Que comece o matriarcado

Nestes 467 anos de SP, conheça mulheres que lutam por uma cidade mais justa para meninas, mães e trabalhadoras

Lígia Mesquita Colaboração para Universa

Formar uma rede de apoio para mães. Debater afeto e sexualidade com meninas periféricas. Transformar em ritmo e poesia as dores femininas nas ruas. Celebrar a ancestralidade da mulher negra em um dos momentos mais emocionantes do carnaval.

Nesses 467 anos de São Paulo, Universa conta a história de cinco mulheres que lutam para que a cidade seja mais empática e justa com todas nós. Numa metrópole com mais 12 milhões de habitantes - no qual somamos 51% da população, segundo a Fundação Seade - elas escolheram se colocar na linha de frente desse imenso desafio.

Beth Beli, presidente do Bloco Afro Ilú Obá de Min, e a poeta Mel Duarte fazem isso por meio de arte. Já Elânia Francisca, com seu projeto "Sexualidade Aflorada", e Maju Giorgi, com a ONG Mães pela Diversidade, comandam ações afirmativas para combater os efeitos das desigualdades de gênero.

Esta reportagem também destaca o legado de Marina Kohler Harkot. Em 8 de novembro de 2020, a socióloga e cicloativista de apenas 28 anos foi morta violentamente fazendo o que mais acreditava para uma cidade melhor: pedalando. Em vida, Marina foi uma voz potente na discussão da mobilidade urbana e de como o uso de bicicletas pode melhorar o dia a dia das mulheres.

Marina, assim como Beth, Mel, Elânia e Maju, mostram o poder transformador do olhar feminino para as grandes cidades.

Arquivo pessoal
Carine Wallauer/UOL

Beth: a mão que comanda os tambores

Na sexta-feira de Carnaval 2021, em 13 de fevereiro, o Bloco Afro Ilú Obá de Min, formado por mulheres negras, fará seu cortejo pelas ruas do centro de São Paulo como acontece há 16 anos. Desta vez, de maneira virtual, já que ainda não há previsão de vacina contra a covid para todos.

Imagens dos desfiles de outros carnavais serão projetadas em locais no centro da cidade por onde o bloco passa mostrando danças e cantos em iorubá, proveniente das culturas populares africanas e dos terreiros de candomblé. Também será exibido o manifesto criado com o tema do desfile virtual de 2021: "Pequenas Grandes Áfricas #esuasencruzilhadas", que propõe uma reflexão sobre as concepções de território para as mulheres negras.

"Nós, negros e da periferia, somos a população que mais está sofrendo com a pandemia. Por isso a decisão de marcar presença virtualmente no Carnaval. É uma maneira de a gente se reencontrar nessa encruzilhada, já que a rua é a nossa potência", diz Elisabeth Belisário, a Beth Beli, presidente e uma das fundadoras do grupo.

A cientista social e musicista de 52 anos, nascida e criada na Brasilândia, bairro da zona Norte, é quem comanda uma bateria formada por 450 mulheres e cuida de outros projetos da associação Bloco Ilú Obá de Min - Educação, Cultura e Arte Negra. Desde 2005, a entidade, cujo nome significa "mãos femininas que tocam tambor para Xangô (orixá da justiça)", trabalha com o empoderamento feminino em São Paulo por meio de aulas de percussão, canto e dança.

As mulheres do Ilú aprendem a tocar o tambor contra a intolerância religiosa nos cultos aos nossos orixás, contra a transfobia, o sexismo, as relações abusivas e a violência. Acho que as inspiro a compreender que sonhar é bom, mas concretizar é melhor ainda.

Sonhos esses que, aos 17 anos, Beth começou a concretizar a partir do momento em que tocou um tambor. Para que muitas delas pudessem frequentar as aulas, o Ilú Obá abriu suas portas às crianças, assim as mães podem levá-las juntas - há um revezamento de integrantes para cuidar dos pequenos para que todas consigam ensaiar.

