E pra elas, o baile tá como?

Elas curtem o fluxo de Paraisópolis há anos e contam que, quando chega a PM, todo mundo sabe que o rolê 'moiô'

Nathália Geraldo De Universa Luiza Sigulem/UOL

Luara Victoria de Oliveira, 18 anos, era a única garota entre as nove vítimas fatais após uma ação da Polícia Militar durante o baile da DZ7, em Paraisópolis, zona sul de São Paulo, no início de dezembro. A jovem não morava no bairro, e morreu no beco de uma das maiores favelas da Capital, o que despertou revolta na comunidade e comoção nacional.

Mas gerou também o questionamento: "Quem mandou estar no baile?".

O pancadão da DZ7 ou do vizinho Bega, festas de rua que atraem multidões a Paraisópolis, divide a comunidade. Há quem condene, há quem arrume artifícios para ficar "de lazer" no evento que pode virar a madrugada e durar até perto do meio-dia.

É o caso de Tamires, Kariana, Suelane, Carolina, Estephany e Julia, meninas entre 15 e 21 anos ouvidas por Universa que, felizes da vida como qualquer jovem, só querem se divertir. O nome de Luara poderia estar nessa lista. Também ouvimos mães, professoras e ex-frequentadoras, que foram espantadas da bagunça pelo medo da truculência da polícia.

Como é frequentar um pancadão na comunidade sendo mulher? Curtir o rolê é "zanzar" pela multidão para ver quem colou no baile, dançar com as amigas. Pelo menos enquanto a Polícia Militar não chega na festa. Aí acaba a animação e entra o medo. Para zoar, é preciso driblar o descaso público e a ausência do Estado, como denunciam.

Nas letras das músicas e no comportamento dos homens no funk, ainda é fácil notar o machismo que atinge as mulheres do fluxo —o mesmo que garotas de qualquer classe social enfrentam na balada. Elas não se intimidam: andam sempre em dupla, mas não perdem a festa. Se tiver briga ou ação da PM, estarão juntas e não vão se perder. O que também vale para o assédio masculino.

O "proibidão" não tem esse nome à toa. Mas a postura das garotas deixa claro que, apesar da repressão policial, o evento é a principal alternativa de diversão de quem vive na periferia. E que ninguém vai proibi-las de nada.

Uma mão na consciência, outra na cintura

Uma garrafa de vodca e uma de energético rende para o bonde inteiro. Gastar mais de R$ 5 em rolê não existe. Alguns hábitos de Estephany Vale e Julia Firmino da Silva, ambas de 19 anos, representam a vida das jovens que frequentam o fluxo.

As duas se conheceram na igreja evangélica, que não frequentam mais. Quando tinha 15 anos, Estephany ia para o baile escondida do irmão, que sempre foi mais religioso, para curtir e beijar na boca. Julia logo se tornou sua parceira na diversão. Hoje, as duas dividem a casa e as histórias que vivem a cada baile. Também são comadres: Estephany tem um filho de 3 anos, que mora com sua mãe no Ceará, e Julia é mãe de um menino de 2, que mora com o pai na mesma rua que ela.

Estephany conta que, quando ficou grávida, trabalhou vendendo bebida na rua do DZ7. E que, além do álcool, os frequentadores costumam fumar narguilé nos estabelecimentos comerciais, como a barbearia Club DZ7, que se tornam o pico central das festas. Quem não é do bairro, explica Julia, costuma exagerar no uso de lança-perfume, "uma das partes ruins do rolê".

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Prontas para sarrar

A dupla gosta de chegar cedo no baile, que pode rolar de quarta a domingo, para se posicionar bem: elas preferem ficar na calçada, onde tenha um toldo para proteger contra chuvas, e espaço para dançar. Também é legal estar perto dos paredões de música, caixas de som empilhadas que são o terror dos moradores avessos à festa. A "força do pancadão", qualidade da música que está tocando, é o que define se elas vão para o Bega ou para o DZ7 primeiro.

As festas podem rolar até 10h da manhã. Depois das mortes dos jovens, no entanto, o fluxo tem dispersado mais cedo.

