Um jurídico mais legal

Como Adriana Mori suavizou a área de Legal & Compliance da Samsung e criou um comitê para inspirar mulheres

Cláudia de Castro Lima Colaboração para Universa Lucas Seixas/UOL

Formada em direito, Adriana Mori, 45, trabalhava como gerente geral da área jurídica de uma grande empresa, há alguns anos, quando seu diretor saiu. Ela ficou quase um ano tocando o departamento e, sempre que os colegas diziam que ela deveria assumir a diretoria, respondia que não estava preparada. Até que contrataram uma outra pessoa para o cargo sem nem consultá-la.

"Eu estava esperando que viessem e falassem: 'Adriana, presente: você vai ser a head agora do jurídico'", diz a executiva. Passados os meses, ela percebeu que seu novo diretor não era mais qualificado do que ela. Aprendeu a lição.

Tempos depois, quando já trabalhava na Samsung, a mesma coisa aconteceu. Ela não teve dúvida: disse para seu superior que estava preparadíssima para ocupar o cargo de diretora e que queria essa chance. O executivo gostou da coragem e da ousadia e hoje ela é a líder da área de Legal & Compliance da empresa sul-coreana, responsável por contratos, proteção de dados, propriedade intelectual, direito ambiental e contencioso (área que cuida dos interesses da empresa) além de prestação de consultorias internas.

Adriana sabe que o departamento jurídico das empresas tem fama de duro e de chato. "Esse é um dos desafios da minha profissão, as pessoas acham que o jurídico barra tudo. Vivo falando: 'Gente, eu sou legal e dá para a gente fazer tudo, é só agir de acordo com o compliance [diretrizes ética da empresa]'", ela brinca. Para provar isso, implementou o que chama de "jurídico mais aberto" na Samsung. "Hoje as outras áreas me procuram muito. Tentei deixar tudo um pouco mais leve: quando chegam aqui, a gente bate papo, dou minhas opiniões, apresento argumentos", afirma. "Me sinto muito mais próxima do business, das pessoas."

Adriana também sentiu na pele como as coisas costumam ser mais difíceis para as profissionais. Por ser mulher ou por ser jovem, sofreu tentativas de intimidação e olhares de menosprezo. Sentiu-se na obrigação de provar mais, por isso estudava muito, se preparava melhor.

Para evitar que esse ambiente tóxico persista ou se instale, criou um comitê feminino, o Women's at Samsung, que reúne mulheres para discutir coisas como plano de carreira, medos, ansiedades. Homens são bem-vindos, até para que entendam os anseios e evitem comportamentos machistas. "Vendo e ouvindo mulheres inspiradoras, a gente se fortalece e, assim, acaba motivando mais mulheres para cargos de liderança. Porque, às vezes, o que falta é mesmo motivação."

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3 dicas para as mulheres que querem chegar lá

Tome coragem e deixe claro que você tem interesse e pode assumir novas posições. É preciso se posicionar.

Sobre mostrar para seus superiores suas ambições

Ouça todo mundo, ainda que você discorde do que a pessoa está dizendo. E reflita sobre o que ouviu.

Sobre respeitar e fazer-se respeitada

Dê autonomia e feedbacks para seu time. É seu papel desenvolver pessoas e se clara e objetiva.

Sobre a importância de se comunicar bem

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Você deu aulas de piano quando era adolescente. A música trouxe algum aprendizado para sua vida?

Meu pai toca acordeom e a minha casa era daquelas onde que sempre tinham festas, alguém cantando, tocando. E eu gostava de piano, só que ter um era caríssimo. Meu pai me incentivou muito, me colocou na aula. Eu treinava praticamente todo dia em um conservatório. Depois de uns anos, ele me deu um piano novo, um Fritz Dobbert, que eu tenho até hoje. É xodó. Aos 15 anos, passei a dar aulas e cheguei a ter uns 30 alunos, entre crianças e amigos dos meus pais. Sempre fui muito agitada, ansiosa, e a música me ensinou a trabalhar a concentração, a ansiedade, me deixava mais calma. Dar aula também me trouxe paciência e capacidade de comunicação, além de me deixar mais criativa. Sem contar que eu ganhava um dinheirinho e aprendi a lidar com ele.

O que a atraiu para seguir carreira no direito? Alguém de sua família era advogado?

Tirando agora meu marido, sou a única advogada da família. Nunca tinha pensado nisso, apesar de, desde criança, ser muito combativa, defensiva. Sempre estive advogando, sabe? Prestei vestibular para fonoaudiologia, música e direito, completamente louca. Passei em todos e tentei direito. E, no fim, tive muita sorte de ter escolhido a profissão correta, porque eu amo o que faço. Mas lembro que, no começo da faculdade, observava as pessoas no tribunal e pensava: um dia quero ser poderosa assim. A realidade, claro, é completamente outra, tem que ralar muito.

Você trabalhou em escritório e depois foi para o direito corporativo. Foi uma mudança brusca?

