A força das afegãs

Na Grécia, onde está o maior número de refugiados vindos do Afeganistão, mulheres denunciam barbárie do Talibã

André Naddeo Colaboração para Universa André Naddeo/UOL
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"No mínimo, apanharam"

No último dia 17, o porta-voz do grupo radical islâmico Talibã, Zabihullah Mujahid, afirmou: "As mulheres afegãs não têm o que temer, vamos trabalhar juntos pela recuperação do país. Ombro a ombro". Mujahid ressaltou ainda que elas "farão parte do nosso governo, poderão trabalhar e estudar, contanto que estejam dentro dos limites do Islã''.

Estar dentro dos limites quer dizer seguir à risca a Sharia, a rígida lei islâmica que obriga, dentre outros temas polêmicos, mulheres cobrindo todo o corpo e que só podem sair de casa com um "guarda-costas" do sexo masculino. Em tradução literal, a palavra Sharia significa "um claro caminho para a água". Pois clareza e um futuro cristalino são tudo em que as mulheres afegãs não acreditam para o seu país.

"Eles são imutáveis", diz, com toda a convicção, Sumaia, de 52 anos, natural de Kandahar, a segunda maior cidade afegã e berço da criação dos extremistas que já controlaram o país entre 1996 e 2001.

Sempre receosas de possíveis e futuras represálias, todas as entrevistadas nesta reportagem não deram o sobrenome.

"A gente nunca sabe o que pode acontecer, esses imbecis estão sempre buscando notícias, seja onde for", diz Sumaia, uma das centenas de mulheres que protestaram em Atenas, Grécia, na última quinta-feira (19) contra o novo governo para expressar seus temores sobre o futuro de uma pátria para que, um dia, sonham em voltar.

"Aqui, com todos os problemas que temos, pelo menos podemos protestar com segurança. No Afeganistão, isso agora acabou", disse, preocupada com o que pode ter acontecido com o valente grupo feminista que levantou cartazes contra o novo regime, um dia após o Talibã controlar a capital Cabul. "No mínimo, apanharam."

270 mil afegãos já deixaram país

Somente neste ano, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), com a escalada da violência no país, 270 mil afegãos deixaram seus lares em busca de refúgio. Dentro da Europa, a Grécia é o país que mais acolhe refugiados oriundos do Afeganistão: das 4.718 pessoas que entraram em território grego, em 2021, 45,3% são afegãs.

Atualmente, são 29.716 afegãos solicitantes de asilo na Grécia, que aguardam suas respectivas entrevistas oficiais, um número bastante superior aos sírios, por exemplo (7.520). Estes números só tendem a aumentar. São mais de 100 mil imigrantes no país que é uma das portas de entrada para a União Europeia e estima-se que pelo menos 40% são fugitivos dos intermináveis conflitos armados no Afeganistão.

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Controle da informação

Sumaia viu com os próprios olhos as barbaridades cometidas contras as mulheres afegãs antes da ocupação norte-americana, em 2001. E lembra bem como a comunidade internacional não tinha acesso ao que, de real, acontecia em território afegão.

"Um genocídio está acontecendo agora mesmo, enquanto eu falo com você", afirma. "Todos sabemos que o Talibã controla a informação. Jornalistas já não vão mais poder relatar assassinatos, ataques ou violações de direitos humanos. Ainda mais agora que todos os estrangeiros estão deixando o país. Eu jamais vou confiar no que diz um 'Taleb', isso é impossível", diz ainda, usando o diminutivo comum entre os afegãos ao se referirem ao grupo radical islâmico.

O futuro é mais do que obscuro

Há dois dias, com a tomada de poder, o canal Tolo News, conhecido no país por ter apresentadoras, anunciou formalmente que já não vai mais colocar mulheres como âncora de seus telejornais. Ainda é incerto se as profissionais da informação seguirão na equipe jornalística da emissora em outras funções.

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"Eles me chicotearam por usar chinelos"

Com máscara, boné e hijab, Khadija, de 42 anos, também viveu os sombrios cinco anos da Sharia no Afeganistão, entre 1996 e 2001. "Eu era uma garota que vivia em Takhar [província próxima ao Tajiquistão], e um dia saí de casa usando chinelos. Fazia muito calor. Um 'Taleb' me viu e perguntou por que eu não estava usando meias, que aquilo era Haram", relembra. Haram é um termo árabe retirado do Corão, o livro sagrado muçulmano, que designa o pecado, proibido.

Me jogaram no chão e chicotearam os meus pés em praça pública. Não saí mais de casa por meses. Como você acha que eu posso acreditar no que esses animais estão dizendo?

Outro motivo pelo qual ela não crê no tom moderado do grupo radical é o que ouve de familiares e amigos no Afeganistão. "Já sabemos que estão perseguindo artistas, eles não querem cultura, nada. Vou protestar todos os dias aqui, se possível, até que a comunidade internacional entenda que deve fazer algo por nós", diz.

