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Onde o Estado falha ou falta, essas mulheres dão suporte umas às outras

Elisa Soupin Colaboração para Universa

O direito à vida, à saúde, à educação, à privacidade, à igualdade, à liberdade de pensamento, à participação política, a não ser submetida à tortura, entre outros, estão entre os direitos fundamentais das mulheres no mundo todo, segundo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), criada pela ONU em 1979.

O principal documento internacional em relação aos direitos das mulheres impõe ao Estado obrigações básicas de eliminar qualquer discriminação baseada no gênero que prejudique as liberdades fundamentais das mulheres nas esferas política, social, econômica e cultural.

Mas os números provam que estamos longe de ter esses direitos garantidos. O Brasil, especificamente, sustenta a triste marca de 1 estupro a cada 10 minutos e 1 feminicídio a cada 7 horas. Os dados são do levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e divulgado nesta segunda-feira (7), véspera do Dia Internacional da Mulher.

Economicamente, o cenário para as mulheres também é desanimador. A crise que toma o país também atinge mais o sexo feminino. Em 2020, o IBGE divulgou que a taxa de desemprego entre as brasileiras foi de 16,4% —número 37,8% superior à taxa de desocupação dos homens. Entre as que têm emprego, a desvantagem salarial também é um problema: a diferença entre o que ganha um homem e uma mulher é de mais de 20%, segundo dados do IBGE de 2021.

E é onde o Estado falha ou falta, que mulheres arregaçam as mangas para ajudar a elas mesmas. Existe uma rede de amparo que tenta acolher, ajudar e, muito mais que isso, virar o jogo.

São mulheres que dedicam parte de suas vidas para ajudar outras mulheres que precisam. As necessidades são muitas: comida, segurança, moradia, emprego, refúgio da violência, políticas públicas que as contemplem... Neste 8 de março, conheça quatro mulheres e suas histórias que se entrelaçam com as de tantas outras.

Mais que um refúgio, um recomeço

Nana Sanches, 35 anos, é doutora em geografia. Atualmente, ela dá aula de geografia, história, ensino religioso e filosofia, do ensino fundamental até o EJA (educação de jovens adultos), mas é na coletividade - e mais especificamente na Casa Mirabal, de Porto Alegre, da qual Nana participa desde 2016— que vê a perspectiva de mudanças para as mulheres.

"Eu não consigo acreditar em feminismo sem coletivo, sem projeto. E a casa é uma referência que tem que ser replicada, precisa ter uma em cada bairro", diz Nana Sanches.

A Casa Mirabal fica em Porto Alegre e funciona como um abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica, mas vai muito além disso. É um lugar de acolhimento. A demanda pode ser por comida, absorvente ou qualquer outra necessidade. Lá as mulheres ainda recebem amparo psicológico e encaminhamento jurídico.

Nana conta que a casa já foi atacada pelo poder público diversas vezes. Ainda assim, "a própria Delegacia de Defesa da Mulher (Deam) passou a encaminhar mulheres para a Mirabal por não ter vaga nas redes do Estado. E também recebemos crianças, pets... É um ambiente humanizado, onde a mulher é ouvida, a gente elabora um plano de ação com a pessoa", explica.

A Mirabal hoje tem 5 quartos, 12 vagas e atende em torno de 10 mulheres por semana. A maior parte são mulheres jovens, negras, de baixa escolaridade, muitas das quais já são mães. Mulheres trans também são acolhidas. Cursos são oferecidos em parceria com a UFRGS para que quem passe pela casa saia com um ofício.

"A casa tem como objetivo não só tirar a mulher do ciclo de violência, mas ajudá-la a entender por qual motivo ela está neste ciclo e ir se armando, se estruturando para romper com ele", explica Nana.

O projeto é financiado por amadrinhamentos e doações de pessoas físicas.

Shaiane dos Santos Rosa, de 24 anos, foi uma das muitas mulheres ajudadas pela casa Mirabal. "Eu fui vítima de violência doméstica por 4 anos. Eu fui na Deam procurar abrigo, fiquei em um abrigo público e foi um inferno, tinha muita gente e, por causa da pandemia, eu não podia pegar meus filhos". Sem aguentar mais a situação, Shaiane resolveu sair e foi encaminhada para a Mirabal.

"Lá, eu senti a diferença. No outro abrigo parecia que eu era quem tinha agredido alguém, eu perdi minha liberdade. Não podia ter controle do meu próprio dinheiro. Não tinha o prazer que é estar com meus filhos". Na Mirabal, ela conta que voltou a conviver com os filhos, a estudar e passou por atendimento psicológico. Hoje, diz que está num momento melhor da vida. "Foi um espaço necessário para eu me reerguer", conta.

Uma luz (neon) no fim do túnel

Symmy Larrat tem 43 anos, fala ágil e um humor sagaz, do tipo que pega intimidade em minutos de conversa. Nascida em Belém do Pará, ela começou sua transição de gênero aos 30 anos, mas já fazia parte do movimento LGBTQIA+ muito antes disso.

"Eu rompi com a minha família aos 16 por conta da minha sexualidade, e, com a minha transição, ficou mais difícil arrumar trabalho. Fui me prostituir e comecei a morar em lugares mais precários", conta Symmy, que já vivia em São Paulo na época.

Ver a realidade de quem era expulso de casa por conta da orientação sexual e do gênero virou a chave para Symmy. "Essas pessoas precisavam de acolhimento de alguma forma", diz. Era preciso agir.

Assim, surgiu, em 2018, a Casa Neon, em homenagem a Neon Cunha, mulher negra e trans e ativista, com a ideia de ser um local de abrigo. Só que, no meio do caminho, tinha uma pandemia.