Fiz estágio no Tribunal Regional do Trabalho e assistia a muita audiência, via o trâmite interno de decisões. Depois passei por dois escritórios-boutiques de médio porte, que trabalhavam para empresas. Conseguia advogar para várias atividades, varejo, indústria de construção civil, química. Quando fui convidada a trabalhar em uma empresa de varejo, foi muito mais fácil virar a chave, porque eu tinha essa visão do outro lado. Na empresa, a gente faz mais consultoria. Não sou eu que vou executar a defesa, não vou para a audiência, mas sei como quero que o advogado que contratei se porte nela, porque já estive lá.

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Como você projetava seu crescimento na carreira?

No começo, não sabia o que queria, então fiz vários estágios que me ajudaram a experimentar. Quando estava em escritório, já me veio a vontade de trabalhar em empresa, e em uma grande. Eu pensava: daqui a tantos anos quero ser gerente; depois de tantos mais, quero ser gerente sênior até chegar a head. Sempre tive essa ambição. Mas nunca fui tão corajosa.

Por quê?

A gente, como mulher, acaba sendo muito autocrítica ou muito perfeccionista. Nos podamos muito pensando: será que eu posso? Será que tenho capacidade de realmente de fazer tudo isso? Será que não preciso estudar um pouquinho mais? Eu nunca achava que estava preparada para ocupar aquele cargo.

A tal da síndrome da impostora, tão comum entre as mulheres.

Exatamente. Agora tem nome. Eu tinha isso e aprendi a duras penas a não ter mais. Quando trabalhava em outra empresa, era gerente geral na área jurídica, tinha muitos liderados e fiquei sem diretor. Passei quase um ano cuidando do departamento, ralando de trabalhar, me dedicando muito e tocando tudo. As pessoas falavam que eu tinha que assumir o departamento jurídico e eu dizia: não, não tenho coragem, essa cadeira é grande para mim. E tomei uma invertida grande da vida: colocaram outra pessoa no lugar.

Eu estava esperando que chegassem a mim e dissessem: "Adriana, presente: você agora vai ser a head do jurídico". Mas aprendi que não é assim. Você tem que falar aquilo o que quer, tem que comunicar. Comecei a observar que o profissional que veio para o cargo não era mais qualificado que eu. E que eu poderia, sim, ter ocupado a cadeira. Por que não me posicionei? Por que não falei: tenho capacidade, sim, vamos fazer um teste? Não tive essa coragem, então aprendi com a vida.

E colocou o aprendizado em funcionamento?

Sim, na segunda oportunidade que tive, aqui na própria Samsung. A gente trabalha com muitos expatriados e um deles, coreano, certa vez ficou sem o diretor e falou: "E agora?". Eu tinha menos de um ano de empresa, chefiava só o contencioso, e respondi: "Agora eu assumo a área". O coreano olhou para minha cara, talvez pensando que eu era louca, mas disse: "Quer saber? Acho que é você mesmo quem tem que assumir". Eu falei que tinha minhas condições: queria de fato o cargo, porque não queria ficar como gerente sênior e depois alguém falar que vinha uma pessoa para ser diretora. E também queria autonomia. E um homem, expatriado, coreano, acreditou em mim e me deu essa oportunidade. Mas foi porque eu falei.

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Teve de fato essa autonomia que queria?

Sim, ele realmente me deu 100% de autonomia e fui construindo o meu time, no formato de um jurídico mais aberto, que sempre dá treinamento, que procura as áreas. Perguntei para cada gestor o que esperava do departamento, o que faltava, no que eu podia ajudar. Busquei entender os projetos deles. Na Samsung, inovação é o DNA, é uma coisa muito dinâmica, um dia um produto, outro dia outro. Então a gente tem que estudar muito e estar muito perto do negócio. Foi o que fui fazendo. Hoje estamos inseridos em todas as áreas. E você quer saber? Eu não estava preparada para o cargo, tinha que me desenvolver, aprender muito de Samsung ainda. Mas eu disse que estava preparada porque, afinal, é assim que todos os homens fazem. Se eles podem, por que não posso também?

Como a pandemia afetou você e seu time?

Foram vários impactos. Essa crise fez os departamentos jurídicos trabalharem demais. Acompanhamos milhões de decretos municipais, estaduais e federais para entender o que abriria ou fecharia e onde, porque o consumidor tem que ter uma assistência técnica. Além disso, teve legislações tributárias e trabalhistas que mudaram. E eu não estava preparada para trabalhar de casa, nunca tinha feito isso. Fora que não é um home office normal, toda sua família está lá. No dia a dia, nunca tive hábito de colocar mesa, tirar a mesa, e parece que passo o dia todo fazendo isso agora. Trabalhei muito mais, fiquei muito mais exausta, mas percebi também que a gente, como time, produz muito bem em casa ? e essa é uma das lições. Tinha medo de como ia administrar meu time, porque sou muito do contato pessoal. Conseguimos não perder a proximidade fazendo cafés da manhã e happy hours virtuais. Fui desafiada como mãe (ela tem duas filhas, de 6 e 16 anos), como profissional e como líder, mas resolvemos nossos problemas e todos ficaram felizes com nosso trabalho.