Jovens marcham com a bandeira do país, símbolo de resistência ao Talibã

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Casamentos forçados

Mariam tem 15 anos e, em meio à multidão de cerca de 1.500 afegãs e afegãos na praça Syntagma, no centro de Atenas, destaca-se com gritos de "liberdade é o nosso direito" e pelo fato de usar boina e trajes militares, com o rosto pintado em verde, vermelho e negro, as cores da bandeira do Afeganistão.

"Eu me vesti como soldado hoje porque é um momento de luta", afirmou. "É o momento de todos erguerem a voz contra esses lunáticos."

Natural de Herat, a terceira maior cidade do país, ela chegou há dois anos à Grécia. Aprendeu o idioma rapidamente na escola —deu várias entrevistas em grego fluente para emissoras locais— e não se conforma com o fato de que está livre, na Europa, enquanto suas amigas de infância esperam pelo pior.

"Estão batendo de casa em casa e dizendo que as meninas vão ter que se casar com soldados talibãs. É a realidade. É a minha gente, a minha família que está me contando tudo isso", relata.

Herat foi uma das últimas cidades a serem dominadas pelo Talibã antes do fatídico cerco a Cabul.

Fico pensando que poderia ser eu, jovem, tendo que me casar com homens nojentos, horríveis, que só querem se aproveitar, nos escravizar

A jovem afegã de apenas 15 anos demonstra uma maturidade que só não é surreal para a sua idade porque, segundo ela, "um mês de vida para você, são dois, três anos para nós".

Ela insiste que não crê no tom de moderação dos 'Talebs' simplesmente porque o componente mais usado pelo grupo radical segue em prática: a violência cotidiana. "Eles estão dizendo que vão ajustar algumas coisas de momento, mas, outro dia, mataram o governador de Herat. Eles nunca vão mudar", comenta.

Mariam se refere ao ataque terrorista sofrido por Shukrullah Shakir, governador do distrito de Herat, no último dia 3, poucos antes de o Talibã controlar o estratégico território que faz fronteira com o Irã. "Eles não vão deixar de matar pessoas. Pode ter certeza. Enquanto o Talibã estiver no poder, não vai existir desenvolvimento para o Afeganistão."

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Atentado do Talibã contra crianças

Fareshta tem 32 anos e é natural de Ghazni, uma cidade no sudeste do país, e sua vida está marcada por um episódio em que quase perdeu a única filha, Hannah. O motivo pelo qual deixou o Afeganistão e veio à Grécia, há dois anos e meio, foi um ataque desferido, segundo ela, justamente pelos Talibãs a uma escola da sua cidade natal.

O Talibã que está no poder agora é o mesmo que atacou com gás uma escola cheia de crianças, cheia de meninas que só queriam estudar. Entre elas, a minha filha

Com a voz embargada, ela relembra: "Hannah ficou em coma por 24 horas e quase morreu. Desde então, sofre com problemas físicos e psicológicos. Ela desenvolveu epilepsia e tem muitas convulsões. Continua sob tratamento aqui na Grécia".

Mãe de outras três crianças, Fareshta sabe que é privilegiada por não estar, agora mesmo, vivendo sob o domínio Talibã, mas faz questão de frisar que "podemos estar aqui, longe, mas nossa mente e coração não estão calmos, porque nosso país não está a salvo".

"Eu costumo dizer que eles podem fazer qualquer tipo de anúncio oficial, o que seja. Mas a grande verdade é que o Talibã não merece a nossa confiança. As caras deles não encaixam com a alma do nosso país. Queremos e precisamos de paz".

"Gente burra que só sabe matar"

Dentre diversos gritos de paz entoados ao longo da manifestação, uma música se destacava e era sempre cantada em uníssono: "Minha Terra", do compositor e poeta afegão Dawood Sarkhosh. A canção é considerada um hino por retratar, com precisão, as décadas de sofrimento e violência desde a ocupação soviética no Afeganistão, em 1979.

"Virei um morador de rua. Indo de casa em casa. Você [Afeganistão] é meu amor, minha existência. Meus poemas e músicas não têm sentido sem você", diz um dos trechos da canção, cantada em lágrimas por Bahar, 17 anos, natural de Jalalabad, cidade próxima da capital Cabul.

Ela é da etnia Hazara, com traços orientais e com um longo histórico de perseguições por parte dos Talibãs por serem xiitas. Os Hazaras formam, de longe, o maior grupo de refugiados afegãos em solo europeu.

Me sinto derrotada, queimando e me destruindo por dentro. Estamos falando de um grupo que já controlou nosso país por cinco anos. E como era a vida? Onde estavam os direitos das mulheres? Era e vai continuar sendo pior do que ser uma escrava

"Agora eles se proclamam Emirado Islâmico e são contra uma bandeira de séculos de existência. Estamos falando de gente burra que só sabe matar. Eles não têm qualquer educação. São burros mesmos. Perseguem artistas, e não entendem que um país só consegue se desenvolver se as pessoas têm acesso à educação."

Segundo Bahar, Sarkhosh previu muito bem o futuro do seu país. "A minha parte preferida é quando ele canta que a 'minha terra está cansada de perseguições e está impaciente, sem esperança'. É exatamente como estamos nos sentindo agora. Sem esperança."

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