Pelo, sim

Mulheres que assumiram os pelos na virilha e axilas contam detalhes de seus processos de aceitação

Júlia Flores De Universa

Nos anos 1960, quando as mulheres do movimento hippie pararam de se depilar em defesa de um estilo de vida mais "natural", causaram um choque na sociedade. Décadas mais tarde, no fim dos anos 1990, o assunto chegou a Hollywood pelos braços da atriz Julia Roberts, no momento que ela acenou para o público na pré-estreia do filme "Um Lugar Chamado Notting Hill", deixando evidentes os pelos em suas axilas. Depois dela, foi a vez de a cantora Miley Cyrus jogar luz no debate e viralizar nas redes sociais após tingir de colorido os pelos da região.

Recentemente, um movimento espontâneo da internet criou a campanha #januhairy, que incentiva mulheres que não se depilam a compartilhar imagens de seus corpos. A hashtag (uma brincadeira com a palavra cabelo e janeiro) já soma mais de 13 mil fotos espalhadas pelo mundo.

No Brasil, o assunto também tem ganhado força. Em um capítulo da novela "Um Lugar ao Sol", da TV Globo, a personagem Joy — vivida pela atriz Lara Tremouroux — apareceu em rede nacional com a axila não depilada, uma cena impensável anos atrás.

Ao mesmo tempo que muitas mulheres se sentem cada vez mais confiantes em assumir seus corpos do jeito que desejam, os pelos em corpos femininos ainda são estigmatizados, e encarados com certa repulsa pela sociedade.

Universa teve acesso aos números da "Pello Menos", uma rede popular de depilação feminina, e descobriu que, nos últimos dez anos, a franquia cresceu 49%, com a abertura de 25 novas clínicas pelo país, com mais de 370 mil clientes atendidas. Ao todo, a empresa conta com 50 unidades e foi a primeira a criar um plano de assinatura de depilação no Brasil, a fim de fidelizar seu público.

Depilação à brasileira

Não é de hoje que exportamos até o nosso próprio "estilo" de depilação — o Brazilian Wax, que consiste na total remoção de cabelos da virilha e da vulva. Para a socióloga e ativista feminista Jéssica Petit, essa imagem da vagina lisinha está fortemente atrelada à pornografia e à cultura brasileira de objetificação da mulher.

"A indústria do sexo vende a ideia de que uma mulher sexy é desprovida de pelos e, assim, estimula a infantilização do corpo feminino", diz. "O imaginário coletivo da virilidade masculina exige que o homem domine e exerça seu poder sobre corpos frágeis", comenta a autora.

Isso faz com que, mesmo inconscientemente, muitas de nós adotemos esse padrão de corpo liso como 'correto', natural, para não sofrer retaliações. "É preciso repensar a hierarquia social (e sexual!) entre homens e mulheres para mudarmos esse cenário", sugere.

A seguir, ouvimos quatro mulheres que repensaram suas relações com os cabelos íntimos. Para elas, deixar os pelos da virilha e da vulva aparentes nada tem a ver com descaso com a própria imagem; pelo contrário, está sendo um processo de descobertas, autoconhecimento e afirmação de uma nova feminilidade.

"Passei a infância sem usar biquíni"

Júlia Mota de Brito, 20 anos, estudante de bacharelado em Humanidades, de Salvador (BA)

"Comecei a trabalhar como influenciadora digital em 2019. Falava sobre astrologia e tarô, mas passei a reparar que as pessoas comentavam muito sobre o meu corpo e pouco sobre o conteúdo que produzia.

Na pandemia, parei de me depilar encorajada pelo isolamento social. Eu tenho Síndrome do Ovário Policístico (SOP) e um dos sintomas é o 'excesso' de pelos. Se eles já não são aceitos, imagina os meus que são em maior quantidade? Eu sentia uma pressão social muito forte.

Me depilei pela primeira vez aos 10 anos, depois que um menino disse que meu corpo lembrava o de um lobisomem

Ainda na adolescência, depilar virou algo compulsório. No começo, tirava os pelos com cremes depilatórios, até que resolvi testar a cera, aos 14; nunca me esqueço desse momento, senti tanta dor que chorei — parecia uma sessão de tortura.

Quando chegava nos centros de depilação, era sempre uma pressão. As depiladoras se assustavam, me olhavam com pena, como se tivesse alguma coisa errada no meu corpo. Uma vez, ouvi de uma ginecologista que, se não fizesse algo com meus pelos, nenhum homem se interessaria por mim. Passei a infância sem usar biquíni.

