"Essa falta de ar é coronavírus ou ansiedade?". Há quem diga que 2020 foi "o pior dos anos" - mesmo que ele ainda esteja caminhando para a reta final. Na internet, em tom de ironia e cumplicidade, os memes representam as sensações coletivas de fadiga, medo e solidão. Diante de tanto desgaste, o significado de autocuidado também se transformou. O que antes poderia ser visto como um ritual de beleza de domingo à noite, que se resumia a um hidratante no corpo e uma máscara no rosto, tocou em pontos mais profundos e virou questão de sobrevivência.

As mulheres sentiram os impactos da pandemia com mais intensidade. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos mostra que, durante a pandemia, elas têm mais propensão a desenvolver ansiedade, insônia e enxaqueca do que os homens. Outro estudo, realizado pelos institutos Rede Mulher Empreendedora e Locomotiva, apontou que 86% dos negócios liderados por mulheres fecharam ou funcionaram apenas parcialmente durante o isolamento social.

Entre aquelas que cuidam dos filhos, as principais queixas, de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade de Valência, são de tristeza, apatia, desmotivação e cansaço. Independentemente de suas posições na sociedade, todas foram afetadas. A panela de pressão ficou ligada durante meses e a conta recaiu sobre a saúde mental. E estabelecer uma rotina de skin care ou só acompanhar páginas inspiradoras no Instagram não é suficiente para resolver o problema.

O que fazer para levar o bem-estar? Lá em março ou abril, quando a situação da pandemia parecia mais temporária, multiplicaram-se as dicas e tentativas de novos hobbies. Praticar yoga com ajuda de tutoriais de internet ou aulas online virou hit e os estoques de tapetes para a prática dos exercícios chegaram a ficar esgotados em lojas online. Outra ideia que se tornou popular em programas de televisão e nas redes sociais foi a preparação de pães caseiros, o que também deixou muitos supermercados desabastecidos de fermento biológico.

Com o ambiente doméstico se transformando em local de trabalho, surgiu também uma onda de aconselhamentos sobre como manter o foco e elevar a produtividade - muitos deles, enfatizando o lado positivo das mudanças geradas pela quarentena. Como se permanecer em casa fosse uma oportunidade para realizar mais projetos, pessoais e profissionais.

Em pouco tempo, eles se tornaram uma espécie de pacote. "Esse se tornou o esperado, o jeito saudável de viver a pandemia", opina a psicóloga Raquel Guimarães. Ela não invalida nenhuma das atividades, mas alerta que se trata de um momento único - e que deve ser encarado como tal. "O melhor caminho para se ajudar e se acolher é perceber a si mesma. Talvez, em um ou mais dias, o jeito de fazer isso seja ficar na cama vendo uma série. Talvez seja experimentar fazer algo de novo na cozinha, mas porque esse foi um desejo genuíno e não por sentir que precisa fazer", diz.

Fato é que em 2020 autocuidado virou negócio. No Instagram, a hashtag #selfcare está presente em mais de 37 milhões de publicações. Em 2018, a Apple divulgou que o tema self care foi a tendência número um entre os aplicativos baixados no ano, a maior parte deles voltados para a saúde mental. Neste mesmo ano, um relatório publicado pela empresa IRI apontou que o mercado de saúde e bem-estar, atrelado à ideia de autocuidado, movimenta US$ 450 bilhões apenas dos Estados Unidos.

"Existe uma indústria que pega as palavras relacionadas ao tema e transforma em produto. Determinadas empresas estimulam a fazer a unha, comprar uma roupa e criar uma rotina de skin care como fórmula para se cuidar. Essas ações até podem fazer parte do que chamamos de autocuidado, desde que não estejam penduradas em um outdoor e tidas como uma lista a ser cumprida", diz Raquel. Não é possível criar uma regra do que é bom e do que é ruim consumir na internet. Cada pessoa deve fazer um refinamento interno e cuidadoso para entender se as páginas que está consumindo mais inspiram ou mais geram pressão interna para corresponder a um padrão.

A turbulência chegou para todos. A psiquiatra Gabriela Balduino conta que tem recebido no consultório cada vez mais pacientes novos. "Muitos deles não tinham histórico de transtornos mentais, ansiedade ou insônia, mas desenvolveram nos últimos meses", diz. Além disso, muitos daqueles que haviam sido diagnosticados e que estavam estabilizados através de tratamento, apresentaram uma piora. "É uma situação de ameaça real, à nossa saúde e à saúde das pessoas que amamos. Ela nos gerou muitas dúvidas com relação à economia e ao futuro - e o ser humano, de forma geral, não lida bem com esse sentimento", aponta.

