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Um ano e três meses após a morte da mãe, cartunista Estela May aprende a viver sem a energia de Fernanda Young

Estela May em depoimento a Ines Garçoni Colaboração para Universa

"A morte é um negócio que a gente não sabe como lidar mesmo. Ninguém sabe.

Quando ligaram para a minha tia e deram a notícia da morte da minha mãe, foi como se eu entrasse em uma nuvem. Você meio que flutua, sabe? É como se não sentisse nada por algum tempo.

Isso foi há um ano e três meses, ou seja, quase nada. Meu pai me telefonou no meio daquela madrugada, 25 de agosto, e disse que minha mãe estava no hospital por causa de um ataque de asma. Ela tinha ido passar o fim de semana sozinha na nossa casa em Gonçalves, no interior de Minas Gerais. Mas o resto da família —eu, meu pai e meus três irmãos— ficou em São Paulo.

Na hora que atendi o telefone, nem pensei muito. Eu tinha ido dormir no outro apartamento que temos aqui perto, no mesmo bairro de Santa Cecília, em São Paulo, como fazia às vezes. Só voltei correndo para casa.

Quando cheguei, estavam na sala minha tia Renata Young, meu pai e minha irmã gêmea, Cecília. O clima era muito tenso. Ficamos esperando chegar a notícia de que a crise tinha passado e que ela já estava melhor. Tudo durou menos de uma hora, mas parecia uma eternidade. O tempo não passava.

"Nossa Titi tinha morrido"

Até que o telefone da minha tia tocou. A nossa 'bilionária de ideias não faturáveis', nossa Titi, minha mãe, tinha morrido. Tão rápido e tão cedo, aos 49 anos. A pior parte de tudo aquilo foi contar para meus irmãos pequenos John, que tinha nove anos, e Catarina, de dez. Foi muito difícil e delicado, mas contamos juntos, eu, Cecília e meu pai. Fiquei anestesiada. Naquela hora, pegamos nas mãos uns dos outros e fizemos um pacto: 'Vai ser horrível, mas vamos em frente, juntos, por ela'. Nunca vou esquecer aquele momento.

Se fosse só ter perdido minha mãe, já seria o pior dos mundos. Mas ficou ainda mais esquisito porque, sete meses depois da morte, começou essa quarentena louca. Eu fiquei completamente pirada. Agora, só agora, acho que comecei a assentar, a compreender melhor o que sinto.

Estou passando por uma fase que, apesar de esquisita, não é necessariamente ruim. Tenho feito coisas de que gosto, com a sorte de passar esse tempo em casa com meus três irmãos e meu pai. Acho que estou indo bem. Sinto uma mistura de saudade imensa com muito amor e ternura.

"Estamos aprendendo a conviver sem aquela energia"

Eu não tenho religião, sou supercética. Nem sei se acredito em Deus. Mas é legal acreditar na onipresença da mamãe. Imaginar que ela está pairando em cima da gente, nos protegendo. Dá um conforto, preenche esse vazio enorme. Outro dia chegamos à conclusão, aqui em casa, de que, se tem alguém capaz de mexer os pauzinhos no universo para continuar acompanhando as nossas vidas, esse alguém é ela. Onde quer que esteja, ela está dando um jeito.

A nova rotina ainda é estranha. A energia dela moldava a casa: se estava triste, todo mundo sentia; animada, levantava o astral de todo mundo. Ela dava as ideias mais malucas. 'Vamos pra não sei onde', e a gente ia. 'Vamos fazer sei lá o quê', e a gente fazia. Estamos nos moldando, aprendendo a conviver sem aquela energia. Minha mãe era uma luz muito grande.

Vivemos de fazer pequenas homenagens. Meu pai [o roteirista Alexandre Machado, com quem Fernanda foi casada por 26 anos] sempre a chamava de Titi, e agora, quando fazemos um brinde, dizemos "Titi!" em vez de tim-tim. Ah, e tem a frase que a gente sempre repete quando alguém descaralha, fala o que quer, quebra tudo ou só diz alguma coisa que ela diria: 'Isso é tão Fernanda Young!'

"Ela estaria muito puta com essa pandemia, com esse governo"

Fico imaginando o que ela estaria fazendo e pensando com o Brasil e o mundo do jeito que estão, essa pandemia, esse governo Bolsonaro. Estaria muito puta, certamente. Completamente revoltada.

Ela tinha essa coisa de sempre falar o que pensava, além de ser precisa: sabia exatamente o que dizer para qualquer pessoa e em qualquer situação. Sinto falta do que ela falava, mais do que tudo. Não sei como estaria lidando com esse caos todo, mas acho que a gente já teria se mandado para a nossa casa no mato porque aqui está enlouquecedor.

Vou aprendendo como lidar com isso a cada dia. Tenho dias melhores, outros piores. Às vezes, me vêm pensamentos ruins, desconfortáveis. Outras vezes, ouço músicas que me fazem lembrar dela e me sinto bem. E vivo também uma crise existencial, que é minha. Estou tentando entender o que é a vida.

"Um pouco de humor com uma certa melancolia"

É nas pequenas coisas diárias que me pego com mais saudades. Quando leio uma passagem de livro e queria mostrar para ela, quando sai um filme a que a gente adoraria assistir juntas, isso dói. Aqui em casa sou a mais parecida com a minha mãe, enquanto a Cecília tem mais a ver com o meu pai.