A repulsa sexual masculina nunca foi um problema. Sou bissexual e passei a maior parte da minha adolescência me relacionando com mulheres. Sempre ouvi que homens não gostavam de pelo, então, na minha cabeça, também não gostariam de mim.

Teve uma época que a depilação a laser virou moda. Lembro que cheguei a conversar com minha mãe para que ela me emprestasse dinheiro para fazer o procedimento, e tirar esse 'problema' da minha vida. Foi nesse momento que passei a refletir sobre o porquê de querer mudar tanto meu corpo.

Senti que não era uma coisa que eu fazia porque queria, mas por medo de julgamento externo

Para mim, ver uma ppk lisinha é estranho, não é algo natural. Tem toda a questão de ser um 'costume' brasileiro, mas acho uma infantilização desnecessária do corpo feminino. Decidi assumir meus pelos e hoje falo sobre aceitação na internet.

O vídeo que gravei mostrando meu corpo tem mais de 9 milhões de visualizações no TikTok. Claro que recebo muitos comentários ofensivos, dizem que homem nenhum vai me querer, que homem não acha isso bonito.

Acho que a cor influencia, sim, nessas ofensas. Quando alguém das redes sociais vai falar sobre o meu corpo, me chamam logo de macaca. Olham minhas fotos com pelos e dizem 'só podia ser preta'. O machismo é ainda mais forte com a negra.

Hoje, já não ligo mais para essas críticas. Fico feliz por ser a referência estética que nunca tive na infância."

"Não é por que passei a aceitar meus pelos que as pessoas vão fazer o mesmo"

Ellora Haonne, 24 anos, influenciadora digital, de São Paulo (SP)

"Hoje, lido com naturalidade com os meus pelos — vejo como acessórios (estou até pensando em pintá-los)! Não se depilar tem um peso simbólico e político muito grande, e o fato de as pessoas ainda estranharem só confirma o quão importante é apertar essa tecla.

No começo, não foi uma decisão parar de me depilar. Eu só fui esquecendo... esquecendo... E quando percebi eles estavam grandes. Ver as pessoas reagindo com estranhamento para algo que, para mim, era tão natural foi o impulso que precisei para continuar deixando crescer.

Meu pensamento sempre foi: 'Vou depilar quando EU quiser, quando for um desejo real. E não por pressão dos outros' e sigo até hoje assim!

Por isso, de vez em quando me depilo. Não tenho uma frequência; tem meses que raspo toda semana, aí fico seis meses sem depilar. Não sigo regras, é como eu quero — e aplico isso para minha expressão de gênero como um todo.

Acredito que, não é pelo fato de eu começar a lidar com naturalidade com meus pelos que as pessoas vão fazer o mesmo. Toda vez que uso regata eu percebo os olhares para minhas axilas e outras partes que ficam visíveis.

Às vezes, lido bem, às vezes não; já aconteceu de chegar em casa e ir correndo me depilar só de vergonha depois de ter recebido um olhar feio. Acontece, não vou mentir. Não me sinto na obrigação de ser sempre empoderada, só queria que as pessoas parassem de falar dos corpos alheios".

"Parar de me depilar foi quase como um ato de resistência"

Dilce Carvalho de Andrade, aposentada, 61 anos, de São Paulo (SP)

"Eu sou da geração que viveu a repressão, mas sempre fui rebelde. Na adolescência, tinha cabelo black power e tinha meu próprio estilo! Com o tempo, no entanto, precisei me encaixar em alguns padrões estéticos para 'sobreviver'.

Sou psicóloga de formação e sempre trabalhei em lugares convencionais. Para me encaixar no estereótipo, me depilava, porque sou uma mulher peluda. Até os 30, usava gilete; depois, passei a me depilar com cera.

O diagnóstico de um câncer de mama, porém, transformou a minha visão de mundo. Com quase 50 anos, meu corpo tinha mudado bastante por causa das sessões de quimio e radioterapia. Quando eu puxava a cera, parte da pele saía também. Decidi parar de me depilar e foi quase como um ato de resistência.

Estou aprendendo muito com os jovens. Se algo é considerado feio, é feio para o outro, não necessariamente para mim. A vida é muito breve e rara, temos que nos preocupar apenas com a felicidade.

