"Vai passar"

A geneticista Ana Tereza Vasconcelos lidera o laboratório que concentrará uma rede nacional de coronavírus

Giuliana Bergamo de São Paulo René Cardillo/UOL

Quarta-feira, 18 de março de 2020. O coronavírus chegava ao Brasil para ficar. O número de casos confirmados (428) e de mortes (4) aumentava, mas ainda havia muita dúvida sobre quais medidas de proteção deveriam ser tomadas. Enquanto governadores dos estados mais atingidos, como Rio de Janeiro e São Paulo, já colocavam em vigor a quarentena, o presidente Jair Bolsonaro começava a firmar seu discurso anti-isolamento.

Foi então que Ana Tereza Vasconcelos, 57, percebeu que era hora de agir. "Com tantos diagnósticos positivos, precisávamos nos preparar para começar os sequenciamentos do vírus o mais rápido possível", diz ela que é coordenadora do laboratório de bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis (RJ).

O sequenciamento genético é um retrato detalhado do vírus. Permite contar sua história, entender detalhes sobre a estrutura e o funcionamento do microorganismo, saber de onde ele veio e como se comporta. A partir dessas informações, uma série de medidas podem ser tomadas. Inclusive decidir se o melhor caminho é o isolamento horizontal (quando toda a população deve ficar em casa) ou parcial, que restringe o contato apenas de pessoas infectadas ou mais vulneráveis.

Para realizar a empreitada, Ana reuniu, a toque de caixa, o equipamento, o material e a equipe necessários — incluindo pesquisadores de fora do estado. A ideia era traçar o genoma do maior número possível de amostras do vírus para entender detalhes sobre a ameaça. Para isso, conseguiu amostras de pacientes do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Rio Grande do Sul.

O maior desafio, no entanto, viria a seguir: garantir que o material chegasse a Petrópolis. "Como diversos voos já tinham sido cancelados e as estradas começavam a fechar, havia o risco real de que não conseguíssemos", conta. Foi um dia inteiro de tensão até que, por volta das 18h da sexta-feira, 20, as amostras chegaram trazidas de avião cargueiro sob responsabilidade do virologista Renato Santana Aguiar, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

"Paramos todos os outros projetos que estávamos tocando e passamos a nos dedicar exclusivamente à covid-19", diz Ana Tereza. Em 48 horas, o time formado por mais sete pesquisadores e pesquisadoras identificou o genoma de 19 amostras do vírus causador da pandemia. A análise realizada pelo LNCC comprovou que o coronavírus já circulava dentro do Brasil — não era mais apenas trazido de fora. Além disso, mostrou que os vírus circulantes no Brasil herdaram características de outros, sobretudo dos europeus, mas já haviam assumido uma identidade típica daqui. "Mostramos, com provas científicas, que o coronavírus já circulava entre os brasileiros e, por isso, medidas de isolamento rigorosas eram realmente necessárias".

Por que o trabalho de Ana Tereza é importante

O vírus decifrado

O sequenciamento genético de um vírus permite saber detalhes sobre a estrutura e o funcionamento do microorganismo. Além disso, conta sua história, mostrando de onde veio e quais mudanças já sofreu. Dessa forma, dá pistas de como pode ser combatido. Quanto mais informações, melhor.

Big data e ciência

O Laboratório de Bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica, liderado por Ana, abriga o supercomputador mais potente da América do Sul. Essa infraestrutura foi decisiva para que o LNCC tivesse papel central nos estudos sobre o vírus no Brasil.

Informação integrada

É lá que serão armazenados e processados os dados dos genomas de coronavírus colhidos no Brasil por uma força-tarefa que deve começar nas próximas semanas. Batizada de Rede Vírus, ela deve envolver laboratórios dos quatro cantos do país.

Rede Vírus, uma força-tarefa nacional

A experiência daria as bases para um trabalho que deve começar nas próximas semanas, assim que o material necessário chegar ao Brasil. Trata-se de uma cooperação de laboratórios espalhados pelo país, a chamada Rede Vírus, que tem como meta conhecer a fundo milhares de exemplares do microorganismo. O projeto será financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Telecomunicações. O LNCC, de Ana Tereza, tem papel central na operação, pois vai concentrar todos os dados, que depois serão disponibilizados para a comunidade científica internacional. Dela também participará a dupla de geneticistas da USP Ester Sabino e Jaqueline Goes que, em fevereiro, sequenciou o vírus que infectou o primeiro paciente atendido no Brasil.

