'Eu nasci assim'

Aceitação, terapia, bloqueio hormonal: os desafios que enfrentam as famílias de crianças trans

Carlos Minuano Colaboração para Universa, em São Paulo

"Meu nome é Agatha. Eu sou uma menina de pipi." Com pouco mais de 4 anos, a criança, explicou aos pais como queria ser chamada. "Minha filha começou a mostrar o desconforto de gênero no segundo ano de vida", conta Thamirys Nunes, a mãe da garotinha trans que hoje tem 7.

Apesar da certeza da menina, a transição foi um caminho difícil e cheio de desafios —para ela e para os pais. Orientada por uma psicóloga, a mãe ficou dois anos reforçando o masculino na filha. "Vivemos um inferno", relembra. Ela e o marido, Fábio Cassali, chegaram ao ponto de não sair mais de casa para passear.

Roupas e brinquedos eram os principais problemas. Ela queria vestido e bonecas. O pai tem uma filha de outro casamento, e o quarto da irmã mais velha, todo rosa e feminino, era onde a menina se sentia feliz.

Com 3 anos, Agatha pediu para a mãe chamá-la de filha e perguntou se poderia morrer e nascer menina. "Isso fez aumentar ainda mais minha angústia. Ela tinha um quadro de tristeza profunda e percebi que estávamos fazendo tudo errado." Thamirys resolveu liberar, só em casa, as roupas que a filha quisesse usar e os brinquedos com os quais ela preferisse brincar. "Não queria ser mãe de uma criança triste", explica.

Nessa época, o casal encontrou uma outra psicóloga em Curitiba, onde vive, que começou a esclarecer a condição de transgeneridade de sua filha. Pouco depois, descobriram o Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas de São Paulo. "Foi aí que aconteceu esse processo de transição da minha criança", conta a mãe.

Para Agatha, as coisas começaram a entrar nos eixos. Para Thamirys, foi o oposto. Ao ver o sonho de ser mãe de um menino ir por terra, desabou. "Entrei numa depressão profunda." Ela explica que, quando a criança nasceu, pediu para o marido fazer vasectomia. "Tive que lidar depois com a minha tristeza por saber que não teria mais o meu filho menino."

Os pais também precisaram lidar com ataques, questionamentos e críticas de familiares e amigos. "Mudamos de casa, de escola, fui fazer terapia e começamos uma nova vida", diz Thamirys. Após alguns meses, passado o luto pelo filho, ela percebeu que estava pronta e aberta para amar sua nova filha, Agatha.

Em seu processo, descobriu ainda que poderia ajudar outras mães na mesma situação. Em 40 dias, escreveu o livro "Minha Criança Trans", publicado em 2020 de forma independente e comercializado pelas redes sociais. "Nele, conto o que eu vi e senti na convivência com minha filha e quais fatores me convenceram de aquilo que não se tratava de uma fantasia, e, sim, de um processo natural dela."

Escutar e respeitar

Há famílias que têm o primeiro contato com uma pessoa transgênero por meio do próprio filho. "É muito difícil entender o que está acontecendo", diz Evelin Maciel, vice-presidente da Associação das Famílias de Transgêneros, que oferece orientação e acolhimento para pais e familiares de crianças trans.

Evelin é avó de uma menina trans de 9 anos. "Minha filha foi mãe adolescente, foi muito difícil encarar essa maternidade diferente." O contexto delicado levou a avó a assumir a guarda compartilhada da neta. "Eu, minha filha e meu marido somos os responsáveis por essa criança linda."

Várias crianças trans hoje estão recebendo uma atenção que não existia há poucos anos, diz Evelin. "É a primeira geração que está sendo ouvida desde pequena". Mas pondera que isso ainda é para poucos. "Muitas famílias ainda não sabem o que está acontecendo com seus filhos, e o atendimento é muito restrito."

Ela reclama da falta de políticas públicas de saúde para as crianças e os jovens trans. Em todo o país, são apenas três ambulatórios para atendimento vinculados a centros de pesquisa. Além do ambulatório do IPq em São Paulo, há outro em Porto Alegre, ligado à UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), e um na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Com base na experiência pessoal e na vivência com outras famílias e especialistas, Evelin deixa uma dica bem simples para os pais de crianças e adolescentes trans. "Eles precisam ser escutados e respeitados."

Questionada sobre uma pergunta frequente —qual é a idade mais indicada para iniciar a transição?—, ela responde que o momento ideal deve ser definido pela própria criança. Segundo Evelin, aos pais cabe ouvir e acompanhar, sem antecipar ou apressar nada. "Respeitamos a criança como um ser de direitos", completa.

Ela ressalta que a transição de uma criança envolve apenas a adoção de nome social, os pronomes que fazem com que ela se sinta acolhida e a mudança de roupas, mas defende que, quando a transgeneridade é identificada na infância, o melhor é agir logo. "Quanto mais cedo se dá a transição, menos traumas e disforia essa criança terá."