"Eu gosto de funk, mas também amo sertanejo e música internacional. É que o único lazer que a gente tem aqui é o funk", pondera Estephany, que também problematiza as letras das músicas, por vezes machistas e que estimulam a violência contra a mulher. "Aí, é uma mão na cintura, outra na consciência", ela diz.

Tem música que fala: 'É tudo puta' e, outra, 'Eu que sabotei o copo dessa piranha'. Mano! Isso aí é caso de polícia, é colocar Boa Noite, Cinderela na bebida. Mas a gente só vai pensar nisso depois

Estephany Vale

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"Quem mandou estar lá?"

"Pessoas ficaram perguntando o que Luara estava fazendo ali. Ué, estava curtindo o baile, como os meninos que morreram também estavam. Mas até nisso a mulher é mais julgada", comenta Elizandra Cerqueira, 31 anos, presidente da Associação das Mulheres de Paraisópolis, criada em 2006 para promover, entre outras atividades, capacitação feminina para gerar independência financeira e ações de conscientização sobre violência doméstica no bairro.

Elizandra lembra que, quando saiu a notícia, Luara foi tratada como maloqueira, ruim, da pá-virada. "Queriam justificar o fato de ela ter morrido", analisa. As frequentadoras do fluxo, no entanto, se identificaram com o perfil da garota: "Muitas se levantaram para dizer: 'Eu gosto de funk e isso não quer dizer que eu seja burra, ruim, vagabunda, ou que eu esteja envolvida com o tráfico'".

Ela explica que criticar os frequentadores do baile, o funk que estoura nos paredões de som e a cultura de meninas e meninos da periferia é uma forma de criminalizar as expressões que nascem na favela.

"O baile surge a partir da carência da população e da ausência do Estado. A juventude da periferia é muito jogada. Nos enxergam como sem cultura, sem educação, bandidos. Mas hoje a música que mais está estourada no Brasil é o funk. O mesmo que o playboy do Morumbi escuta dentro de seu carro, nos pancadões em frente às faculdades. Só que lá é um pancadão branco e elitista. Aqui, é negro e pobre", diz a presidente.

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Marquei meu aniversário na DZ7 logo depois da morte da policial [Juliane Duarte, em agosto de 2018, em Paraisópolis]. Eles 'moiaram' à meia-noite. Todo mundo começou a correr pela viela e eu me recusei. Só que eles entraram de moto e cassetete na mão no beco: tive que fugir.

Suelane Freire da Silva

Nem todo mundo gosta de funk

A educadora social Flávia Rodrigues, 21 anos, que atua na Associação, conta que os alunos são frequentemente parados pela polícia. Às vezes, apanham só por estarem usando bermuda, meia na canela e óculos de sol, o que ela chama de "portarem o kit". "E são pessoas que fazem faculdade, ajudam a família", argumenta.

A força do preconceito oprime ainda mais as meninas. "Nas aulas, falamos sobre desigualdade de gênero e assédio. Às vezes, um aluno solta: 'Quem mandou aquela menina estar no baile com aquele shortinho?'. É uma questão cultural".

Flávia trabalha para mudar essa realidade e gerar novas perspectivas e pontes entre Paraisópolis e o mundo. Inclusive, criou um aplicativo de empregos no bairro. É por esse caminho que mostra que a favela é feita de pluralidade. Nem todo mundo gosta de funk, nem todo mundo vai para o fluxo.

Ela mesma prefere barzinhos dentro de Paraisópolis onde toca MPB e sertanejo. Foi só foi duas vezes na vida para o baile da DZ7. E confessa ter medo de andar nas ruas próximas à multidão que se concentra ao redor dos paredões de som.

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Sinto medo de andar perto do fluxo e ser pisoteada se eles estiverem correndo da polícia, por exemplo.

Flávia Rodrigues, educadora social

Segue o baile

Mesmo quando o baile da DZ7 está muito lotado, Suelane Freire da Silva, 18 anos, e Carolina Santos dos Reis, 21 anos, não se incomodam com o tempo que levam para "zanzar" de um lado para o outro.

