'Eu já nasci cancelada'

Artista trans, com mãe branca e pai negro, Nany People celebra 36 anos no palco: 'Militância está na atitude'

Luiza Souto De Universa Carolina Vianna/UOL

"Desculpe o atraso. Tive que atender a uma ligação de trabalho, e parei até o carro na rua", justifica Nany People ao chegar quase duas horas após o horário combinado para a entrevista e sessão de fotos com Universa, numa tarde abafada de quinta-feira, em São Paulo. Aos 56 anos e dona de uma risada alta e fala solta, Nany quebra instantaneamente o clima no estúdio até então silencioso — até o cotonete usado para o teste da covid ela fez questão de cumprimentar, em tom de piada.

No ar como uma recepcionista de motel na novela das sete "Quanto mais vida melhor", da TV Globo, ela foi vice-campeã do reality "LOL: Se Rir Já Era", do Amazon Prime Video —o prêmio principal foi para a atriz Flávia Reis—, e está no elenco do filme "Barraco de Família" ao lado de Cacau Protásio e Lellê, que deve chegar aos cinemas ano que vem, e é integrante da 9ª temporada do "Vai Que Cola", do Multishow (ufa!). A própria artista quem gerencia a carreira. Estufa o peito para repetir algumas vezes que quem vive de "30 segundos no Instagram não segura o rojão."

"Nem tudo é fazer videozinho no Instagram e virar youtuber. É indo devagar para dar certo. Comecei na bilheteria do teatro e até chegar ao palco foi toda uma via sacra. Muita gente só funciona na internet, e quando chega na hora do 'vamos ver' não segura o rojão da plateia", afirma a mineira que nasceu em Machado, cidade de cerca de 40 mil habitantes no interior de Minas Gerais, e foi criada em Poços de Caldas, para onde se mudou aos 7 anos e viveu até os 20, quando foi para São Paulo para estudar teatro.

Registrada ao nascer com o sexo masculino, Nany foi obrigada a passar por tratamento psiquiátrico —a polêmica "cura gay"— dos dez aos 18 anos para, como ela diz, "deixar de ser veado". Tomou hormônios masculinos que, conta na sua biografia "Ser mulher não é para qualquer um" (Planeta), acabaram com sua libido. Mas, em 2003, com a benção da mãe, Yvone, assumiu a identidade com a qual se reconhece. O nome Nany é uma homenagem à atriz Nani Venâncio, famosa por causa da abertura da novela "Pantanal". Já o People foi sugestão de uma amiga drag, que dizia que Nany dava "oi" até para o hidrante. "A Nany é do povo!".

Com uma tatuagem da personagem Cinderela e a frase "Made in Poços de Caldas" escrita nas costas, ela afirma que nunca teve medo de quebrar regras: "Foi sendo arbitrária às leis que me ditaram que eu me impus na vida, com meu jeito de ser". E que nunca foi ofendida por suas escolhas. "As pessoas acham que você tem que rezar o vocabulário que elas estão ditando na hora. O respeito está acima disso."

'Minha mãe sempre esteve comigo'

A família Santos jantava um bife quando o pai de Nanny, que era então um menino esmirrado de 6 anos, lhe deu um soco na boca. Queria que o filho falasse "como homem". Dona Yvone, nascida e criada em Serrania, uma cidade no interior de Minas Gerais, virou a toalha da mesa com toda a refeição em cima do marido e gritou: "Você nunca mais vai falar assim com ele! Eu não coloquei alma no mundo pra servir de chacota da humanidade". Era a primeira de muitas vezes que Nanny assistiria a mãe defendê-la.

Dona Yvone teve cinco filhos, mas somente três sobreviveram: João Batista, José Henrique, e Nany, caçula, registrada como Jorge. Funcionária pública à frente do seu tempo, como descreve a filha, foi ela quem incentivou a filha a ir para São Paulo atrás do seu sonho de ser artista. Não queria um filho frustrado em casa, a matriarca dizia.

No leito de morte, minha mãe me disse: 'Bendita hora que você perseguiu a sua vida, porque eu pude ter uma velhice mais feliz por causa de você'", relembra Nany, emocionada, no único momento da entrevista em que deixa de fazer piada com algo.

Aos 77 anos, Yvone foi diagnosticada com adenocarcinoma, um câncer agressivo no estômago. A doença já estava avançada e, segundo os médicos, não havia muito o que fazer. Morreu em pouco mais de um mês: "Quando ela faleceu, achei uma caixinha de sabonete com todos os ingressos das peças que ela assistiu comigo. Aí eu vi que essa mulher realmente está comigo."

'Sempre tive o meu cofrinho cheio'

Nany People ainda usava fraldas quando ouvia Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Angela Maria e outras estrelas tocarem na Rádio Nacional. O repertório a inspirou a cantar em público pela primeira vez numa quermesse, aos quatro anos. Depois, decidiu que faria teatro quando viu colegas de escola vestidos de ETs ensaiando uma peça. Quando contou sua escolha para a mãe, foi logo matriculada num curso de teatro em Poços de Caldas. Tinha 8 anos na época e nunca mais parou.

