo

"Fomos umas das primeiras marcas a fechar o atendimento presencial e parar a produção para entender o que estava por vir, o que afetou diretamente o financeiro, já que a marca é pequena e precisa contar com um mês para pagar outro. Quando fechamos, entramos no vermelho. Tínhamos planos de expansão para o Rio de Janeiro e Salvador, e estávamos prestes a apresentar nossa segunda coleção na SPFW. Quando voltarmos, vamos ter que começar do zero. Sem auxílio do governo, fica tudo ainda mais difícil.

A roupa ainda é uma compra essencial, pois mexe com a autoestima das pessoas. Com descontos e vouchers, conseguimos manter as vendas. Sinto que as pessoas ficam felizes de poder comprar peças para usar em casa, postar nas suas redes sociais e vestir quando voltarmos a celebrar a vida, ajudando uma pequena marca. No caso da minha, a loja física era um ponto de encontro de boas energias. Eu queria passar isso para o site e, de alguma forma, conseguimos. Hoje, nosso e-commerce é que está salvando.

Parei o processo criativo e tive que pensar em números, nos funcionários, nos fornecedores, nas contas fixas e nos clientes, além de pensar em como ser uma marca inspiradora neste momento de caos. Eu já faço algo em pequena escala e que tem pouco impacto no meio ambiente.

Penso que as marcas de roupa só vão sobreviver pós-crise se dialogarem com o tempo atual, com a consciência de produção e consumo. Dias melhores virão e vamos de novo celebrar a vida.

Também acho que vamos mudar a maneira como falamos sobre política, nos politizar mais. Axé, tudo vai ficar bem."

Isaac Silva, estilista da marca homônima

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Aluf: criatividade realocada

"Tínhamos acabado de lançar a nossa nova coleção havia 5 dias quando fechamos a loja e começamos a trabalhar em casa. Estávamos no final do desenvolvimento do desfile para a SPFW. Era um cenário inesperado, mas, como digo em relação a sustentabilidade: é na dificuldade e na escassez que se cria o novo. Em termos de produção, demos sorte, pois estávamos no intervalo, não tínhamos nada em andamento, só tecidos em estoque. A questão das vendas foi mais alarmante — como marca independente e nova, não temos um fluxo de caixa de uma grande empresa, que costuma estar preparada para imprevistos.

O Aluf-se [recém-lançado sistema de assinaturas que reúne benefícios para clientes da marca] surgiu do desejo de criar um grupo de 30 pessoas com as quais pudéssemos debater, obter feedbacks e nos aproximar de quem acompanha e acredita em nós. Além disso, lançamos a Oficina Aluf, um conteúdo semanal em que pessoas que trabalham com técnicas manuais ensinam nosso público via Instagram. Sempre foi um desejo falar sobre as técnicas que estão alinhadas à nossa maior inspiração: a arte terapia e o trabalho de Nise da Silveira. Tivemos um retorno muito positivo, tanto do Aluf-se, que atraiu muita gente, quanto dos demais conteúdos.

No início, eu e o Bruno, meu sócio e companheiro na vida pessoal, olhamos um para o outro e falamos: "Cara, a gente faz roupa, qual a relevância disso agora?".

Quando olhamos a moda pelo seu produto final, ela parece irrelevante, mas quando vemos seu contexto social e psicológico, é essencial.

Por isso, reforço que a Aluf não é sobre roupas e sim sobre por que e como as fazemos. Agora, acho que aconteceu uma realocação de criatividade. Tudo o que eu costumava focar no produto, foi transferido para a comunicação e estruturação de novos projetos. A arte, como forma de expressão, nos faz refletir, questionar. E, neste momento, todos estamos sendo obrigados a fazê-lo. Acredito que não somente a forma como nos relacionamos com a arte, mas com a cidade, com o outro, com o tempo, tudo será posto em reflexão."

Ana Luisa Fernandes, estilista da Aluf

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Neriage: crise será um divisor de águas

"Toda a minha produção é terceirizada, portanto, considerei prudente (tanto financeiramente quanto em termos de saúde para as costureiras e modelistas) pausar as novas coleções até as coisas melhorarem. Até porque temos um cenário incerto em relação às temporadas de desfiles este ano e as vendas tiveram uma redução considerável com a crise do coronavírus.