O meio jurídico é machista?

Já foi mais. No começo da minha carreira tinha muito mais advogados e juízes homens. E eu era jovem, tinha cara de novinha, então achavam que não estava preparada para cuidar de determinados processos. Às vezes, ia a audiências em que o preposto, que é o representante da empresa que vai à audiência com você, era um homem ? e, por eu ser mulher, ele se sentia superior. Eu tinha que me posicionar para mostrar que éramos iguais. Tinha que estar sempre um pouco à frente dos meus colegas homens, estudar mais, estar com o processo na ponta da língua, entender todos os detalhes, porque eu sabia que quando sentasse com o preposto ele ia me fazer vários questionamentos para me avaliar. Já chegava mais dura, às vezes nem tão gentil. Hoje já não é tão assim. Muitas mulheres são head de departamentos jurídicos, o que me deixa muito orgulhosa. Não é mais um universo dominado por homens.

Qual a importância em ter uma liderança feminina em quem se inspirar?

Com minhas chefes mulheres, aprendi a me posicionar, a fazer negociações. Acho que é muito importante ter uma figura assim, porque mostra que você pode estar lá. Mas também sempre me inspirei muito na minha mãe. Sem ela, não teria me desenvolvido na carreira.

De que forma ela a inspirou?

Minha mãe é muito forte, muito guerreira. Vem de uma família humilde, mas, mesmo sendo dona de casa, sempre se posicionou. Ela passou por dois cânceres de mama e nunca reclamou. Sempre dirigia para lá e para cá, foi independente, resolvia as coisas, organizava tudo. Eu tive uma família diferente. A gente viajava muito para acampar, sempre brinquei com os meninos. Ela nunca fez distinção entre a minha educação e a do meu irmão. E me incentivava a me virar. Depois, quando tive minhas filhas, ela foi meu braço direito, podia confiar nela para fazer as viagens, para me dedicar ao trabalho. Se não fosse ela, não sei quanto me sentiria segura para fazer tudo isso.

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Suas filhas têm uma diferença grande de idade, sua relação com a maternidade foi diferente nas duas gestações?

Passei por dois diferentes momentos de carreira como mãe. Casei muito nova, aos 24, e fui mãe aos 29. Tive muito medo de falar que estava grávida, parecia que eu estava cometendo um erro gigantesco. Nenhum homem imagina o quanto pode ser duro para uma mulher falar no trabalho que está grávida. Passei muito mal, tive vários enjoos, mas, como fazia muita audiência, ficava bastante fora, viajava, e pensava: tenho que ir. Morria de medo de reclamar, de perder o emprego, de a promoção ser mais difícil ou não sair. Não queria que ninguém me achasse café com leite, sabe? Eu queria ser igual, trabalhar igual, viajar. Na segunda vez, eu já era bem mais velha, só que tinha um chefe homem, então foi mais difícil ainda para falar. Esperei até o último minuto para contar.

Você se sente julgada por se dedicar ao trabalho e ser mãe, como se uma coisa invalidasse a outra?

Ah, em vários momentos me senti e me sinto assim. Acho engraçado. Até hoje tenho que viajar muito. Quando vou fazer uma viagem mais longa, as pessoas falam: "Mas e as meninas?" Às vezes até mulher, amiga, pergunta. Mas quando é meu marido que viaja ninguém pergunta isso para ele. Então eu já sou julgada automaticamente. Quando viajo, as meninas ficam muito bem. Hoje a gente tem tecnologia, então nos falamos todos os dias por vídeo. Elas sabem que a mãe está viajando porque é importante para a carreira, é importante para nós todas. E elas têm o pai, que dá todo o suporte.

Você criou o comitê Women's at Samsung. Por que achou que ele era necessário?

No começo, não achava que era, porque não via a questão da diversidade como um problema na companhia e também tinha medo do rótulo. Muita gente ainda acha que, quando falamos de feminismo, estamos querendo ser superiores aos homens ou nos colocamos numa posição fragilizada. Feminismo não é isso: o que a gente busca é igualdade. Resolvi conversar com outras líderes mulheres. E só aí notei que tem muita coisa que a gente não percebe e precisa trabalhar, os tais dos grandes vieses inconscientes. A gente tem que desenvolver network. Homens sempre têm grupos: o de futebol, o do pôquer, o da moto, e a gente não tem grupo de nada. Quando o comitê começou, então, éramos quatro heads de departamento, em 2016, mais um homem. A ideia era discutir mulheres na liderança, como podemos trabalhar para desenvolvê-las, reter talentos. Fizemos várias atividades, trouxemos palestrantes, muitas mulheres inspiradoras para falar sobre o tema e também gente de dentro, além de sempre incentivar que os homens participassem.

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