Elas contam o que acham da festa dividindo o mesmo cigarro, que passa da boca de uma para a boca da outra. Andando no fluxo sempre juntas, a visão delas é de que há muito respeito entre as mulheres que frequentam o baile. O que nem sempre acontece na abordagem dos homens, ou quando vem muita gente de fora.

"Quem vem conhecer tem uma visão distorcida: quer usar droga, se prostituir. Por isso, às vezes a gente prefere o do Bega [baile vizinho, nas ruas de cima], que é mais familiar", explica Suê. "E os meninos, é aquela coisa: a gente sofre assédio até quando anda na rua. Então, não é específico do baile. Mas não tem isso de beijar ou pegar à força", pontua Carol.

Apesar de também frequentarem saraus, festas de reggae e dumb na rua e batalhas de rap, as amigas vivem na DZ7. Estiveram por lá no aniversário do baile e tentaram comemorar os 17 anos de Suê ali, no ano passado. Nos dois dias a festa foi interrompida por ação policial.

"No aniversário do baile, teve muita divulgação, o pessoal veio de caravana. Só que a polícia veio, 'moiô' até às 3h da manhã. 3h30, o baile 'tava' como? Lotado. O pessoal não vai embora porque não tem ônibus nesse horário. Então, mesmo depois de correr da PM, os frequentadores esperam a música voltar. E o baile continua", relembra Carol.

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O jovem se diverte, a mãe se angustia

A produtora de figuração e locação Renata Alves Ferreira Santos, 40 anos, revela a angústia de ser mãe e mulher dentro de Paraisópolis. Seu filho de 20 anos frequenta o baile da DZ7. O jovem só não estava na festa no dia das mortes porque havia caído de moto no dia anterior. "Estava de molho".

Renata não vai ao baile, mas conta que a repressão policial é velha conhecida —desde a época em que o público se reunia para o Samba da DZ7, no mesmo lugar, há cerca de 20 anos. Há alguns anos, o ritmo predominante virou funk. Ela conhece os esquemas e os códigos compartilhados pelos moradores para se protegerem da polícia. O primeiro é entender que tem hora marcada para correr da PM. O segundo é o prenúncio: é bom ficar atento quando eles começam a passar pelas ruas de cima.

"Se quem é morador fica nessa tensão, imagina quem é de fora. Imagina uma mãe que não sabe que o filho veio para Paraisópolis. Quem é daqui tem o tato, sabe que umas 2h30 vai ser encurralado pela PM jogando bomba de efeito moral. As pessoas já sabem que vão ter que correr. E às vezes os caras começam a bater não só em quem está no baile, mas em quem está nas ruas de cima. O morador já está com raiva do barulho [da festa], está chegando do trabalho e é hostilizado por policial", diz.

Ela fala sobre o fato de Luara ter sido criticada por estar ali no dia 1º de dezembro. "E a bandeira de que a mulher tem que estar onde ela quiser? Agora tem um lugar da mulher?", ela diz ao mostrar a tatuagem que tem no braço, uma homenagem para a mãe que morreu no ano passado, com a frase: "Mãe, o que é desistir? Não sei, filha, somos mulheres".

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A truculência policial já vem da época em que se fazia o Samba [da DZ7]. É que agora virou assunto porque rolaram as mortes, o pobre tem acesso à 'gatonet' e teve coragem de postar os vídeos nas redes sociais. Mas a ação é a mesma há muitos anos.

Renata Alves Ferreira Santo, produtora

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"Nunca mais venho aqui"

Yasmin Oliveira da Silva, 20 anos, é a "musa do rolezinho". Levou o título aos 14 anos, por organizar os encontros de jovens em shoppings de São Paulo, como no Metrô Itaquera. Era uma opção de lazer para quem não tinha dinheiro (nem idade) para entrar em baladas e queria curtir, beijar na boca e tirar selfies. Também não era visto com bons olhos por donos e frequentadores dos empreendimentos comerciais. O movimento foi perdendo o fôlego e, hoje, Yasmin abandonou a carreira de 'rolezeira'.

Há pouco mais de dois anos, ela prefere baladas em ambientes fechados, inclusive por não se sentir segura na rua, onde está mais exposta à truculência policial.