Transitou do teatro para a televisão, escreveu coluna na revista G Magazine, participou do reality "A Fazenda" (2010), da TV Record, e estreou em novela na pele do químico Marcos Paulo, em "O Sétimo Guardião", em 2018. A atuação rendeu indicação ao prêmio Melhores do Ano, do Domingão do Faustão. E o sonho de conhecer Lilia Cabral.

Na primeira leitura, a Lilia [Cabral] veio no carrinho de golfe sentada e eu esperando. Eu me apresentei, e disse: 'Não sei se acendo uma vela, tomo um copo de água doce, rezo um Pai Nosso ou chamo o Samu'

Premiada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em setembro último, com a medalha Chiquinha Gonzaga, concedida a personalidades femininas que se destacam em causas democráticas, humanitárias, artísticas e culturais, diz que aprendeu com mulheres fortes como a mãe e as tias que não existe liberdade sem liberdade econômica, e a não depender de homem para comer.

"Mamãe era funcionária pública, mas minhas tias eram tapeceiras, bordadeiras, costureiras, crocheteiras, e eu via nessa labuta o sustento delas. Desde criança, o trabalho na minha vida foi constante, de engraxate a vendedora de suspiros. Sempre tive o meu cofrinho cheio. Por isso saí de casa aos 20 anos e vim para São Paulo estudar teatro. Nunca liguei para mamãe para pedir mesada. Eu mandava dinheiro", orgulha-se.

Estou colhendo o que plantei a vida toda. Porque trans, na meia idade, vivendo de teatro e sem agente... Sou eu por mim mesma

Nany People

'A piada está em saber como falar'

Do minuto em que chega até a hora em que entra no carro para ir embora, Nany é só risada. Alta, de ouvir fora do estúdio fechado. Diz que não tem nada triste para contar, e solta gargalhadas a cada final de história que lembra enquanto é maquiada.

Nany estudou teatro desde pequena e escolheu enveredar a carreira para o humor, o que a levou para o programa do SBT "A praça é nossa", em 2007, a convite do próprio Carlos Alberto de Nóbrega. "Ele me transformou em humorista", afirma Nany na sua biografia.

Começou no stand-up em 2003, quando o ator Marcelo Médici a convidou para o Risorama, dentro do Festival de Teatro de Curitiba, voltado para o humor. Nany, que já tinha 18 anos de carreira, conta que somente ali percebeu que não cabia fazer piada preconceituosa, mas pondera: o politicamente correto também não funcionava. "Percebi que a minha liberdade ia até onde começava a privacidade do outro", ela descreve. "O contexto é como você fala isso. Essa é a arte. É você saber como você vai falar."

'Nasci cancelada antes de inventarem o cancelamento'

Desde quando assumiu a identidade trans, Nany viu alguns —poucos— avanços na legislação que visavam proteger a comunidade LGBTQIA+, como o direito a adotar uma criança, a casar no civil, a ter documento com o nome social.

Algumas mudanças, porém, ela acompanha com uma visão mais conservadora, como o uso de pronomes neutros tipo "elu", defendido por pessoas não-binárias, aquelas que não se identificam com nenhum gênero. "O meu T da sigla é tiranossauro", brinca.

"As pessoas acham que você tem que rezar o vocabulário que elas estão ditando na hora. O respeito está acima disso. Eu lutei por 18 anos para ter o meu nome Nany People nos documentos. A minha identidade de gênero nunca foi desrespeitada em todo esse tempo, independentemente de TV ou não", afirma.

As pessoas falam: 'A Nani faz um desserviço'. Eu só desejo que você tenha uma vida feliz, uma vida produtiva, uma vida positiva como a minha está sendo.

Para a artista, sua militância está nas atitudes, na maneira como vive.

"Eu já nasci cancelada antes de inventarem o cancelamento. Mas se estou com 56 anos e consegui me aposentar, ser respeitada e ter uma agenda crível e lotada, é sinal de que estou fazendo o dever de casa certo. Se isso não é militar, não sei o que é militar para você."

Minhas grandes referências

  • 1. Mãe

    Mamãe foi uma criatura fora do eixo. Ela brigou para casar com meu pai num tempo em que não era bem visto uma branca casar com um negro. Na época, a família inteira saiu da cidade. Quando nasci com essa minha natureza, a diretora do colégio a chamou e falou que eu tinha um problema. Pois minha mãe disse: "Não é um problema, é a condição dele, e cabe a mim, como mãe, fazer dele a pessoa mais feliz do mundo."

  • 2. Lilia Cabral

    A Lilia Cabral é um totem na minha vida, porque vim para São Paulo, com 15 anos, lendo "Feliz ano velho", e anos depois mamãe me deu um ingresso para assistir à peça, que a Lilia tinha estreado. Eu falei: "Eu quero fazer o que essa mulher faz". O mundo girou, e quando fui convidada para fazer um teste para "O Sétimo Guardião", descobri lá que faria cenas com ela, então, para mim foi a realização do sonho da minha vida.

