A flor na pele

Três anos depois de seu assassinato, Marielle Franco vira tatuagem no corpo de mulheres que seguem seu legado

Mariana Gonzalez De Universa, em São Paulo

A vereadora carioca Marielle Franco foi assassinada há exatos três anos no dia 14 de março de 2018. De lá pra cá, Marielle virou símbolo de uma geração: seu rosto aparece estampado em muros pelo Brasil, em forma de grafite ou lambe-lambe; seu nome batizou ruas e até uma praça em Paris. A imagem da ex-vereadora, uma mulher negra, mãe solo, LGBTQ+ e cria de favela, está presente também nos corpos de mulheres que se identificam com sua trajetória, gravada de forma permanente com tinta de tatuagem.

Universa ouviu a viúva de Marielle, Mônica Benício (PSOL-RJ), e outras cinco mulheres que escolheram tatuar a vereadora como símbolo de luta — o termo, que segundo o dicionário de Oxford, significa "oposição firme ou violenta; esforço para superar, para vencer obstáculos ou dificuldades", aparece na fala de todas elas.

Carine Wallauer/UOL

"Cicatriz, metáfora, homenagem"

"Eu conhecia a Marielle, comemorei muito a eleição dela e acompanhei o mandato. A luta dela era pela voz daqueles que não têm voz, pela possibilidade de existir plenamente. Soube da morte por um amigo praticamente no momento em que aconteceu. Fiquei devastada. Senti que, se eles podiam fazer aquilo, podiam fazer qualquer coisa. Senti a falência política do Brasil, o rompimento total de um pacto social desde sempre esgarçado.

Para mim, a morte da Marielle foi o atestado de óbito da democracia brasileira.

Naquela época, eu fazia vídeos toda semana sobre a conjuntura política para um blog de política e o vídeo sobre a morte da Marielle foi o último. Pedi para sair, porque deixei de acreditar em soluções políticas por meio do diálogo, da comunicação. Como diz Paulo Lins, quando a bala fala, a fala cala. Não havia palavra que desse conta da execução em praça pública de uma mulher negra, periférica, gay, militante dos direitos humanos e vereadora eleita.

Fui sozinha à manifestação no dia seguinte à morte de Marielle. A primeira pessoa que encontrei, uma desconhecida, ao me ver aos prantos, me pediu um cigarro e um abraço (naquele tempo ainda podia abraçar). Falou: "Não consigo dizer nada. Só chorar". Despistei os amigos presentes ali para não ter que falar nada, não havia o que dizer, só queria ficar sozinha. Só andei e chorei.

Foi a falta de palavras o que me fez, naquele mesmo ano de 2018, cerca de um mês depois do assassinato, tatuar a Marielle no braço, como cicatriz, como metáfora, como homenagem.

Como registro de um tempo em que eu emudeci, mas também como forma de retomar a expressão, porque Marielle jamais se calaria, assim como a família e os companheiros dela nunca se calaram. A tatuagem foi minha forma de não me calar, e gritar: 'Marielle presente!'"

Camila Kfouri, de 42 anos, é psicóloga, psicanalista e mora em São Paulo.

Carine Wallauer/UOL

"Mesmo em meio à tristeza, vimos a revolta"

"Sou mulher, lésbica e militante política. Apesar de não ter as mesmas vivências que a Marielle, ela levantava a bandeira que pra mim é a mais importante quando a gente pensa em sociedade: igualdade, em todas as suas formas.

Infelizmente, conheci a Marielle na noite do assassinato dela, quando alguns grupos de WhatsApp começaram a disparar mensagens: "Marielle morreu", "mataram a Marielle". Comecei a pesquisar e de cara senti uma admiração enorme. Me lembro de só conseguir dormir às 3h, 4h da madrugada, completamente arrasada.

Nos meses seguintes, eu procurava uma maneira de externalizar todos esses sentimentos, um misto de revolta pelo assassinato e admiração por tudo que ela representava.

Vejo a tatuagem como uma grande homenagem, mas também como uma forma de mostrar o meu posicionamento político e os motivos pelos quais eu luto todos os dias. Tudo isso não poderia estar melhor representado do que pela Marielle.

Um detalhe que gosto muito é que a minha tatuagem mostra a silhueta da Marielle, mas sem os traços do rosto. Ou seja, é ela, mas podem ser tantas outras mulheres fortes, que lutam.

Três anos depois, Marielle deixa muitas lições. A primeira delas é que devemos sempre votar em mulheres para cargos eletivos — se tiver compromisso progressista, melhor ainda. É importante termos mulheres, especialmente negras e LGBTQ+ nesses espaços de decisão. É lá que a diversidade tem que explodir. A segunda é como o patriarcado vai lutar com unhas e dentes para que essa primeira lição não se concretize. Ele vai às últimas consequências para garantir seu status.