Como é o processo transexualizador?

  • Quem pode fazer

    Disponível no SUS (Sistema Único de Saúde) desde 2008, o processo transexualizador dá acesso a procedimentos como hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital e acompanhamento multidisciplinar. Entretanto, para menores de 18 anos, só pode ser realizado em centros experimentais de projetos de pesquisas.

  • Bloqueio hormonal

    Em pré-adolescentes, a partir do estágio 2 de uma escala chamada Tanner, é possível utilizar fármacos para suprimir o eixo hipotálamo-hipófise-gonadal para bloquear a puberdade. Em meninas transgêneros, impede o crescimento de barbas e pelos, nos meninos trans evita o desenvolvimento dos seios e interrompe o início da mestruação.Só é possível fazer em ambulatórios especializados.

  • Terapia hormonal cruzada

    Realizada a partir de 16 anos, a aplicação de hormônios masculinos ou femininos tem o objetivo de induzir a puberdade de acordo com a identidade de gênero. Embora ainda polêmica, a terapia para adolescentes está embasada na resolução 2265 do CFM (Conselho Federal de Medicina) de 2019, que reconhece a puberdade como um momento crítico para uma pessoa trans.

  • Cirurgia de redesignação

    Também chamadas atualmente de cirurgia de afirmação de gênero, envolve vários procedimentos cirúrgicos. Além da reconstrução das genitálias de acordo com a identidade de gênero, nas mulheres trans inclui, por exemplo, colocação de próteses mamárias e suavização de traços faciais. E, para homens trans, a retirada das mamas.

Por que uma pessoa nasce trans?

Apesar do sexo biológico masculino, Heloiza Barreto, hoje com 14 anos, desde pequena adorava roupas femininas, cabelos compridos e unhas coloridas. Mas lamentava não poder usar. Restava improvisar com a manteiga de cacau. "Era como se fosse batom", diz a jovem.

Um dia, com 11 anos, assistindo à série "A Vida de Jazz'', sobre Jazz Jennings, youtuber norte-americana transgênero, ouviu da mãe a pergunta: "Você se sente assim?". A resposta estava na ponta da língua: "Sou igual a ela".

No começo, sobravam interrogações. "Ficamos perdidos, senti uma tristeza enorme, nem Heloiza entendia o que estava acontecendo", conta a mãe, Dulce Rodrigues.

A fase mais difícil foi no colégio, por causa do preconceito. "Ela tinha 11 anos e se tornou agressiva." Dulce e a filha também buscaram ajuda no ambulatório no Hospital das Clínicas de São Paulo.

Heloiza começou a transição na pandemia e hoje está em uma nova escola. Dulce e o marido começaram a participar de reuniões onde conheceram outras famílias que vivem a mesma situação.

Heloiza conta que a vida na escola nova está muito boa. "Estou fazendo novos amigos, até ajudei outras pessoas a se descobrirem trans, gays e lésbicas. Claro que nem todos gostam de mim, mas está tudo bem, isso eu vou enfrentar em qualquer lugar."

As trajetórias dos personagens desta reportagem, embora repletas de dramas e conflitos, mostram que a história da população trans no Brasil está começando a mudar, ainda que a passos lentos.

Boa parte graças à ciência, que avança na busca por respostas para questões básicas. Como: por que uma pessoa é trans? "A criança nasce assim. Acredita-se que tenha uma base biológica, embora não se saiba ainda qual seja", responde o médico Alexandre Saadeh, que desde 1990 trabalha com variabilidade de gênero.

Pesquisas avançam sobre questões genéticas cromossômicas, desenvolvimento cerebral intrauterino e influências hormonais. Mas fatores ambientais, como influências do meio, também seguem como objetos de estudo, porque podem contribuir para a manifestação da transgeneridade, conclui o médico.

Foto Heloiza: Pryscilla K. Foto Heloiza: Pryscilla K.

"99% da população adulta transexual afirma que tudo começou na infância"

O ambulatório em São Paulo foi o primeiro do país a atender crianças e adolescentes trans e foi criado por causa dos casos que começaram a surgir, explica Alexandre Saadeh, fundador e coordenador do Amtigos.

"Já no primeiro ano de atendimento, em 2010, vieram dois adolescentes e, logo depois, uma criança de apenas 4 anos. A demanda foi aumentando." Segundo o médico, esse crescimento não foi uma surpresa. "99% da população adulta transexual afirma que tudo começou na infância."

Apesar disso, não era frequente ver crianças e adolescentes transexuais. "Era uma população invisível", comenta Saadeh. Mas, com o início do atendimento e a repercussão na mídia, a procura aumentou tanto que, em 2015, o ambulatório teve que encerrar a triagem para adultos. Hoje atende somente jovens.