Tenho uma coleção que decidi estender até o final de 2020 em vez de lançar outra para o verão. A Neriage é uma marca de roupas atemporais e não acredito mais nessa história de estações. Também devemos repensar nossas formas de consumo e volumes de produção. O mundo precisa disso, pede isso.

O projeto Fóra [lançado no Instagram em parceria com as marcas Misci e Esc] é o nascimento de algo que já habita nosso cotidiano e nosso espírito desde sempre. A ideia básica da plataforma é esta: aquele que seria visto como seu concorrente agora é seu apoiador. A ideia de o outro estar bem para você também estar é uma coisa que temos em comum na nossa geração e teremos nas próximas.

A plataforma tem como objetivo unir marcas para gerar soluções, dividir diferentes questões e também compartilhar bancos de dados que possam ser divididos para crescermos como um grupo. No nosso Instagram, convidamos especialistas e postamos entrevistas para compartilhar opiniões que possam ajudar empreendedores e autônomos. Juntos, pensamos melhor e somos muito mais fortes do que separados.

Não é mais sobre quem você veste, mas qual a cadeia do que você veste. Como foram feitas as suas roupas? Essa é a questão do futuro.

A etiqueta que vai prevalecer não é mais a da label, é a de em que país foi produzido seu produto. Em que condições ele foi costurado. Quanto foi paga a essa mão de obra? Colaborar para uma cadeia justa não é só um ato político e essencial, é colaborar para um dos mercados que mais empregam pessoas em todo o mundo. Portanto, até que ponto de fato comprar roupas não é essencial?

Acho que essa crise tem sido um divisor de águas. Estamos aprendendo o significado e o valor de tempo.

Então, quando olharmos para a moda e a arte, vamos entender que demanda tempo, que é o maior dos valores. Eu não pego no meu caderno de criar desde que a SPFW mandou o comunicado de cancelamento. É uma tristeza para um estilista ter uma coleção suspensa. Mas é também esse vazio que me motiva a seguir em frente e pensar que enfrentaremos isso e logo estaremos em dias melhores.

Mas, de verdade? Um estilista cria o tempo todo. A gente vive isso. Agora eu realmente espero que empreendedores independentes, pequenos negócios e criadores sejam mais valorizados. Estamos aprendendo a olhar para o vizinho para saber se ele está bem, a olhar para a venda do lado de casa ao invés de hipermercados. E esse é o espírito do futuro."

Rafaella Caniello, estilista da Neriage

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Arqvo: lucro está fora de cogitação

"Sinto que as pessoas estão consumindo só o que é necessário no momento, por medo do amanhã que, para muitos, é incerto. Na parte de desenvolvimento, trabalho tanto em casa como com parceiros que possuem pequenos ateliês. Enquanto eles estão fechados, estou aproveitando para me virar com o que consigo produzir em casa.

Vejo que nesse momento o lucro está fora de cogitação e temos algo maior para questionar e adaptar.

Os cupons que venho oferecendo são uma forma de conseguir pagar contas, manter a roda do comércio local girando, além de dar a oportunidade de clientes e simpatizantes da marca comprarem por um preço bom algo que vinham namorando há algum tempo. É uma ajuda para todos.

Minha coleção começou a ser pensada no comecinho do ano e finalizei os desenhos antes de tudo isso acontecer. Mas estou me sentindo menos produtiva, sem foco e ansiosa. Vivemos sempre planejando para que tudo saia conforme calculamos. É uma sensação muito louca não ter certeza de como tudo estará daqui a um ou dois meses.

Espero que, quando tudo isso passar, as pessoas possam enxergar mais por trás de todo o processo, valorizando toda a cadeia produtiva que se empenha para transformar matérias-primas em objetos desejáveis e que contam uma história. Esse processo inclui o ourives, a costureira, o motoboy que faz as entregas, o fornecedor de caixinhas de papel e por aí vai. É importante saber dar valor ao trabalho, pagando sempre o justo e respeitando cada profissional como indivíduo."

Camila Alves, estilista da Arqvo

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