A toque de caixa

No momento em que supermercado é o passeio possível, caixas enfrentam medo do coronavírus e mudanças na rotina

Marcos Candido De Universa Carine Wallauer/UOL

A máquina dos caixas de supermercado faz bip bip bip ao validar as compras e o som costuma atrair às crianças. Janete Pereira, 26, conta que, há poucos dias, passava a compra de uma família quando o menino disse para a mãe que queria, um dia, ser ele o caixa para fazer bip bip bip. A mulher não gostou dos planos da criança e, na frente de Janete, exclamou: "Deus que me livre!". Foi embora com as sacolas.

Quando o turno da funcionária acabou, Janete engoliu a seco o comentário, bateu o ponto, pegou um metrô e depois um ônibus, e voltou para a casa que divide com três irmãos em Guarapiranga, na zona sul de São Paulo. Bateu uma leve vontade de chorar, que durou até o dia seguinte.

Não é incomum, e é até queixa frequente entre os colegas de trabalho, que a vida desses trabalhadores seja ignorada por alguns clientes e discriminadas em meio aos burburinhos do mercado ou comentários maldosos que ignoram a presença deles.

Segundo a Prefeitura e o governo de São Paulo, o trabalho de Janete é essencial no combate à pandemia contra o coronavírus, que já deixou centenas de milhares de mortos pelo mundo. Elas não são profissionais da saúde, mas estão na linha de frente da exposição ao risco para garantir que quem pode ficar em casa consiga abastecer a despensa.

Universa acompanhou um dia de trabalho das caixas de supermercado em São Paulo, em grandes ou pequenos estabelecimentos.

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O exercício da empatia

A rotina delas mudou. Elas continuam falando com centenas de pessoas por dia e tocando em milhares de produtos, notas de dinheiro e cartões. Mas agora usam máscaras, álcool em gel e luvas providenciadas pela empresa. Uma barreira de acrílico agora as separa do público e tenta impedir que gotículas emitidas pela pessoa em pé a sua frente não alcancem seus rostos poucos centímetros abaixo.

Após a implantação das medidas de segurança, um cliente questionou Janete sobre o uso de máscara. "Estão todas doentes?", perguntou um homem com medo. A funcionária explicou que as recomendações do Ministério da Saúde são para que o uso de máscaras seja feito também por quem se considera saudável. Para ela, se tornou um hábito detalhar as medidas para combater o vírus e listar uma por uma, com uma riqueza de detalhes. A explicação, segundo ela, serve para acalmar os clientes.

"Débito ou crédito?", perguntou Janete a outra cliente, enquanto era observada pela reportagem. A mulher desviou do papo burocrático e fez um agradecimento ao trabalho dela. A cliente contou que fazia compras para os familiares idosos e era grata por quem trabalha nestas condições.

Janete, que há 7 meses opera o caixa em um hipermercado da zona sul, voltou um pouco mais feliz para casa. "Depois que você trabalha como caixa, desenvolve uma empatia muito grande com as pessoas", diz.

Há poucos dias, outra cliente contou que tinha contraído o novo coronavírus, mas já estava curada. Como se tornou rotina, a cliente foi embora e Janete espirrou o líquido desinfetante na esteira para retomar o trabalho. "A gente sente medo, mas muita gente ainda não entendeu a gravidade da situação", diz.

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Menos clientes, mais compras

É preciso passar por três fases —prova de conhecimentos gerais, dinâmica de grupo e entrevista com um gerente— para trabalhar em uma das 41 máquinas registradoras de um hipermercado na zona sul de São Paulo, cuja área ocupa uma área de 27 mil metros quadrados.

O trabalho consiste em passar cada um dos produtos pelo leitor de preços, oferecer Nota Fiscal Paulista, bilhete do estacionamento, selos de desconto, perguntar a forma de pagamento, checar uma tabela com códigos de frutas e verduras, dar o troco. Ser cordial.

Às vezes, as caixas registradoras empacam, a esteira suja. Um cliente esquece um produto e volta para buscá-lo, formando longas filas que precisam ser diminuídas pela agilidade das operadoras.

São 378 funcionários contratados e 140 terceirizados. Há também restaurantes, fast food e agências de viagem no mesmo espaço, o que dá ao hipermercado a sensação de uma pequena cidade. A cada mês a rede apresenta aos funcionários a avaliação que os clientes registram sobre atendimento.

Antes da pandemia, o hipermercado registrava cerca de 8.500 compras únicas por dia. Hoje o número de transações por dia diminuíram para 5.000. Mas isso não quer dizer que o trabalho está mais simples: quem rompe o isolamento para ir ao supermercado hoje compra mais produtos por vez, o que torna a passagem pelo caixa um processo mais demorado do que era antes.

