O futuro é feminino

Elas são adolescentes, estão transformando seus universos e provam que nada fará o feminismo parar

Natália Eiras e Jacqueline Elise da Universa Iwi Onodera/UOL

Teresa criou um coletivo feminista com as amigas. Gabriela fez valer a lei para que fosse chamada pelo nome social. Anna Lúcia salvou uma amiga de uma tentativa de estupro. Catarina aprendeu a amar seu corpo. Lilith foi uma das líderes de um movimento social. Elas têm 12, 15, 16, 17 e 18 anos. 

Vindas de diferentes contextos socioeconômicos e políticos, as adolescentes têm em comum o fato de terem descoberto o feminismo muito novas. Em uma idade em que o mundo de uma jovem parece se restringir ao grupo de amigos e ao pátio do colégio, elas têm preocupações grandiosas: "Qual o meu espaço no mundo?", "Por que as mulheres sofrem mais violência?", "O que será do nosso futuro?".

Por isso, falam com as amigas sobre autoestima, direitos femininos e violência contra a mulher. Elas são "apenas" cinco meninas, mas podem representar toda uma geração.

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"Fui xingada de 'feminazi' pelos meninos da escola"

Com nove ou dez anos, Teresa Batlickova, 12, cortou os cabelos curtos e virou alvo de chacota na escola. "Você parece um menino", diziam. Ela resolveu deixar os fios crescerem de novo e passou a usar mais vestidos. "Eu queria muito mostrar que era uma menina". Ela estava no quinto ano escolar.

Na mesma época, Teresa aprendeu uma palavra nova: feminismo. "Ouvi as meninas da minha sala começarem a dizer que eram feministas e perguntei o que era isso. Elas me explicaram que eram mulheres que lutavam pela igualdade, que querem receber o mesmo salário que os homens, que não querem trabalhar só em casa, igual antigamente. Aí, eu pensei: 'Que legal. Acho que sou feminista'", diz.

Um trabalho de escola fez com que seu contato com o movimento fosse ainda maior. O projeto pedia aos alunos que pesquisassem sobre problemas sociais e arrumassem uma forma de combatê-los. Foi assim que surgiu o Feminina Consciência, uma página do Instagram que ela e as amigas criaram para compartilhar informações sobre feminismo. Teresa e as amigas também distribuíram panfletos no metrô para conscientizar as pessoas sobre assédio, feminicídio e direitos iguais.

"A ideia de igualdade de gêneros chamou a minha atenção para o movimento. E quando eu comecei a ler mais sobre assédio, abuso e estupros, fiquei chocada. Aí, descobri os dados sobre desigualdade de salário, aquelas ideias machistas de que mulher tem que lavar a louça e ser maternal, mas que o homem não precisa. Tudo isso me fisgou, porque, desde pequena, a gente vê que as coisas não são iguais para meninos e meninas."

Na escola, depois do lançamento do Feminina Consciência, ela foi xingada pelos meninos de "feminazi" -- expressão pejorativa que compara a mulher feminista a um nazista. "Acho que eles não têm muita noção", diz.

Teresa sente que as pessoas ainda têm resistência em se identificarem como defensoras dos direitos da mulher. "Para mim, quase todas as meninas são feministas, mas nem todas se posicionam, sabe? Elas ainda têm medo dessa palavra."

O feminismo fez com que a estudante ficasse em paz consigo mesma. Nas férias escolares, Teresa se sentiu confortável o suficiente para cortar o cabelo curtinho de novo. Sendo ou não comparada com um menino, ela fica feliz com o que vê no espelho. "Eu gosto bastante da minha pessoa."

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Na escola, acho que a coisa mais importante é não deixar ideias machistas se espalharem entre os alunos

Teresa Batlickova, 12 anos

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"Arrombei uma porta e salvei uma colega de um estupro"

Moradora de uma casa sem reboco na zona sul de São Paulo (SP), Anna Lúcia de Alcântara Silva, 16, descobriu que era bissexual muito antes de entender o feminismo. "Eu gostava de algumas meninas, mas achava que era admiração". Aos 14, engatou um relacionamento que durou um ano com uma colega de escola. Mesmo receosa, se abriu com a mãe. "Mas ela nem ligou. Ficou com medo que eu fosse contar que estava usando drogas", ri. 

Foi na mesma época que começou a discutir os direitos das mulheres com amigas da escola e na internet. "Nunca gostei de roupa curta ou batom vermelho, mas ficava indignada que as pessoas chamassem as meninas de vadia por usarem esse tipo de coisa", diz. Quando sabia que algo do tipo havia acontecido, fazia questão de ir até a pessoa cobrar explicações. "Aí, o pessoal começou a me 'xingar' de feminista. Até que eu decidi que ia ser uma, mesmo." 

Segundo a estudante, às vezes, é difícil falar com as meninas da escola sobre direitos das mulheres e sororidade, mas ela não as culpa. "Elas crescem na favela, ouvindo músicas que incentivam a rivalidade entre a gente. É claro que vão entrar nessa pilha", afirma.