Os gostos eram iguais: filmes, livros, roupas, sapatos. A diferença é que eu sou muito tímida. Já ela adorava falar. Era divertida. Só de estar perto a gente já sentia uma energia diferente.

E eu adorava aquelas tatuagens! Acho que ela tinha mais de 20 espalhadas pelo corpo. Cecília não pensa em fazer nenhuma, e eu tenho oito. Ela sempre me apoiava nas tattoos, e meu pai achava que eu estava indo rápido demais. Fiz a primeira em Londres, ela me levou. E foi uma situação superengraçada. Eu tinha 16 anos e, quando entramos no estúdio, minha mãe me disse, baixinho em português: "Teté, se perguntarem, diz que tem 18". Mas logo depois a tatuadora veio conversar com a gente em português. Era brasileira! A gente riu muito.

Gostaria que ela lesse o que eu escrevo quase todos os dias nos meus caderninhos. Já tenho cinco diários da quarentena. Queria mostrar meus desenhos diários na Folha para ela. Mas sei que é frustrante pensar assim. Ela teria orgulho, como já tinha antes. Meu trabalho e o que escrevo têm uma influência dela e do meu pai: eu diria que um pouco de humor com uma certa melancolia.

Tenho lido os caderninhos de quando ela era mais nova, coisas dela que encontrei aqui em casa. E fico pensando que, quando a gente perde alguém, se agarra a essas memórias, ao que a pessoa era e como ela pensava. Então, poder ler esses cadernos e textos me dá um calor por dentro. Tenho descoberto novas nuances nesses escritos, embora eu já tinha entendido ela, assim como ela já tinha me entendido.

"Ela sabia me explicar tão bem"

É dessa compreensão que sinto muita falta. Fiquei meio perdida sem ela porque ela sabia me explicar tão bem. Agora preciso reaprender a lidar com quem eu sou. Até me pego pensando como ela, de vez em quando. Por isso, ler o que ela escreveu me ajuda a ter um sentido de identidade.

Acabei entrando também numa crise existencial. Estou tentando entender o que é a vida. E penso muito em quem eu sou. Tenho 20 anos e me acho um bebezão. Nunca namorei e nem tenho certeza se já me apaixonei. Acho que sou bissexual, mas também não tenho plena convicção. Tenho muito para descobrir. Essa pandemia aprofundou essa minha crise porque eu paro para pensar e me pergunto: 'O que eu fiz até agora?'

Nunca fui muito de sair de casa, mas agora quero ser uma pessoa que sai, vê pessoas, faz amigos. Minha mãe dizia que eu era o tipo 'tímida blasé', que ficava sentada só olhando as pessoas falarem. Mas quero começar uma vida nova, interagir mais com os outros. Talvez eu deva ser mais Fernanda Young e virar mais sociável.

"Desenhar e escrever me ajuda a superar"

Desenhar diariamente me ajuda muito. É minha terapia. É meu jeito de me expressar desde os 13, 14 anos. Minhas tiras falam sobre coisas do dia a dia, o cotidiano me serve de inspiração, e às vezes tenho ideias meio malucas. É muito bom poder dizer algo para o mundo todos os dias.

Quando consegui o trabalho na Folha, há um ano e meio, meus pais ficaram superanimados. Ela adorava ver, comentar. Aqui em casa todo mundo é tão criativo que a gente nem para pra pensar. Sai criando e pronto. Uma coisa que sempre me animou muito era mostrar os desenhos para ela. Ter ela falando 'ah, que legal' me motivava muito. Ela ainda me motiva, de um jeito metafísico maluco. Gosto de imaginar que ela vê os desenhos que faço.

Escrever também é terapêutico, me ajuda a superar. Posto algumas coisas no Instagram e, quando falo sobre minha mãe, é legal sentir o amor todo das pessoas.

Mas, ultimamente, comecei a achar difícil lidar com a exposição da minha vulnerabilidade, mostrar que estou triste. Acabo me revelando nas tiras. Às vezes, mostro uma leva de desenhos para o meu pai e ele pergunta se eu estou bem. Eu digo: 'Estou, pai, é só um jeito de me expressar'.

"Vou trazer minha mãe comigo em tudo o que eu faço"

Estamos na mesma casa, rodeada das coisas dela. E põe coisa nisso! Ela dizia que, por ser taurina, não conseguia parar de acumular. De todos nós, sou a que melhor consegue lidar com essa herança. Vasculho as gavetas, adoro ver as fotografias antigas —é incrível como ela não saía mal em nenhuma foto. Meu pai ainda não consegue fazer isso, fica sensível.

Eles dormiam em quartos separados, porque meu pai ronca super alto e ela era famigeradamente irritável. Então, transformamos o dela em uma salinha confortável. É onde passo meus dias, no cantinho dela. Herdei a cama e os sapatos. São lindos, fiquei com todos. Tive a sorte de ser a única que também calça 34.

As roupas ainda não organizei. Estou começando, é roupa demais. Tem um verdadeiro tesouro aqui dentro de casa. Quero fazer uma exposição em homenagem a ela. Vou trazer minha mãe comigo em tudo o que eu faço, para sempre. E sentir uma espécie de presença mística dela.

Passei a vida vendo meus pais criando e escrevendo o dia inteiro, e tenho muito interesse em também criar meu próprio mundo. Amo cinema, quero escrever para a tela um dia e continuar desenhando. Mas, na pandemia, estou tentando não pensar muito no futuro. Só viver cada dia de uma vez. E que tudo isso acabe logo. Porque eu quero fazer coisas legais. Quero viver."

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