Em 2013, Beth passou a privilegiar na associação a inscrição de mulheres negras - hoje, elas são mais de 80% no Ilú. Há pouco tempo, as de origem indígena e as LGBTQ também passaram a ter preferência no processo de entrada.

Os homens não têm a menor chance de tocar ou cantar no bloco - alguns poucos podem participar apenas das danças e da ala que desfila com pernas de pau. "Já me pediram para montar um grupo apenas com homens, mas não faço isso nem se me oferecerem US$ 2 milhões. Eles já dominam tudo na sociedade, nas escolas de samba. Aqui, não terão vez."

Vamos marcar presença virtualmente neste Carnaval. É uma maneira de a gente se reencontrar nessa encruzilhada, já que a rua é a nossa potência.

Beth Beli, Presidente do Bloco Afro Ilú Obá de Min

Edson Lopes Jr/UOL Edson Lopes Jr/UOL
Marcelo Justo/UOL

Elânia: "Não precisa morrer para ver Deus"

"Venha falar com essa molecada, porque estão todos com a sexualidade aflorada", pediam algumas educadoras de escolas do Grajaú, na periferia sul de São Paulo. Quem ouvia os pedidos era Elânia Francisca Lima, 36.

Criada desde pequena no bairro da zona Sul paulistana, a psicóloga capixaba estava impressionada com o aumento do número de adolescentes grávidas na região. Decidida a fazer algo, criou grupos informais nas ruas para conversar sobre sexo, ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e distribuir camisinhas. E passou a realizar oficinas sobre sexualidade em escolas para meninas.

Desses encontros, surgiu em 2010 o projeto "Sexualidade Aflorada", com a metodologia que Elânia desenvolveu para se comunicar de modo eficiente com os adolescentes da periferia. Em 2020, a iniciativa atingiu 6 mil pessoas.

"Minha maior realização é ver essas meninas, menines e meninos trilhando seus caminhos com mais força e autonomia e questionando as estruturas que os impede de falar e defender seus direitos sexuais e reprodutivos", diz a educadora que integra o time de colunistas do Viva Bem, canal de saúde e bem-estar do UOL.

Converso sobre afetividade saudável, sobre mecanismos de denúncia e proteção. Com isso, as jovens identificam já terem vivido relações abusivas, mas também encontram formas de sair e se cuidar diante dessa situação

Elânia tem conhecimento não apenas clínico. Com 18 anos, se casou e sofreu violência, ouvindo coisas como "seu cabelo é ruim" e "você é burra", além de frases que sinalizavam que ela era propriedade do então marido. Na metade da faculdade de psicologia, ela conseguiu sair do relacionamento abusivo.

Tenho dialogado com adolescentes sobre aquela frase do cantor Criolo: 'Não precisa morrer pra ver Deus'. A gente não precisa sofrer para aprender sobre a potência de existir.

Por trabalhar com um tema ainda tabu, Elânia diz que continua sofrendo tentativas de desqualificá-la sempre que defende que crianças e adolescentes têm direito sexual e reprodutivo. "Ultimamente tenho sido desqualificada por homens cisgênero adultos por dizer que não acredito ser saudável adolescentes e adultos terem um relacionamento afetivo-sexual", relata.

Durante um tempo eu pensava que ter sido vítima de violência contribuiu para minha sensibilização. Hoje entendo que minha trajetória ocorreu apesar de ter sofrido violências e não por causa delas.

Elânia Francisca Lima , psicóloga

Karime Xavier - 03.dez.18/ Folhapress Karime Xavier - 03.dez.18/ Folhapress
André Giorgi/Arquivo pessoal

Maju: "mãelitante" contra a homofobia

Os dez anos em que Maju Giorgi, 54, milita ativamente contra a LGBTfobia não impediram que nesse período seu filho, André, 26, fosse alvo de três ataques homofóbicos, sendo ameaçado de morte e de estupro por outros homens.