Desde o tratamento, passei a redescobrir meu corpo; percebi, por exemplo, que não gosto de pintar a unha, fazia isso mais por ser uma convenção social. Hoje, não me depilo nem tiro sobrancelha. Uso bermuda, shorts curto, não ligo para os comentários dos outros, convivo em harmonia com meus pelos.

Cada vez mais eu entendo que a gente pode fazer o que quiser. Não pela opinião alheia. De vez em quando recebo algumas críticas — e elas vêm tanto de jovens quanto de velhos. Não ligo.

Sou aposentada e tenho dois filhos. Eles já entenderam que a 'mãe deles é assim'. Agora, estou sem me depilar, mas amanhã, se quiser, vou lá e faço, a vida é minha. É gostoso isso do envelhecer, de fazer apenas o que se quer. Contudo, é importante acompanhar as novidades, para não ficar preso ao passado. Hoje, quando olho para os meus pelos, digo: 'Essa sou eu!'"

"É hora de entenderem que mulheres adultas têm pelos!"

Marcela Guimarães, 26 anos, fotógrafa, de São Paulo (SP)

"Cresci em uma cidade do interior paulista, onde o clima é muito quente. Por isso, queria andar sempre de shorts ou saia, mas nem sempre 'podia', porque antes tinha que me depilar.

Me mudei para São Paulo e participei de um seminário sobre corpo feminino e isso me inspirou a criar meu próprio projeto fotográfico, o 'Mulheres Adultas Têm Pelos'.

A depilação já era uma questão para mim. Conforme fui amadurecendo, comecei a me questionar se eu realmente não gostava dos meus pelos ou se era pela opinião dos outros. Antes de assumir os cabelinhos de vez, era assim: ficava algum tempo sem me depilar, mas quando ia para a piscina, passava a gilete.

Comecei a fotografar o projeto em 2018 e, nessa época, já me depilava muito pouco. Desde então, nunca mais me depilei. Fotografei amigas, conhecidas, encontrei personagens por meio do Facebook.

Acho que são infinitos os motivos que fazem com que as mulheres se depilem 'à força'. O Brasil é um país quente, nossos corpos ficam expostos a maior parte do tempo e isso dá a ideia de que todo mundo pode opinar sobre esse corpo. Além disso, os filmês pornôs também reforçam os estereótipos da 'mulher perfeita'.

Já recebi muitos olhares — principalmente de nojo — por causa dos meus pelos. Entendo que chama atenção, que é algo fora 'do normal', mas nunca me arrependi da decisão de aceitar meu corpo tal como ele é, sem precisar passar por uma sessão de tortura por causa de padrões estéticos alheios".

Qual a função dos pelos?

A ginecologista Débora Rosa explica que os pelos funcionam como uma barreira de proteção e, no caso da região íntima, eles agem em conjunto com a flora vaginal, o PH e o hímen para garantir a saúde do colo do útero.

"O pelo é uma das proteções da região. Se a mulher quiser se depilar por completo, perderá uma barreira, mas ainda terá outras. Não tem problema. O que a gente precisa fazer é parar para pensar: 'De onde vem esse desejo pela depilação? Uma vontade da paciente ou ela está cedendo à pressão estética?", questiona a médica.

Fora a proteção, os pelos têm outras funções, como a médica e membro da Sociedade Brasileira de Dermatologia Patricia Silveira pontua: "O pelo caracteriza a maturidade sexual do humano, eles existem para identificar se você é ou não um adulto".

Ela desmente a teoria de que os cabelos causam mau odor. "O odor, na verdade, vem das glândulas sudoríparas. A região íntima tem um cheiro específico, e não é cheiro de rosas. Esse odor tem relação com a microbiota da mulher, a sua alimentação, o que veste e não com o fato de ter ou não pelos."

Para a mulher que sofre com mau cheiro na região, a ginecologista Débora Rosa orienta a utilização de calcinhas com materias leves e uma maior frequência entre os banhos. "A virilha é uma área em que suamos bastante; muitas vezes o cheiro nem é da vulva ou da vagina, e sim da virilha. A alimentação e o consumo de água também influenciam no odor. Quando bebemos pouca água, por exemplo, as toxinas ficam mais concentradas."

A ginecologista finaliza: "Mulher adulta tem pelo. E dá para manter a região limpa e preservada mesmo com eles; pode cortar, aparar. Vejo a depilação completa como mais uma pressão sobre o corpo feminino. Se a sociedade realmente estivesse preocupada com o pelo e a higiene, todos seríamos carecas".

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