"O LNCC foi escolhido pela infraestrutura e pela expertise da equipe liderada por Ana. É lá que está o Santos Dumont, o maior supercomputador de larga-escala da América do Sul", diz Aguiar. De volta a Belo Horizonte, onde vive e trabalha, o pesquisador tem se dedicado a exames de diagnóstico da infecção de pessoas infectadas. "Precisamos entender o que faz com que alguns casos se agravem e até evoluam para morte", diz. O material analisado por Santana e equipe também será encaminhado para Petrópolis.

O fim de semana D

Entre os dias 20 e 22 de março, Ana Tereza Vasconcelos e outros sete pesquisadores e pesquisadoras sequenciaram 19 amostras de coronavírus. Elas foram colhidas em cinco estados brasileiros. A análise do material comprovou que o vírus já circulava entre brasileiros e tinha adquirido características próprias daqui. Por isso, medidas drásticas de isolamento seriam realmente necessárias.

Ciência no home office

Antes da pandemia, quando Ana Tereza e boa parte dos brasileiros ainda podia chamar o dia a dia de rotina, a geneticista trabalhava bem longe de casa. Mas nem por isso deixava o clima acolhedor para trás. Moradora de Copacabana, onde vive em um apartamento com os filhos adultos, de 27 e 29 anos, ela ia ao LNCC de ônibus, numa viagem de pouco mais de uma hora. No laboratório, os dias eram cheios de trabalho, mas sempre havia tempo para uma pausa com os colegas.

"Ana é do tipo agregadora, que faz questão de manter a equipe unida e se preocupa com todos", diz o pesquisador Ronaldo da Silva Francisco Júnior, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Genética da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Há tempos, a geneticista levou uma máquina de pão para o laboratório e criou o hábito de assar um fresquinho todos os dias, para comer junto com a equipe. No fim de semana em que eles trabalharam com as amostras do novo coronavírus, porém, a máquina ficou desligada. "O clima de união e a euforia eram grandes, mas não tivemos tempo para papear", conta.

O pão e o café compartilhados ainda terão de esperar um pouco mais. Depois do fim de semana em que Ana Tereza e sua equipe desvendaram os 19 genomas, ela se fechou em casa, em quarentena. "Só dei uma ou outra saída para comprar comida. Mas vou ficar aqui até que o material para fazer novos sequenciamentos chegue. Enquanto isso não acontece, trabalho de casa para não me expor e colaborar com a medida de proteção para toda a população", diz ela.

Tem sido e será um momento muito dramático, mas acho que vamos valorizar nossas interações humanas, a convivência com quem amamos, e que seremos mais solidários. Assim eu espero.

Ana Tereza Vasconcelos, coordenadora do laboratório de bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica, em Petrópolis (RJ)

Vai passar. E sairemos dessa mais solidários

Com mais de 30 anos de carreira, Ana Tereza já teve a experiência de lidar com uma variedade enorme de amostras — das humanas, passando pelas tumorais, até às de microorganismos perigosos porém comuns, como os causadores da dengue e da febre amarela. Também já teve atuação central em momentos desafiadores para a ciência brasileira, como durante a epidemia de zika, quando o LNCC trabalhou com as amostras do vírus. Mas a pandemia trouxe muitas novidades.

É a primeira vez que ela lida com um coronavírus, com uma crise sanitária tão grave e também com técnicas e dispositivos novos. O sucesso do sequenciamento das 19 amostras contou com o bom desempenho de um novo aparelho, testado pela equipe na ocasião. Trata-se do Mini-Ion, um sequenciador portátil, um pouco maior do que um pen-drive, muito mais rápido do que os convencionais e que permite fazer leituras genômicas fora do laboratório, como em áreas remotas da África, onde também já foi usado. "Não tinha certeza se o dispositivo ia funcionar conosco. E tudo tem saído muito bem", diz.

Apesar de reconhecer e se preocupar com a gravidade do momento, Ana mantém uma postura otimista. Tem tentado aproveitar o tempo em casa para momentos de afeto e lazer com os filhos. "Quando encerro meu trabalho, lá pelas oito, nove horas da noite, abro um vinho, preparamos algo todos juntos na cozinha e assisto a um filme com os meninos", diz.

Daqui a alguns meses, quando o período mais crítico passar — "e vai passar", garante —, ela acredita que sairemos com alguns ganhos. "Tem sido e será um momento muito dramático, mas acho que vamos valorizar nossas interações humanas, a convivência com quem amamos, e que seremos mais solidários. Assim eu espero."

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