Mas, mesmo nesses momentos de profunda tristeza e indignação, que permanecem até hoje, nós vimos revolta. E isso é muito bom. Pessoas foram às ruas pedir por justiça, por memória, por democracia. Nós vimos mulheres juntas, assumindo o compromisso de não desistir, de se multiplicarem e se tornarem todas um pouco Marielle."

Laura Bimbato, de 31 anos, é analista de processos e mora em São Paulo.

Marielle deixa muitas lições. A primeira é que devemos sempre levar mulheres a cargos eletivos. A segunda é que o patriarcado vai lutar com unhas e dentes para que a primeira lição não se concretize.

Laura Bimbato, analista de processos

"Marielle foi assassinada a dois quilômetros de mim"

"Há quatro anos, pouco mais que isso, comecei a pesquisar em quem votar para vereadora. Eu não era ativista naquela época, mas decidi que escolheria uma candidata com causas voltadas para a desigualdade. E no pouco tempo em que Marielle pôde exercer o mandato, ela não decepcionou.

Desde que Marielle se elegeu, ela se mostrou uma força contrária ao caminho que trilhamos na política, de escuridão, extermínio de pretos e pobres. Se preocupava com todos os fatores que iam contra isso: educação, saúde pública, diversidade sexual e de gênero.

Em 2018, eu tinha um consultório no centro, e na noite do crime eu dormi lá. Marielle foi assassinada a um ou dois quilômetros de onde eu estava.

Quando acordei e soube da notícia, me senti silenciada, como se tudo em que eu acreditasse tivesse se encerrado. Não estou dizendo que Marielle era a única na luta, claro que não, mas naquele momento foi como se tivessem amarrado uma mordaça nas nossas bocas.

Um ano depois, houve um espancamento no meu prédio. Uma mulher teve um encontro com um rapaz e acordou sendo espancada por ele, quase morreu. Aquilo me deixou muito chocada, fez voltar o mesmo sentimento que me ocorreu depois da morte de Marielle: que a gente tem que recuar, se esconder para continuarmos vivas. É um movimento natural de preservação da vida, mas não podemos dar nenhum passo atrás.

A gente tem que tomar muito cuidado para andar sempre para frente, e esse é o recado que a Marielle deixa para mim. Foi aí que decidi fazer a tatuagem, minha primeira tatuagem.

Depois que essas duas coisas aconteceram [o assassinato de Marielle e o espancamento da vizinha], decidi colocar a mão na massa. Estudar sexualidade humana, e me especializei em sexualidade feminina. Meu plano era promover grupos de conversas terapêuticas com mulheres, para que elas tivessem conhecimento e autonomia sobre seus corpos, seu prazer. A longo prazo, que se tornassem menos dependentes emocionalmente de parceiros possivelmente violentos, agressivos. Também queria ajudar na alfabetização de mulheres adultas. Mas a pandemia adiou esses planos por enquanto."

Raquel Mello, de 39 anos, é psicóloga, especialista em sexualidade, e mora no rio de Janeiro.

Fernando Cremonez/UOL

"Conhecer Marielle abriu minha cabeça"

"Eu soube quem era a Marielle logo depois de me divorciar, em 2016. Mesmo morando em outro estado, sabia que tinha uma vereadora no Rio que fazia um trabalho muito bonito por igualdade e pelo reconhecimento das minorias, e a admirava bastante. É tão difícil colocar uma pessoa como ela num cargo legislativo e, de repente, ela foi tirada de lá com uma facilidade brutal.

Eu me identifico com a Marielle porque eu sou mãe, e me tornei mãe solo recentemente; também porque depois que eu me separei, passei a me relacionar com mulheres. Nada disso é esperado na minha idade: criar os filhos sozinha, namorar uma mulher.

Conhecer a história da Marielle, mesmo antes do crime, fez com que a minha cabeça fosse se abrindo, e com o tempo estou inserindo as temáticas de gênero, classe e sexualidade no meu trabalho. Sou professora universitária, e tento propagar esses valores na sala de aula.

Em 2019, pouco antes da morte da Marielle completar um ano, eu estava decidida a tatuar uma mulher. Eu tenho uma tatuagem da Frida Kahlo, que é mexicana, e queria tatuar um símbolo brasileiro da luta das mulheres, da população LGBTQ+. Já me perguntava há alguns meses quem seria essa mulher, até que um dia, durante uma viagem a Salvador, vi um grafite com o rosto da Marielle e pensei: "É ela".

Depois, pesquisando, descobri que nascemos no mesmo dia, com dois anos de diferença. Ela tem uma luta linda, e se a história dela já me encantava, tive certeza quando descobri essa coincidência. No Uber mesmo mandei uma mensagem para a tatuadora, que topou. Marielle é um ícone reconhecido internacionalmente, por que nós aqui não a reconhecemos também?"

Flávia Vieira, de 39 anos, é professora de Engenharia Ambiental e mora em Campo Mourão (PR).