A falta de diálogo não a impede, no entanto, de ajudá-las. Em uma festa, salvou uma colega de uma tentativa de estupro. "Ouvi de dentro de um banheiro trancado uma menina falando, com a voz embargada, para o cara soltá-la. Arrombei a porta e a resgatei". Já na escola, Anna diz que ela e outras alunas se organizaram para afastar um professor que assediava garotas. Conseguiram. "Tem professor que olha para a bunda das meninas, comenta sobre o corpo delas. É errado."

Depois de um namoro que ela considera que não foi saudável, Anna está mais esperta quando se aproxima de alguém. "Já ouvi de meninos que eu era muito bonita para ser feminista ou que ninguém ia me querer se eu engordasse", conta. "Mas tem coisas que são tão idiotas que eu nem sei o que dizer..."

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As meninas da favela estão mais feministas porque se veem rebaixadas o tempo todo

Anna Lúcia de Alcântara, 16 anos

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"Não adianta brigar para não se depilar enquanto uma mulher é espancada"

Aos 18 anos, Lilith Cristina Passos, de São Paulo (SP), diz estar cansada. Pudera: a atriz luta desde os 15 anos, quando, durante o movimento dos estudantes secundaristas de 2016, liderou a ocupação do colégio em que estudava no Bexiga, no centro de São Paulo (SP). "Vivi esse movimento com muita intensidade", diz.

Dona de um cabelo afro poderoso, ela ainda tinha os fios alisados quando ajudou a mobilizar os colegas da Escola Estadual Maria José contra a reorganização escolar, proposta pelo então governador Geraldo Alckmin. Ela foi uma das muitas meninas que encabeçaram manifestações de alunos de escola pública.

Filha de uma jornalista, Lilith viu a efervescência do movimento feminista brasileiro pela primeira vez aos 14, quando acompanhava a mãe na cobertura das manifestações contra a criminalização do aborto. "Foi a primeira vez que senti que aquilo me tocava." Nessa época, ela também começou a se ver como uma mulher negra. 

Após a ocupação e estudando em uma nova escola, ela teve tempo para pesquisar sobre sua ancestralidade, estudou o feminismo negro e decidiu fazer a transição capilar. "Não fazia a menor ideia de como eram meus fios, porque eu os alisava desde os oito anos. Mas eu tinha que controlar o meu cabelo, não podia mais ser controlada por ele", fala. 

Lilith acredita que autoestima é um assunto importante, mas há problemas prioritários. "Não adianta brigar com o seu pai porque não quer depilar as axilas, se a moça que trabalha na sua casa é espancada pelo marido. É preciso ter a sensibilidade de olhar para as mulheres que sofrem violência", diz. 

Após três anos desde o movimento secundarista, a Lilith que gritava no microfone durante a ocupação mudou. Hoje, ela usa o teatro para falar sobre o feminismo negro e os movimentos sociais liderados por mulheres. "A gente tem que ter diálogo, cada um tem o seu tempo. Eu acredito no feminismo com afeto. Precisamos entender de onde as pessoas vêm para trazê-las para o nosso lado."

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Eu vou comendo pelas beiradas, para ver em que momento posso alcançar uma pessoa com meu pensamento

Lilith Cristina, 18 anos

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"Levei a lei na escola para poder usar o banheiro feminino"

Quando estava no sexto ano, em uma escola nova, Gabriela Gracioli, 15, já era vista como diferente. Antes mesmo de saber o que era gênero e orientação sexual, ela era tratada como um menino afeminado e punida por isso, a ponto de não conseguir mais frequentar a escola e repetir de ano.

Com 13 anos, então, descobriu-se Gabriela, menina transgênero. Assistir a vídeos no YouTube de outras pessoas trans foi crucial para entender seu corpo e se encontrar como garota.

Estudante de escola particular, ela conta que, apesar do acolhimento da família, foi mais difícil fazer seu colégio entender sua identidade. "Eu pedi para que mudassem meu nome na chamada e para usar o banheiro feminino. Eles resistiram, mas eu descobri que tem uma lei estadual [lei nº 10.948, de São Paulo], que determina que pessoas trans têm esses direitos. Eu levei a lei impressa para a diretoria e meu nome foi mudado na chamada e agora eu posso usar o banheiro de acordo com o meu gênero."

Logo depois veio a descoberta do feminismo. "Ser mulher vai muito além de roupa, de brincar de boneca. É um sentimento. Depois que assumi a identidade de Gabriela para o mundo, eu acabei entrando em contato com o feminismo por conta de toda a opressão que as mulheres sofrem, independentemente de serem trans ou não." E não demorou para que percebesse o machismo por ser mulher, mesmo tão nova.

"O assédio na rua foi enorme quando comecei a transição. Os caras ficavam buzinando na rua, me 'cantando', com 13 anos. Eu vejo esses homens mexendo com meninas de 11, e isso não é elogio. E, no meu caso, logo que eles percebiam que eu era trans, vinha o preconceito", conta.