"Eu ia para o baile para levar meus amigos de Guarulhos, da Zona Leste. Mas, um dia, a polícia veio de forma tão agressiva, que eu pensei: 'Quem quiser, marque comigo em outro lugar, porque aqui eu não entro mais'. Naquele dia, minha mãe e minha irmã ficaram me ligando, querendo me buscar. Eu falei: 'Se vocês tentarem entrar, vai ser pior. Eu vou sair'".

No dia das mortes dos nove jovens, Yasmin recebeu mensagens de pessoas que a conheciam do passado de bailes e de rolezinhos.

Ela trabalha na Associação dos Moradores. Virou influencer no Instagram, com quase 90 mil seguidores. Lá, publicou uma mensagem de luto pelos jovens e uma foto em que aparece na passeata realizada pela população de Paraisópolis em frente ao Palácio do Governo de SP. Defende, no cartaz, que não "foram pisados, mas assassinados".

Ela responde a quem acha que Luara —ou qualquer outra mulher que vá ao baile— não deveria estar lá. "A mulher tem que ir, sim. Fazer o que tem vontade. Sempre vai ter alguém criticando. E é assim: o homem pode fazer dez coisas, mas se a mulher fizer três, ela vai ser julgada."

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"Tenho receio de sair agora"

Para se manterem seguras, a vendedora Tamires Carvalho, 21 anos, e a estudante Kariana Lima, 15 anos, têm uma regra: chegam e vão embora juntas do baile funk. As duas vivem juntas. Durante a entrevista, dividem o fone de ouvido. Estavam juntas na edição em que aconteceu a tragédia. A mais velha, que vai às festas há sete anos, agora têm medo de voltar ao fluxo.

"Eu estou com receio de sair. A última vez foi quando aconteceram as mortes. Naquele dia, fomos para o DZ7, mas subimos para o Bega, do outro lado da rua. Às 8h da manhã, a gente foi para casa. Acordamos às 15h, quando muita gente começou a me ligar preocupada. Minha mãe surtou. Disse que podia ter acontecido várias coisas comigo, que eu tive sorte".

Além da rua, Kariana e Tamires vão a barzinhos e tabacarias espalhadas por Paraisópolis, onde se fuma narguilé —uma nova opção de lazer na comunidade.

Kariana, que não pode aparecer nas fotos por ser menor de idade, conta que curte a noite desde os 13 anos e que, para a dupla, é comum ficar de seis a sete horas fora de casa circulando pelos eventos.

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O que diz a polícia

Definidas como "massacre" pelo presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe), do Governo de São Paulo, Dimitri Sales, as mortes em Paraisópolis renderam várias homenagens. Em um dos becos próximos de onde acontece o baile, foram feitos grafites com mensagens relacionadas à dor.

"Não foi acidente", diz uma das mensagens. "Quantos mais precisarão morrer até essa guerra acabar" retoma a frase de efeito deixada pela vereadora Marielle Franco um dia antes de sua morte, a respeito da criminalidade no Rio de Janeiro. Paraisópolis também ficou enfeitada com flores e os nomes das vítimas na parede: Gustavo, Dennys Guilherme, Marcos Paulo, Denys Henrique, Gabriel, Eduardo, Bruno Gabriel, Mateus e Luara.

Segundo denúncia, um soldado do Corpo de Bombeiros cancelou o pedido de Samu feito por uma jovem no local, alegando que a PM já havia socorrido as vítimas. Socorristas de emergência classificam a ação como uma quebra de protocolos entre as corporações.

Universa questionou a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre as denúncias das moradoras. Há hora certa para a Polícia Militar ocupar o baile? Há truculência da corporação? Como está a investigação das mortes em Paraisópolis? Qual é o status dos policiais suspeitos de participação no massacre? Em nota, a PM respondeu que todas as circunstâncias relacionadas à Paraisópolis estão sendo investigadas por meio de inquérito na Corregedoria "em caráter sigiloso, como definido no Art. 16 do Código de Processo Penal Militar".

Segundo eles, cerca de 40 oitivas foram anexadas ao inquérito. "A equipe analisa imagens, áudios e demais informações". A PM afirmou que a população pode fazer denúncias formais na Corregedoria.

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