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Carrinhos de papel higiênico

Sabe-se pouco sobre o perfil de quem opera as máquinas por onde passa o dinheiro. A Associação Paulista dos Supermercados (Apas) não mantêm um banco de dados com o perfil dos operadores de caixa no estado de São Paulo.

O número de estabelecimentos, porém, ajuda a dar uma dimensão dessa força de trabalho. São 29.750 mercados registrados na associação em todo o estado, dos menores aos maiores, com um total de 558.296 funcionários -ou mais de meio milhão de pessoas mantendo vivas as estruturas essenciais às dinâmicas das casas. Os gerentes costumam responder que "a maioria das caixas é mulher". Apesar da falta de dados, é uma checagem visual nos grandes estabelecimentos confirma: a maioria é mulher.

Segundo um grande site de empregos, o salário médio de um operador de caixa é de R$ 1.500 no Brasil. As jornadas podem ser de 12 horas de trabalho para cada de 36 horas de folga, ou seis dias de trabalho para um de folga, mais um domingo de descanso por mês. A combinar.

No mundo das caixas de supermercado, há hierarquias informais. Funcionárias mais experientes são responsáveis por auxiliar as novatas. Nos primeiros dias de trabalho, os clientes notam a inexperiência: apesar de haver aqueles mais gentis, também é comum, contam elas, os que não disfarçam a impaciência. Cabe às novas contratadas agilizar a esteira e aprender o ofício na prática.

Quando a previsões de isolamento social eram uma nova realidade, Luciana Batista, 40, também há sete meses na função naquela unidade, atendeu um cliente com dois carrinhos lotados. Em um, produtos. No outro, papel higiênico. Era um sinal que os clientes se preparavam para passar a próximas semanas -ou meses- em casa.

Alguns carrinhos depois, um outro cliente quis cumprimentá-la com um aperto de mão. Luciana agradeceu à gentileza, mas evitou o cumprimento. Em casa, está o filho de um ano meio com problemas respiratórios, além de outros de 9 e 12 anos. Ao chegar em casa, Luciana troca todas as roupas antes de se permitir abraçá-los.

Na empresa do marido, uma metalúrgica, circulam os boatos de redução salarial, o que não ajuda a manter a calma necessária em tempos de medo e pandemia. "Mesmo com tudo acontecendo, eu amo o que eu faço. Falam que é por falta de estudo que escolhemos trabalhar com o que trabalhamos. Mas estudo eu tenho. E tenho orgulho do meu trabalho", diz.

Não está nas atribuições do cargo, mas Vanessa da Silva, 35, adquiriu uma habilidade extra durante os 15 anos de trabalho em supermercado. "O trabalho me ajudou muito com a timidez", diz.

Quando criança, por algum motivo que não sabe explicar, ela se lembra de dizer para a família que achava curioso o modo como as operadoras de caixa trabalham. E diz que planejava estar aonde está.

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Receio e otimismo

Em mercados de médio porte pela cidade, o assunto também não pode ser outro. A pandemia, em suas diversas formas de impacto na vida cotidiana, está presente nos cumprimentos e nas despedidas, nas longas e curtas conversas.

A funcionária Carla, que pede para não ter seu nome divulgado, opera o caixa de um grande supermercado na região central de São Paulo. Ela veste máscara atrás de uma cobertura de acrílico, o que dá impressão de que está dentro de um aquário. Por 15 dias, ela precisou ficar em casa por se sentir indisposta. "Agora não tenho mais medo é de nada", diz, sem saber ao certo pelo que passou.

Em outra unidade da mesma rede a alguns quarteirões dali, uma funcionária queixa-se da máscara em voz alta. "Não consigo respirar direito", reclama.

Os casos de funcionários afastados por coronavírus é uma realidade nesse universo de trabalho. Erika Nicolau, 18, trabalha em mercado pequeno no centro da capital paulista e conta que três pessoas de uma rede de supermercado ali perto foram afastadas com suspeita do novo coronavírus. A informação veio da mãe, que também trabalha como caixa.

A funcionária, que viu o movimento em sua esteira cair pela metade, tende a concordar que há certo receio no ar, mas se tranquiliza ou se abstém ao ouvir a opinião do patrão a poucos metros de distância. Diz que a pandemia uma hora vai passar, que talvez não sejam tantos casos como estão divulgando; que o comércio vai reabrir em breve.

A Prefeitura de São Paulo planeja recomendar mudança no horário de funcionamento de serviços essenciais, para evitar aglomerações nos horários de pico no transporte público da cidade. A associação que representa os supermercados recomendou seguir as orientações nos próximos dias.

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