Symmy Larrat conta que os pedidos de ajuda vão desde comida até auxílio para a retificação de nome legalmente.

Em 2020, a Casa Neon conquistou um CNPJ, mas todo recurso passou a ser usado para ajuda emergencial. Em 2021, com a retomada gradual das atividades, a busca por um lugar para que a casa se estabelecesse seguiu. O preconceito entrou no caminho.

"A gente ficou 6 meses procurando um local. Quando as pessoas ficavam sabendo para o que que era, negavam, com as piores desculpas possíveis", conta ela. Com ajuda da iniciativa privada, o lar se firmou em São Bernardo do Campo e agora quer ser também um lugar de capacitação.

"Temos acolhimento psicológico, curso de nivelamento educacional com 40 pessoas trans. Em abril, a gente espera abrir as nossas portas e começar a abrigar. Teremos inicialmente 18 vagas. A gente vai ter um espaço de sociabilidade e convivência, com cursos de informática, manicure e pedicure", adianta Simmy, que conta com o apoio de 20 voluntários, que fornecem desde ajuda jurídica à psicológica.

Além de mulheres transgêneras, a casa também atende mulheres lésbicas. Todas as doações, em dinheiro, roupas, itens domésticos e mantimentos para o projeto, são bem-vindas.

Acolhimento para mães trabalhadoras

"Eu demorei muito para perceber que passava por várias situações na vida que vinham somente da minha condição de ser mulher", conta Eleutéria Amora da Silva, de 65 anos.

Em novembro de 1993, ela chegou de Fortaleza ao Rio de Janeiro com uma filha pequena. Já em terras cariocas, teve duas outras meninas. Em 1997, quando estava se separando, entendeu que, por ser mãe e mulher trabalhadora, muitas portas se fechavam para ela. Resolveu, então, abrir uma. Fundou a Camtra - Casa da Mulher Trabalhadora, que, desde então, se tornou um espaço de referência para mulheres.

"A Camtra surge da minha necessidade de lutar por políticas públicas. Como mulher, jovem e mãe, o mercado se fechava para mim. E eu precisava buscar creches integrais para as minhas filhas para que eu pudesse trabalhar", lembra a fundadora.

As necessidades que Eleutéria teve em 1997 permanecem atuais. A luta também segue e ganha corpo. Atualmente, a Camtra estima que 10 mil mulheres por ano sejam impactadas pelos serviços oferecidos, entre acolhimento, oficinas e ações. Tudo é financiado por meio de doações de projetos e executado por mão de obra voluntária.

A Camtra cresceu. Hoje, o espaço físico, que fica na Lapa, centro do Rio de Janeiro, tem quatro pilares básicos: a educação para a autonomia, a luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, o combate à violência contra as mulheres e participação das mulheres no mercado de trabalho.

"A gente distribui camisinhas femininas e masculinas, encaminha casos para o Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher, para as DEAMs. As principais demandas são as de estupro de vulnerável, violência doméstica e violação dos direitos das mulheres no mercado de trabalho", conta Eleutéria.

Para Érica Encarnação, uma das milhares das mulheres ajudadas pela instituição, a Camtra foi seu primeiro contato com o feminismo. "Conheci a Camtra através de uma cartilha que eu ganhei quando fui buscar uma cesta básica em uma ONG. Nessa cartilha, aprendi sobre direito das mulheres e as causas feministas. Me identifiquei e mandei um email para a Camtra, porque eu queria trazer para o meu território, Duque de Caxias, aquelas cartilhas assim outras mulheres poderiam se identificar também. A partir daí, passei a integrar as reuniões", conta ela, que na Casa recebeu ajuda em momentos de dificuldade financeira e psicológica.

Visão integral da saúde da mulher

Maria Fernanda Marcelino tem 46 anos de idade, 18 deles dedicados à SOF, a SempreViva Organização Feminista, uma das iniciativas feministas mais articuladas no país, com sede em São Paulo e atuação pela América Latina.

Quando tinha seus 20 e poucos anos, Maria Fernanda era uma jovem militante católica. E foi nessa militância que ela teve seu primeiro contato com a SOF, que organizou uma atividade com a ideia de conversar com as meninas para que elas entendessem que seu próprio destino podia ser mais do que casar e ter filhos. Era possível sonhar com outras coisas.

"A gente sempre percebe as diferenças que existem entre homens e mulheres na sociedade, entre meninas e meninos. Então, no meu tempo, era o medo da gravidez precoce, da Aids, a opressão dos pais controladores com o corpo das meninas, o que podia e o que não podia fazer. E a sobrecarga de trabalho das meninas, já desde muito cedo", fala.

Fundada em 1963 como "Serviço de Orientação Familiar", a SOF não só promove mudanças: ela também muda e se diversifica para acompanhar os tempos e as demandas das mulheres.

Muito antes que o SUS, criado em 1988, fosse sequer uma ideia, a SOF funcionava como um lugar em que a saúde da mulher era levada em conta de uma maneira abrangente. "Era uma proposta diferente, de visão integral da saúde da mulher, da construção de um atendimento que olhasse a mulher como um todo e não a partir apenas da função reprodutiva. Às vezes, a mulher procurava o médico com depressão ou com marcas de violências domésticas, mas o que era olhado era a gravidez", diz Maria Fernanda.

"Lembro de ouvir, em algumas situações, que o grupo já ajudou mulheres a não colocar um fim na própria vida e outros tipo de agradecimentos muito práticos como 'ainda bem que essa ajuda chegou pra comprar esse remédio, eu não tinha dinheiro pra esse medicamento que o SUS não entrega", conta Maria Fernanda.

Hoje, a organização pensa cultura, economia, agroecologia, políticas públicas, racismo, ações e movimentos, sempre pelo viés do feminismo e pela emancipação das mulheres.

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