A seguir, três mulheres relatam como se desestabilizaram ao longo da quarentena e o que estão fazendo para, pouco a pouco, retomar suas atividade

Talvez tenham te dito que...
- Pandemia não é desculpa para deixar de fazer exercícios físicos.
- É preciso seguir uma rotina de treinos "para não engordar".

Ingrid gostaria que você soubesse que:
"O primeiro passo para cuidar do corpo é tomar consciência de que está nele."

Para isso, ela tem algumas sugestões:

- Mesmo dentro de casa, a rotina pode ser agitada e tensa. Faça uma pausa de três a cinco minutos para observar sua respiração. Ela o seu movimento de vida.

- Busque se adaptar: não é fácil ficar no mesmo ambiente tanto tempo. Para muitos, isso significou deixar de fazer movimentos que antes eram naturais, como caminhar diariamente pela rua. Mas os exercícios físicos ajudam na manutenção do bem-estar e vale a pena dar uma chance para eles.

- Faça testes para escolher aquele que te proporciona mais bem-estar dentro do que é possível no momento. Pular corda, dançar, fazer yoga, pilates ou ginástica usando o peso do próprio corpo são algumas das alternativas possíveis de serem praticadas em casa.

- Escolha o exercício sempre pelo prazer, nunca para emagrecer. Para funcionar, a prática deve ser feita por lazer e por amor ao corpo. Quando alguém começa a fazer exercícios visando a perda de peso, dificilmente consegue manter a rotina por muito tempo, porque se trata de uma motivação externa. Já quando o aspecto motivacional é interno, o processo flui melhor. Lembre-se de que cada um tem ritmo.

- Procure a ajuda de um profissional, ainda que a distância, para orientar a prática dos exercícios. Não siga treinos de amigos ou conhecidos, pois isso pode ser prejudicial.

- Mantenha sempre uma garrafa d'água por perto e deixe seu corpo devidamente hidratado.

- Se estiver trabalhando de casa, tome consciência das articulações e movimente-as ao se levantar pela manhã ou em outros períodos do dia. Para prevenir a tendinite, segue uma garrafa de dois litros cheia e faça movimentos com o punho.

- Sente-se com a postura correta sempre que possível: isso evita complicações de saúde no futuro. Se trabalhar em frente ao computador, veja se a tela está em uma altura adequada, para não forçar a coluna cervical.

- Sempre escute o que seu corpo tem a dizer. Se sentir algum tipo de dor, ainda que fraca, veja se é possível amenizá-la através de exercícios para o fortalecimento de músculos ou alongamentos.

- Não se esqueça de tomar sol. Identifique o cantinho da sua casa onde ele costuma aparecer e permita-se ficar ali por alguns minutos.

Talvez tenham te dito que:
- É preciso "manter a forma" na quarentena.
- Ficar em casa é uma tentação para "comer demais".

Fernanda gostaria que você soubesse que
"O autocuidado passa sim pela alimentação. Mas não só pelo que ingerimos diariamente: também pela forma como nos relacionamos com a comida e com a própria imagem". Para isso, sugere:

- Não transformar o comer saudável em uma obrigação e as refeições menos saudáveis em motivo de culpa.

- Enxergar a alimentação como uma maneira de fornecer energia para o corpo. Lembrar que ela pode ser gostosa e que não é errado sentir prazer através do paladar.

- Entender que dietas restritivas são feitas para não funcionar: quase ninguém consegue sustentar uma dieta a longo prazo. No fim, a maioria das pessoas que tenta, acaba frustrada ou decepcionada consigo mesma.

- Compreender que nossa autoestima flutua - e, no fim do dia, o importante é não se odiar. Ninguém gosta da própria aparência o tempo todo e nem precisa fazer isso. Mas evitar criticar excessivamente o corpo é um exercício de compaixão que só traz benefícios.

- Lembrar, nos dias ruins, que somos mais do que nossa imagem. Ninguém se resume à aparência: todos temos personalidade, conquistas, memórias e sonhos, que nos tornam seres únicos.

- Evitar seguir na internet personalidades que falam apenas sobre perda de peso ou que estimulam, indiretamente, que você se sinta insatisfeita com seu corpo. Não há razões para comparar sua imagem com a delas.

- Desconfiar ao ler sobre alimentos superpoderosos ou que estão na moda. Confiar na sua capacidade de fazer escolhas conscientes e de identificar quando está com fome e quando está saciada.