Quando passou a se informar mais sobre o feminismo, com a ajuda da internet, descobriu seu potencial de mudar o seu entorno. "Eu transformei a minha mãe. Ela tinha uns pensamentos muito machistas, mas já ensinei muita coisa para ela, especialmente sobre ser transgênero. Minhas amigas também se sentem mais livres para se abrir comigo, porque eu só falo sobre feminismo, e falo mesmo, é importante."

Hoje, no primeiro ano do colegial, ela quer cursar design de moda na faculdade (gosto que, segundo ela, passou de mãe para filha) e descobriu a importância de não se calar e viver à sua maneira. "Eu tive muito problema de aceitação, principalmente porque eu estava num corpo com o qual eu não me identificava. Agora, estou me amando e adequando meu corpo à minha cabeça. Fui aprendendo que eu tenho orgulho de ser trans, tenho orgulho da minha história. E não tenho mais medo", afirma.

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Uma cidadã precisa saber seus direitos. Se eu não tivesse acesso à informação, estaria comendo na mão da sociedade

Gabriela Gracioli, 15 anos

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"Se não fosse o feminismo, eu estaria doente"

A estudante Catarina Atalah, 17, de Osasco (SP), cresceu ouvindo que ser mulher é "sofrer para ser bonita". Por isso, aderiu às mais diversas dietas "malucas". "Quando eu tinha 14 anos, eu e uma amiga entramos em um grupo na internet de pessoas que tinham bulimia e anorexia, onde elas trocavam dicas para emagrecer. A gente achava doentio, mas pensávamos que seria a forma mais fácil de perder peso. No fim, não consegui levar adiante", afirma. Ainda bem. 

Também aos 14, ela entrou em contato com o feminismo por causa de uma publicação no Facebook. "Na hora, achei que não precisava disso no século 21, que era muito 'mimimi'." Porém, percebeu, um ano depois, que estava socialmente em desvantagem em relação aos meninos. "Por ser mulher, gorda e lésbica, algumas coisas poderiam impedir que eu conquistasse o meu espaço." 

Hoje, na escola, ela ouve dos meninos que é "muito chata" por sempre puxar a orelha deles quando ultrapassam os limites. "É difícil, porque questões de gênero não chegam na minha escola", diz. No entanto, seu engajamento também a fez mais popular com os professores. "Eles começaram a conversar mais comigo, me convidar para projetos relacionados a feminismo e autoestima", fala. 

Mesmo ouvindo xingamentos como "feminista sapatão", ela considera que foi um alívio encontrar um discurso que dizia que sua silhueta não é um problema. "Se não fosse o feminismo, eu estaria doente". E ela gostaria que suas colegas de classe também tivessem esse conhecimento: "Na escola pública, tem muita menina alisando cabelo, brigando com outras por causa de garoto". O trabalho dela é de formiguinha. "Vou falando sobre a questão da autoestima com quem me dá abertura, individualmente." 

Após aceitar o corpo gordo, Catarina, que gosta de fotografar e pretende seguir a carreira de jornalista, agora está em um processo de aceitar os próprios traços. Por isso, raspou a cabeça no fim do ano passado. "Percebi que gostava do meu cabelo comprido porque ele me escondia. Sem ele, vou ter que lidar com o meu rosto na marra. É um processo..."

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É necessário dizer que somos feministas. Assim, você mostra que tem algo errado e que está aqui para mudar

Catarina Atalah, 17 anos

Como o feminismo mudará o seu futuro?

  • Teresa Batlickova, 12 anos

    "Para o meu futuro, acho que eu estou ganhando muita visibilidade por causa do feminismo e do projeto que fizemos na minha escola isso me deixa muito feliz. Ao mesmo tempo, a partir de agora, eu posso viver em um mundo bem mais justo e ter uma perspectiva melhor daqui para frente"

  • Gabriela Gracioli, 15 anos

    "Se eu vivesse alguns anos atrás, não teria direito de mudar meu nome, de fazer a cirurgia de readequação sexual, não conseguiria sair na rua. As mulheres não tinham voz alguma. E o feminismo está mudando tudo isso, com essa evolução, as mulheres têm mais voz e mais proteção"

  • Anna Lúcia, 16 anos

    "Antes, achava que tinha que ter uma vida estável para poder ter uma família. Meu sonho era esperar meu marido em casa com o jantar pronto. Hoje, eu ainda quero ter estabilidade, mas para poder cuidar de mim, ter minha casa, dar uma condição melhor para a minha mãe"

  • Catarina Atalah, 17 anos

    "Quando eu era criança, lembro que não podia mexer no comprimento do meu cabelo. Não podia sair de casa sem maquiagem. O feminismo me ajudou a encontrar a Catarina, não aquela que foi criada para ser uma bonequinha, mas uma mais forte e corajosa. E essa Catarina vai ser mais feliz"

  • Lilith Cristina, 18 anos

    "Comecei a reconhecer que posso conduzir livremente minha vida. Ganhei uma noção de quão possível é eu conseguir o que eu quiser. Foi uma fase de autoconhecimento. Percebi, nesse tempo, que sou uma terra de possibilidades ilimitadas. Eu sempre repito isso"

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