A fila de crianças e adolescentes trans que buscam o serviço só aumenta. Em 2015 eram 30, em 2021 esse número subiu para 180. A espera pela triagem, porta de entrada para o serviço, pode chegar a um ano. Não é para menos: o ambulatório oferece gratuitamente atendimento psiquiátrico, psicológico, endocrinológico, terapia em grupo e acompanhamento médico no processo de transição.

Quando confirmada a transgeneridade, é feito o bloqueio hormonal, ou seja, a administração de medicamentos para impedir transformações corporais em desacordo com a identidade de gênero. Por exemplo: em meninas trans, não há o desenvolvimento de pelos e barbas. Nos meninos trans, não surgem seios nem há menstruação. "O bloqueio é instituído com autorização dos pais, além da concordância do adolescente e da família", afirma Saadeh.

A partir dos 16 anos, é possível fazer a hormonização cruzada (aplicação de hormônios masculinos ou femininos para o desenvolvimento físico de acordo com a identidade de gênero). Depois de 18 anos, a pessoa passa a ter acesso às cirurgias, como a de redesignação sexual (procedimento para reconstruir a genitália conforme a identidade de gênero), entre outras.

Tema divide opiniões de especialistas

Os procedimentos realizados no ambulatório do IPq em São Paulo estão de acordo com o que permite a resolução 2265 do CFM (Conselho Federal de Medicina), de 2019, que atualiza a anterior (de 2010) e apresenta novas regras para o cuidado integral em saúde de pessoas com incongruência de gênero ou transgênero.

Entre outros pontos, o documento normatiza a realização de hormonização cruzada e bloqueio da puberdade para crianças e adolescentes em caráter experimental e protocolos de pesquisa.

O coordenador do Amtigos, que participou da elaboração da resolução do CFM, ressalta, porém, que nem todas as crianças que chegam ao ambulatório passam pelo bloqueio hormonal, porque há casos de transgeneridade na infância que não se confirmam com o passar do tempo. O tema divide opiniões de especialistas.

Segundo dados de um parecer do CFM, baseado em pesquisas, entre 6% e 23% das crianças que apresentam alguma incongruência de gênero permanecem assim até a vida adulta. Porém, trabalhos mais recentes contestam essas informações.

É o caso de um estudo da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, publicado este mês na revista "Pediatrics". A pesquisa, realizada com 317 crianças de 3 a 12 anos, mostra que pessoas dessa faixa etária que se identificam como trans tendem a manter essa identidade. Após cinco anos, todas foram ouvidas novamente e 94% delas ainda viviam como transgêneros.

Se o consenso ainda passa longe em alguns pontos, não há dúvidas de que uma eventual necessidade de intervenção médica torna o diagnóstico muito importante. O acompanhamento da criança ou do adolescente por determinado período, que varia em cada caso, é que vai confirmar o gênero que ele expressa e vivencia, ressalta Saadeh.

Em muitos casos, prossegue o médico, não há necessidade de transição ou intervenção biotecnológica, basta deixar a vida seguir e a natureza tomar seu curso. "A ideia é que as crianças e os jovens se identifiquem e se reconheçam com quem na verdade elas são."

O universo das crianças trans

Autores do livro "Trans - Histórias Reais que Ajudam a Entender a Vida das Pessoas Transexuais Desde a Infância" (editora Globo), os jornalistas Renata Ceribelli e Bruno Della Latta revisitam na obra pessoas trans que encontraram durante a pesquisa para a série "Quem Sou Eu?", que foi ao ar em 2017 no "Fantástico" (TV Globo).

"Se a transgeneridade for identificada cedo, as chances de elas serem pessoas mais felizes são enormes", afirma Ceribelli. Ela cita, como exemplo, uma das personagens do livro que teve a oportunidade de fazer o bloqueio hormonal antes da adolescência, evitando sofrimentos e conflitos.

Segundo a jornalista, o livro busca também esclarecer aspectos relacionados à sexualidade, que ainda causam muita confusão. "Se depois vai gostar de menina ou de menino, isso não tem nada a ver com o fato de ser trans."

Para Della Latta, isso dá um nó na cabeça de muita gente. Segundo o jornalista, a abordagem sobre a infância pode ajudar a esclarecer esse ponto, essencial para a compreensão do universo trans: orientação sexual é uma coisa, identidade de gênero é outra.

Acesso a informações falsas e incorretas muitas vezes, prejudicam jovens em transição. Cerca de 70% dos adolescentes que buscam atendimento no ambulatório do IPq em São Paulo, tomam medicações por conta própria, muitas vezes em dosagens altas e utilizadas de maneira incorreta.

Os relatos no livro ressaltam também o papel da internet no acesso à informação de qualidade. "Foi fundamental para mudar a maneira de como a população trans se relaciona e se coloca socialmente", afirma Della Latta.

"Falar de transexualidade é delicado. Abordar essa condição na infância certamente é algo bem mais desafiador, mas também urgente e necessário", finaliza Renata Ceribelli.

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Reprodução/Instagram

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