Desde que o jovem fotógrafo tinha 14 anos e se assumiu gay, a jornalista temia pela violência que ele poderia sofrer. Foi assim que Maju se tornou uma "mãelitante", como gosta de dizer, atuando ativamente pela inclusão de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais de todo o país por meio da ONG Mães pela Diversidade.

"Quando a violência e a injustiça chegam perto do filho da gente, não dá para fazer silêncio! É aquela velha história: quem não pode com as formigas não atiça o formigueiro", diz a paulistana, coordenadora nacional da entidade. "O Mães nada mais é do que um grito de mães contra a injustiça."

As mulheres, segundo Maju, têm um papel fundamental no combate à LGBTfobia porque "sofremos do mesmo mal: o machismo". É isso que faz com que essas mães sejam o segundo alvo da LGBTfobia, porque os maridos as consideram "culpadas" pela orientação sexual dos filhos. Muitas vezes, elas são agredidas fisicamente e até expulsas de casa.

As mulheres chegam até mim com fobia social, síndrome do pânico, depressão, ameaças de suicídio... É uma realidade muito complicada. A homofobia é uma violência que não atinge só a pessoa LGBTQ+: ela destrói mães, famílias, vidas.

O Mães pela Diversidade surgiu inicialmente na internet como um grupo de encontro para essas mulheres. Mas foi crescendo e tornou-se uma ONG com 2.000 participantes que lutam pelos direitos civis dos filhos LGBTs e que também recebem assessoria médica, psicológica e jurídica. "A gente não consegue ver tanta injustiça e ficar quieta."

Em 2020, mesmo com a pandemia, ela conta que a entidade teve muito trabalho e também muitas conquistas. Maju deu palestras em multinacionais, bancos, redes de hotéis, startups e até na Bolsa de Valores e participou de lives com autoridades para celebrar avanços da causa LGBT junto ao Ministério Público, graças à atuação de três mães que são procuradoras de Justiça.

Para este ano, ela espera que esses avanços se multipliquem e que "o universo" a ajude a encontrar mais mães de LGBT indignadas dentro das instituições. "O plano é fazer a revolução, sem beligerância, mas com amor e dedicação e sempre levando informação. O que gera o preconceito é a ignorância sobre o tema."

Quando chega uma mãe nova, ela percebe que não está sozinha, se sente representada, acolhida ao ver todo um movimento trabalhando, buscando lugares de fala, se armando de informação.

Maju Giorgi, Jornalista e coordenadora da ONG Mães pela Diversidade

Divulgação

Mel: o feminismo e a periferia em versos

Na véspera do Dia da Consciência Negra de 2020, Mel Duarte, 32, lançou "Colmeia", uma coletânea de seus poemas escritos desde 2010 e reunidos em três livros: "Fragmentos Dispersos", "Negra Nua Crua" e "Querem nos Calar: Poemas para Serem Lidos em Voz Alta".

Mesmo com uma produção extensa e constante na literatura, já tendo representado o Brasil em festivais em Angola e Luanda, a primeira mulher a ganhar a batalha internacional de poesia "Rio Poetry Slam" ainda sofre para ter seu trabalho respeitado e valorizado.

"Percebo que muitos convites vêm para mim porque sou mulher e acham que o pagamento se basta com roupas ou produtos de beleza, como se nós não tivéssemos boletos para pagar", diz a paulistana, criada no Jabaquara.

Mas, olhando sob uma outra perspectiva, a escritora, slammer (participante de batalha de poesias) e produtora cultural sabe que o fato de ser mulher também lhe abre portas, graças às redes femininas de apoio que se formaram na cidade.

Acesso muitos lugares em SP, sendo lembrada por outras mulheres que estão em cargos de poder nos quais eu sei que, se fossem homens, não me chamariam.

Escrevendo desde os 8 anos, quando conheceu e se apaixonou pela poesia na escola, Mel se descobriu poeta ao participar pela primeira vez de um sarau, dez anos depois, quando trabalhava em uma livraria. E superou a timidez de falar em público nesses encontros literários em que muitas vezes era a única mulher presente.