Tiago Coelho/UOL

"Marielle me inspira a sonhar, a não me calar"

Nem todas as minhas tatuagens são carregadas de significado, mas todas expressam um pouco do que eu sou. Comecei a me tatuar bem novinha, aos 14 anos, e estava planejando a minha próxima tatuagem, quando me deparei com uma ilustração da Marielle enquanto folheava uma mandala lunar, em 2019. A imagem e a frase em torno dela ["Tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes", que Maiara também tatuou] me tocaram muito.

Eu não conhecia a Marielle, infelizmente ouvi seu nome pela primeira vez depois do crime, e me lembro de ficar me perguntando como eu não conhecia essa mulher que tem lutas tão próximas às minhas. E isso me fez olhar com mais carinho para mulheres que me inspiram e que estão aí hoje, vivas, lutando.

Às vezes a gente acaba dando mais atenção para mulheres que já se foram, quando tantas estão aí agora, precisando de apoio. É o caso da Renata Souza, da Talíria Petrone, da Sônia Guajajara, da Carmen silva que é uma baita lutadora do MTST, da Fernanda Melchionna e da Manuela d'Ávila, que são aqui do meu estado, e da própria Dilma [Rouseff, ex-presidente]. Todas elas poderiam estar tatuadas no meu corpo, porque lutam por um mundo mais justo, e inspiram a sonhar, a não me calar.

O que eu nunca tinha pensado é que ouviria comentários negativos sobre a tatuagem.

Uma vez, logo depois de tatuar, quando ainda estava com plástico, uma pessoa conhecida falou algo como "você tem tatuagens tão legais, poderia ter tatuado algo mais interessante". Na hora não tive reação, mas depois que refleti fiquei preocupada. Já recebi olhares estranhos no trem, na rua, e outros comentários de desdém, por exemplo quando perguntam: "É aquela mulher que morreu né?", como se não levasse a sério o que aconteceu. Marielle não morreu, foi assassinada. Como pode a pessoa não se atentar para a gravidade disso?

Maiara Silveira, de 23 anos, é atriz e professora de teatro, e mora em São Leopoldo (RS).

Lembro de ficar me perguntando como eu não conhecia essa mulher que tem lutas tão próximas às minhas. E isso me fez olhar com mais carinho para mulheres que me inspiram e que estão aí hoje, vivas, lutando.

Maiara Silveira, atriz e professora de teatro

Mônica Benício, as tatuagens e o luto

O rosto de Marielle foi parar no corpo de mulheres que não conheceram a vereadora em vida, mas também estampa o braço de quem convivia com ela dentro de casa: Mônica Benício, viúva de Marielle e hoje vereadora pela cidade do Rio, tatuou o rosto dela ainda durante o luto, poucos meses depois do crime. O mesmo fez a filha de Marielle, Luyara Franco.

A Universa, Mônica escreveu lembrando que fez a tatuagem como um presente de aniversário à esposa, em 2018, e contando que três anos depois da morte de Marielle, ver seu rosto assumir diferentes formas "faz com que o processo de luto seja mais difícil". Leia o relato da vereadora, eleita em 2020.

"Ainda acordo esperando que tudo seja um pesadelo"

"Decidi fazer a tatuagem ainda em estado de profundo sofrimento pela ausência dela. Marielle amava fazer aniversário, era a principal comemoração do ano. Então, ainda em 2018, fiz como presente de aniversário. Um presente que nos manteria ainda mais juntas pelo resto da minha vida.

A tatuagem é um gesto muito forte, me faz lembrar a todo instante nosso pacto de cumplicidade de vida, que também dizia respeito às lutas políticas que compartilhamos. Carregar a imagem de Marielle no braço me torna mais forte e reforça nossa aliança no enfrentamento às injustiças e à violência que aflige nosso povo. Eu olho o tempo todo pra ela. Converso mentalmente e verbalmente também. É uma forma de tê-la presente.

Vejo com muita emoção [que mulheres tatuem o rosto e o nome de Marielle]. Significa que o projeto político pelo qual Marielle lutava está cada vez mais vivo nos corações e mentes de quem não se esqueceu como a vida pode ser boa para todes, e de que podemos viver num mundo livre de preconceito, de opressões, onde cada um e cada uma seja respeitada por aquilo que é e escolheu ser.

É um sentimento complexo. As imagens da Marielle serem tão constantes em múltiplas formas faz com que o processo do luto seja mais difícil.

Até hoje acordo esperando que tudo não tenha passado de um pesadelo. A realidade das manhãs é sempre mais cruel. Mas acolho com muito carinho as homenagens. Que essa mensagem [de Marielle] se espalhe por todo o mundo, e que ela nos ajude a derrotar o sistema capitalista, machista e racista de uma vez por todas! A expressão "Marielle Presente" fala sobre vida. Fala sobre esperança. E isso é o que ela era em vida, e segue sendo.

Até hoje acordo esperando que tudo não tenha passado de um pesadelo. A realidade das manhãs é sempre mais cruel. Mas acolho com muito carinho as homenagens. Que essa mensagem [de Marielle] se espalhe por todo o mundo"

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