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A ex-modelo e empresária Luiza Brunet relembra o primeiro episódio de violência de que foi vítima, aos 13 anos

Luiza Brunet, em depoimento a Luiza Souto

Desde pequena, eu convivo com o abuso. Meu pai era alcoólatra e tinha uma arma. Chegava bêbado em casa praticamente todos os dias e tinha muito ciúme da minha mãe. Tinha dias em que ele a encostava na parede e atirava na direção dela.

Lembro que minha mãe gritava: "Quer me matar? Me mata". Eu e meus cinco irmãos ficávamos em pânico.

A casa onde morávamos era de madeira e, quando abria o sol, dava para ver as luzes entrando pelos buracos da parede.

Para fugir dessa violência, eu, minha mãe e meus irmãos saímos da roça, em Itaporã, no Mato Grosso do Sul, para uma favela em Inhaúma, na zona norte do Rio de Janeiro. Mas meu pai veio atrás.

Eles seguiram juntos e minha mãe só separou dele após 22 anos de casada. Meu pai nunca deixou de beber nem de violar a minha mãe. Existia nela uma dependência emocional muito grande.

Como éramos pobres, minha mãe precisou colocar as filhas mais velhas para trabalhar em casas de família, como domésticas. Fomos eu, que tinha 12, e minha irmã, de 13 anos. Comecei cuidando de criança, mas depois assumi todos os afazeres domésticos. Trabalhava pesado. Foi uma infância que eu considero interrompida.

Um vizinho, uma menina do interior

Eu achava a minha patroa uma mulher maravilhosa. Me tratava com respeito e carinho e me dava um monte de coisa. Comecei a me maquiar porque ela me deu meu primeiro batom da vida. E comprou minha primeira sandália alta.

Eu dormia na casa dela, numa despensa bem pequena, que ela usava para costurar. Até vir o abuso.

Meu abusador era um vizinho que morava na mesma região e frequentava a casa dessa minha patroa. Era conhecido de todos. É justamente por isso que você abre a porta de casa, deixa entrar. Foi o que aconteceu.

Eu tinha 13 anos. Não tinha namorado nem pensava nisso. Não sabia que ninguém podia tocar o meu corpo. Estamos falando do final da década de 1970, de uma menina do interior.

O barulho do pé arrastando

É muito desconfortável e desagradável lembrar o que ele fez. Por muito tempo, bloqueei essa lembrança. Só agora ela vem e aos poucos. E me dá um sentimento de impotência quando penso nisso.

Do que eu lembro, ele parecia ter mais de 50 anos. E mancava de uma perna. Por isso, ouvia de longe quando ele chegava naquela casa, porque sentia o barulho do pé arrastando.

Ele sabia quando eu ficava sozinha em casa. Ele entrava e ia direto onde eu dormia. E batia na porta. Não consigo e nem quero lembrar o que ele falava, mas ele me encostava na parede e eu ficava imóvel. E me cheirava e colocava a mão no meu peito e dentro da minha calcinha. Me lembro de um gemido também. Não houve penetração.

Será que foi isso mesmo?

Ele tinha um cheiro muito ruim. Esse tipo de gente costuma fazer uso de álcool. Tem cheiro de pessoas que parecem que não tomam banho. E são brutos. O toque é como se usasse um prego na mão, como se estivesse te arranhando.

Lembro que gritava e ele ia embora. Depois da primeira vez, quando o ouvia chegando na casa, me trancava no quarto e entrava debaixo da cama. Comecei a fazer xixi no colchão, tive insônia, dormia com a luz acesa. Perdi peso.

Ele repetiu umas quatro ou cinco vezes. Então, não aguentei. Peguei minhas coisas e fui para a casa da minha mãe. Falei que queria ficar com ela e voltar a estudar. Ela nunca desconfiou.

Como uma pessoa que você conhece e está cansada de ver faz isso? Eu pensava: "Poxa, eu conheço ele, ele é amigo da família". Fica um misto de confusão, constrangimento e vergonha. E você pensa: "Será que foi isso mesmo?" E fica com medo de contar.

Medo de ser mãe

Um abuso como esse causa dor e sofrimento, você finge que não aconteceu, não quer lembrar. Mas volta, constantemente, porque é um trauma.

O reflexo de uma violência como essa na minha vida foi o medo de ser mãe. Fiquei achando que o abuso poderia ser repetir com meus filhos. Resisti a ter babá porque achava que alguém poderia abusar deles.

E, até hoje, mesmo com todo diálogo aberto que tenho com Yasmin, minha filha mais velha, e com Antônio, meu caçula, nada garante que eles não possam ser atacados em algum momento da vida.

Gentil e respeitado

Passei por todo tipo de abuso na vida, de homem encoxando no ônibus a patrão tentando me bolinar. Parecia que trazia escrita na testa a palavra "disponível".

Em 2016, sofri violência doméstica do meu então marido. O homem que, no início, me parecia cuidadoso, generoso, alegre, de repente virou um monstro.

Só depois desse episódio é que consegui falar sobre aquele primeiro abuso. Quando expus a história, uma amiga me ligou desesperada. Ela morou no mesmo lugar onde aconteceram os fatos e perguntou: "O abusador era fulano de tal?" Eu confirmei.

"Ele também abusou de mim", ela disse. "Na época, contei para os meus pais e apanhei porque ele era um senhor tido como extremamente generoso, gentil e respeitado. Meus pais não podiam acreditar que ele tivesse feito aquilo."

Esse abusador deve ter feito o mesmo com outras garotas. Por isso, acho importante que os pais acreditem nos filhos, percebam um olhar estranho.

Culpa de mãe

Quando contei para a minha mãe o que aconteceu, aos 54 anos, ela começou a chorar. Se sentiu culpada por ter me colocado para trabalhar com 12 anos. Eu disse que a culpa não era dela, que entendia a necessidade do momento. Meu pai nunca soube. Ele morreu em decorrência do alcoolismo.

Aprendi muito com tudo isso, com o abuso que sofri aos 13 e com as agressões que sofri aos 54. Essa pausa na minha vida, de estar sozinha agora, é como uma limpeza mental e física para me livrar de todos os resíduos que me levam àquela primeira lembrança do abusador. Agora me sinto como uma orquídea florescendo, pronta para começar a olhar pela janela.

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