  • 3. Rogéria

    A minha terceira referência na vida foi a Rogéria. Eu a vi aos 15 anos, em Ribeirão Preto (SP), e fiquei enlouquecida. Falei: "Eu quero fazer isso que ela faz". Liguei para a Rogéria na cara dura, quando escrevia na G Magazine, para entrevistá-la. Ela perguntou se eu morava sozinha e se tinha casa própria. Falei que sim. Isso aos 33 anos. E Rogéria disse: "Muito bem. Gostei. Dos 30 pode passar, dos 40 não pode faltar."

  • 4. Hebe Camargo

    Durante o tempo em que estive trabalhando com ela, o que mais impactou foi constatar que a pessoa que ela era no vídeo ela era na vida real: uma mulher transparente, que peitava suas ideias, suas vontades num tempo em que não era permitido às mulheres fazer isso. Ela legalizava seu ponto de vista independentemente de agradar ou não produção, dono de emissora, partido político ou coisa assim. Para mim, isso foi uma escola, uma cartilha para a vida.

  • 5. Fafá de Belém

    A outra referência foi a Fafá de Belém. Ela tinha um jeito de cantar sem um molde de mulher gostosa. Ela ia descalça, meio pirilampa, meio moleca cantando "Emoriô". Eu cantava "Meu coração é brega" num espetáculo, e uma vez ela baixou no teatro J. Safra. Logo que comecei a cantar, essa mulher entra pela coxia cantando junto. E no "Popstar" (TV Globo) ela também entrou de surpresa para cantar comigo.

'A adequação sexual não é pra mim'

Após quase dez anos atuando como drag na noite paulistana, passando mais tempo de perucas e saltos do que desmontada, Nany ouviu de um namorado que ela precisava se adequar ao que realmente era: uma mulher. Ele tinha acabado de ver a companheira com trajes identificados como masculinos e, inconformado, deu um soco na parede de quebrar o azulejo.

O rompante aconteceu em maio de 2003, quando Nany tomou a decisão de se assumir uma mulher trans. Colocou em seguida uma prótese de 280 ml no seio. Vinte dias depois aumentou para 300 ml. Hoje, tem 850 ml.

Aos 27 anos, Nany considerou fazer a cirurgia de readequação sexual, popularmente conhecida como mudança de sexo, mas quando dona Yvone ficou sabendo, a fez prometer não realizar o procedimento. "Vagina não segura ninguém", justificou a mãe. Após a morte da matriarca, que nunca a chamou de "minha filha", porém, vieram as cirurgias no glúteo e no quadril.

"Tem coisa que não é para mim, como a adequação sexual. Quando eu quis fazer, cheguei a ligar para um ex, que foi a grande paixão da minha vida, e perguntei se teria alguma chance se eu tivesse feito. E ele falou: 'Bu&*ta por bu&*ta eu como todo dia e não fico com nenhuma'".

'Você nasce e morre sozinha. O que pinta são pessoas para dançar grandes valsas'

Com dois anos de atraso, por causa da pandemia, Nany estreia em janeiro o musical "Nany é POP", no teatro Folha, em São Paulo. A peça é um musical com 16 canções sobre amor.

O amor é a única coisa que você tem na sua vida que quando olha para trás e fala: ali eu vivi de verdade.

Nany foi casada uma única vez, entre 2001 e 2008, com um gerente de restaurante que virou comissário de bordo e sonhava em ser pai. Depois desse relacionamento, diz ter descoberto que seu marido é o palco. Brinca que "cueca lá em casa, só na cadeira", e explica que prefere os mais novos porque aprende muito com eles. "Estou com 56 e ainda bato um bolão. Sou mais animada, inclusive sexualmente, que muito boy de 26."

Tempo, aliás, é algo que não preocupa Nany. Diz não pensar como será aos 80 anos, sem nunca ter aplicado botox — "vários médicos ofereceram fazer feminilização, harmonização, mexer na testa, afinar o nariz, mas estou com a mesma cara de pau que tive a vida inteira" — para disfarçar as marcas de expressão. Ela conta que se diverte com o avanço do relógio.

"Costumo brincar que outro dia fui transar sem óculos e chupei o pé da cama achando que era p&*a. Você tem que rir da situação, porque tem coisa que você não vai fazer mais com o mesmo ânimo. Mas não abro mão de fazer as coisas que acho que me dão prazer", afirma. Hoje diz ter um namorado no Rio e outro em São Paulo. "Um sabe do outro", garante.

O problema é que ninguém quer o amor pelo amor, mas pela segurança, por barganha, por garantia de vida. Você tem que amar por você mesma, ser feliz. Eu escolhi ser feliz. As pessoas se frustram porque querem o outro para ser a cola, a cutícula delas.

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