O poeta e a musa

Conheça a história de um romance que começou depois dos 60 e agora aguarda a segunda dose da vacina

Nathália Geraldo De Universa Pryscilla K./UOL

O encontro na caminhada

O clima não era muito poético quando Carlos Moura e Rosangela do Valle se viram pela primeira vez, em 2015. Eles participavam de uma caminhada noturna pelo Centro de São Paulo com um grupo que se reunia semanalmente para apreciar arquitetura e ouvir histórias da região. Naquela noite, o tema foi o Crime da Mala —caso que marcou época, no início dos anos 1900— sobre o italiano Giuseppe Pistone, que matou a esposa, Maria Féa, colocou o corpo em uma mala e a despachou para o Porto de Santos.

Nas caminhadas, o relações-públicas e jornalista também vendia livros com poesias de própria autoria. Era 25 de junho, e ele chegou atrasado para o passeio. Nada impediu que o amor o encontrasse. Levada por amigas, a corretora de imóveis foi apresentada ao "poeta" e comprou um exemplar com os textos, que logo seriam dedicados a ela, a "musa".

Depois de quatro meses e um convite para ela conhecer o "cafofo", eles começaram a namorar. Há um ano, aos 63 e 64 anos, por serem do grupo de risco, Carlos e Rosangela vivem o amor como nos tempos em que jovens apaixonados só podiam ficar de mãos dadas.

O casal já é conhecido dos leitores de Universa: no Dia dos Namorados do ano passado, leram declarações de amor em vídeo para superar a distância causada pela pandemia. Agora, falam sobre amor maduro, poesia e os planos para quando receberem a segunda dose da vacina, prevista para o final de julho.

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À espera do amor

Carlos e Rosangela vivem no Centro de São Paulo. Ele mora numa quitinete, e ela, em um apartamento em frente à Câmara dos Vereadores. No topo do prédio dela, onde foram feitas as fotos desta reportagem, os dois fazem pequenas caminhadas e sentam-se no banco para conversar. Até dezembro passado, não haviam quebrado o isolamento. O amor precisou esperar.

"Falávamos todo dia por telefone. E ela tem um filho vigilante, que não queria que nos encontrássemos. Às vezes, ele me ligava e cobrava: Carlos Moura, você está andando por aí? Porque te liguei antes e você não atendeu", conta o poeta.

A internet sustentou a comunicação. Carlos precisou investir em um celular mais moderno e Rosangela diz que a adaptação para as conversas por vídeo foi fácil. O amor maduro, diz, tornou a distância menos inconveniente.

"Estamos numa idade que não existe: 'Não posso ficar sem'. É um amor mais tranquilo, mesmo na pandemia, porque é mais consciente, cada um tem sua casa. Não tem aquele imediatismo de quem tem 16 anos."

Em casa, sozinha, Rosangela se apegou a uma rotina de séries, leituras na varanda e esperar pelo sol que invade o apartamento. Carlos ainda precisou sair de casa para trabalhar e fazer reuniões.

"Estou mais produtivo, sustentado pelo amor que me liga a ela. Em minha mente e coração, a presença da Rô me trouxe equilíbrio e paz."

"Velhinhos bobos"

Agora, o casal estabeleceu uma rotina de encontros em que Carlos visita Rosangela aos finais de semana. Os dois se mantêm distantes durante os dates. As noites de sábado são para ver série, filmes e conversar. Rosangela cozinha, os dois dão risadas "como velhinhos bobos", brinca Carlos.

A regra é clara: não há beijo e eles não dormem juntos. "A gente passa o sábado e, às vezes, fico no domingo. É como os meninos da minha época: ela fica no quarto, eu, na sala. Só dá para pegar na mão", ele diz.

Dá uma pontinha de saudade da proximidade de antes, revela Rosangela, mas a admiração mútua preserva os sentimentos no namoro. "Sinto falta dele porque é uma pessoa amável, boa. Não é forçado... Ele é assim mesmo. Desde o dia em que me convidou para ir ao 'cafofo' e não nos largamos mais. Ele sabe como sou, como penso."

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A serenata

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Em setembro, Rosangela fez aniversário e Carlos decidiu que as declarações de amor não ficariam só no papel. Foi à rua para surpreender a namorada com um gesto romântico: armou uma cantoria para homenageá-la, com a ajuda de dois amigos, mesmo sem poder beijá-la ou abraçá-la. "A saudade era grande. Ela colocou duas máscaras e desceu, com as lágrimas caindo."

A serenata à tarde foi mais uma forma que o poeta encontrou para estar perto dela. "Nestes tempos, me sinto mais sensível. Ela é minha inspiração e ganhou um bocado de poemas meus. Talvez porque esteja sozinho, sem interferências de conversas, aí penso, repenso, divago...Vejo uma foto dela de bobeira, falo comigo mesmo."

Rosangela revela que o poeta se emociona muitas vezes ao falar sobre o namoro. "Ele é de câncer, chorão demais."

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Os versos

Pela porta entreaberta / um olhar triste, angustiante.
Por segundos, tento sorrir / mas, quedo-me à tristeza.

Ansiava o seu belo sorriso / que me faz feliz ao ver...
Garante-me a paz do dia / pois, alegria vem promover
Inquieto, abandono a cena / e imagino: foi um sonho ruim.
Ela não fica sem sorrir... / Após o "delei" a vi no jardim

O pior do atrevido "corona" / é afastar-me do sorrir "ao vivo"
de minha amada, minha musa / Por isso, o condeno à morte.

"Sem sorriso", poema que Carlos Moura escreveu para Rosangela

O futuro

Com o amor cercado por regras que os separam fisicamente mesmo morando perto um do outro, o casal não pensa em dividir o mesmo teto. Para ele, que saiu de casa aos 40 anos para viver sozinho, sem filhos, seria difícil dividir a rotina de um casamento.

Nisso também está o segredo do nosso relacionamento. Ela tem um espírito semelhante ao meu, de que a liberdade é o bem maior.

Para ela, que foi casada por 27 anos, a única chance de isso acontecer seria em uma casa em Santos, no litoral paulista. Rosangela fala desse sonho desde que conversou com Universa no ano passado.

Morar na praia, sim, seria uma conquista para ser realizada ao lado do namorado. Antes, ela planeja, o casal vai pegar a estrada. "O plano depois de tomar a segunda dose, no mês que vem, é alugar um carro e sair dirigindo com ele pelo interior de São Paulo, chegando até Minas Gerais. Gosto muito de viajar."

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