Quando passou a frequentar esses espaços, Mel descobriu junto com as rimas a sua identidade como mulher negra e parou de alisar o cabelo e de fugir de fotografias, como fez durante toda a adolescência, por vergonha. A partir daí, a negritude, o feminismo e a vida na periferia ganharam destaque em seus versos, que passaram a atingir cada vez mais pessoas com a ajuda da internet, inspirando outras mulheres.

Acredito que pelo meu trabalho partir de um lugar muito pessoal e pela maneira como o conduzo, sempre com o pé no chão, isso chega às pessoas. Sou uma referência real e acessível num tempo onde muita coisa é efêmera e comercial

A escritora, que foi uma das organizadoras da edição paulista do "Slam das Minas", uma batalha de poesias autorais feitas por mulheres, diz que as expressões artísticas servem para tirar as pessoas da zona de conforto, provocar.

Já sou um corpo político, tudo que eu faço, mesmo quando decido falar de amor, é para fazer as pessoas refletirem.

Nós mulheres somos múltiplas e dentro de cada uma tem um pouco de todas. Quando compartilho um pensamento, percebo que exponho algo que nem sempre é só meu.

Mel Duarte, slammer e poeta

Avener Prado/Folhapress Avener Prado/Folhapress
Arquivo pessoal

Marina: à mestra, com carinho

"Ao meu avô Armando, para quem nunca houve 'coisas de menina' e 'coisas de menino'". Essa é a dedicatória da dissertação "A Bicicleta e as Mulheres - Mobilidade ativa, Gênero e Desigualdades socioterritoriais em São Paulo", apresentada por Marina Kohler Harkot à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, em 2018, que lhe deu o título de mestra em planejamento urbano.

O avô, segundo ela, havia sido figura essencial para que a socióloga crescesse acreditando que meninas "podiam mexer em ferramentas, construir coisas e praticar esportes" —ensinamentos que nortearam sua vida.

O ciclismo foi o esporte - e depois, meio de transporte - abraçado desde criança pela carioca de nascimento e paulistana de coração. E foi pedalando por São Paulo que Marina perdeu a vida aos 28 anos, em novembro de 2020, ao ser atropelada por um motorista que fugiu sem prestar socorro e tinha sinais de embriaguez.

Marina era cicloativista, feminista, doutoranda e pesquisadora de mobilidade urbana no Lab Cidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade). Antes, havia sido coordenadora da Ciclocidade (Associação de Ciclistas Urbanos de SP), consultora de projetos no Banco Mundial e chegou a fazer parte do Conselho Municipal de Trânsito e Transporte.

Seu ativismo e trabalho de pesquisa incentivaram outras mulheres a pedalarem pelas ruas de São Paulo. Em sua pesquisa, ela usou a bicicleta para uma discussão ampla sobre a relação das mulheres com as cidades, mostrando que a desigualdade de gênero também se dá pelos modos de deslocamento. Marina concluiu o trabalho dizendo esperar que ela pudesse ajudar no "planejamento de mobilidade e de cidades mais humanas e receptivas às mulheres, às bicicletas, e às mulheres de bicicleta".

Para Renata Falzoni, 67, uma das principais cicloativistas do país, a chegada da geração de Marina à discussão sobre mobilidade ativa quebrou um paradigma com mulheres passando a "estudar e a exigir inclusão de gênero, em especial a negra de periferia". Mas Marina foi muito além disso, ao levar para a pesquisa acadêmica as questões de inclusão de gênero e raça associadas ao desenho urbano. "Com Marina, a discussão deixou de ser um 'achismo', mesmo que óbvio, e passou a poder ser defendida com dados, o que facilita na hora da defesa de certas demandas", ressalta Renata.

Ao explicar de forma acadêmica, que cidades desenhadas para carros são cidades projetadas para serem desiguais e excludentes às mulheres, em especial as de periferia, Marina deu um enorme salto nas defesas de determinadas estruturas simples antes impensadas

Eduardo Knapp/Folhapress Eduardo Knapp/Folhapress

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