Mulher surda narra desafio na gravidez: 'Médica falava e não entendia nada'

Durante dois meses, Amanda Vitória da Silva Felipe, 26, acreditou que os desconfortos que sentia eram algo passageiro. Até que a mãe dela, desconfiada, sugeriu um exame. O resultado foi uma surpresa: Amanda estava grávida. E, ao longo da gestação, enfrentaria não apenas os desafios da maternidade, mas também o silêncio imposto pela falta de acessibilidade.

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Surda desde a infância, Amanda fez o pré-natal em Itamarati de Minas (MG) —cidade de 3.700 habitantes— sem a presença de intérprete de Libras.

A médica só falava, e eu não entendia nada. Pedi uma intérprete para entender o meu processo, mas não tinha ninguém.
Amanda Vitória da Silva Felipe

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Em muitos atendimentos, contou apenas com a ajuda da única irmã ouvinte, que sabia alguns sinais chamados de "domésticos", de uso comum no dia a dia dentro de casa, mas não suficientes para interpretar temas complexos, como os termos médicos.

"Minha irmã tentava me explicar, mas era difícil. Eu ficava com medo de tomar o remédio errado, de não saber o que estava acontecendo."

'Comecei a sinalizar e me levaram ao hospital'

Amanda, Gustavo e Hilmara ficaram juntos por 15 horas até o nascimento do Nathan
Amanda, Gustavo e Hilmara ficaram juntos por 15 horas até o nascimento do Nathan Imagem: Arquivo pessoal

Quando entrou em trabalho de parto, Amanda estava em casa, em Cataguases (MG). "Acordei com muita água, a bolsa tinha estourado. Comecei a sinalizar para minha mãe e para o meu marido, o Gustavo. Eles me ajudaram a ir para o hospital."

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Ao chegar à Santa Casa de Cataguases, o marido entrou em contato com Hilmara Miranda Gomes, intérprete de Libras e amiga da família desde 2023, quando se conheceram durante um evento para a comunidade surda na Igreja Metodista Wesleyana.

Foi Hilmara quem garantiu que Amanda tivesse acesso às informações durante o parto e pudesse se comunicar com a equipe médica.

'Conseguia entender tudo'

"O Gustavo me ligou desesperado. Quando cheguei, ela já estava lá, sentindo muita dor. Entrei na sala e percebi que ela estava exausta. Traduzir para ela o que os médicos diziam fez toda diferença. Ela, finalmente, pôde respirar, entender e confiar no que estava acontecendo", lembra a intérprete.

Quando a Mara chegou, eu fiquei tranquila. Deitei na maca, recebi a anestesia e pronto. O Gustavo estava do meu lado, ela em pé, perto de mim, e todo mundo em volta. Eu consegui entender tudo.
Amanda Vitória da Silva Felipe

Foi o meu primeiro parto como intérprete. Eu achei que seria rápido, mas vi o quanto ela sofreu em silêncio. Amanda não gritava, não reclamava, suportava tudo. Eu fiquei admirada com a força dela.
Hilmara Miranda Gomes

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A intérprete descreve que, além da tradução, acabou assumindo também o papel de apoio emocional. "Dava banho, fazia massagem, ajudava a aliviar as dores. Era impossível ficar parada só interpretando. A gente se conecta, sente junto."

Foi muito importante ter a intérprete comigo porque a leitura labial é muito difícil para mim. Com Libras, eu entendo tudo de forma clara. Eu senti muita dor, mas fiquei tranquila quando a intérprete chegou. Consegui entender o que estava acontecendo comigo. Foi o que me deu força para seguir.
Amanda Vitória da Silva Felipe

A presença de Hilmara foi ainda mais importante quando foi preciso tomar uma decisão sobre a via de parto.

Após horas de trabalho de parto e já no dia seguinte à chegada ao hospital, Amanda sinalizou que não tinha mais forças. Com a ajuda da intérprete, a médica explicou que a cesariana seria o caminho mais seguro.

Nathan no berço antes de ser levado ao berçário
Nathan no berço antes de ser levado ao berçário Imagem: Arquivo pessoal

Foi assim que Nathan veio ao mundo.

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Hilmara vê na experiência um marco para a comunidade surda. "A presença do intérprete muda tudo. É o que garante que a pessoa tenha voz, que participe da própria história. Fiquei com ela por 15 horas, acompanhando tudo."

Amanda, Gustavo e o bebê Nathan após saírem do hospital
Amanda, Gustavo e o bebê Nathan após saírem do hospital Imagem: Arquivo pessoal

Ter intérprete é um direito ainda negado

Apesar de ser uma situação amparada por lei, a presença de Hilmara durante o parto foi questionada por parte da equipe médica, segundo a intérprete.

"Alguns profissionais me perguntaram por que eu precisava estar ali", conta.

Disseram que já tinha muita gente na sala, que só o marido podia ficar. Eu precisei explicar que a minha função era permitir que a Amanda entendesse o que estava acontecendo --não era um favor, era um direito.
Hilmara Miranda Gomes

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Para o advogado Jorge Curtis, especialista em diversidade e inclusão e CEO do projeto Advogado em Libras, o episódio mostra o quanto ainda há desconhecimento sobre a legislação.

"O artigo 51 da Lei Brasileira de Inclusão obriga hospitais públicos e privados a oferecer comunicação acessível a pessoas com deficiência. Isso inclui tradutores e intérpretes de Libras. Não é algo opcional, é uma obrigação legal."

Ele explica que, em muitos casos, famílias e intérpretes acabam precisando recorrer à Justiça para garantir esse direito.

Já houve situações em que foi necessário pedir autorização judicial para que a intérprete entrasse na sala de parto. Isso é absurdo. O parto é um momento de vulnerabilidade, de dor, e a mulher precisa se sentir segura e compreendida.
Jorge Curtis, advogado

Curtis diz que há estados e municípios brasileiros com leis específicas que regulamentam o acompanhamento de intérpretes de Libras no pré-natal e no parto —mas o alcance ainda é pequeno.

O advogado também lembra que a falta de intérprete pode colocar vidas em risco. "O parto só é completo quando há comunicação. E isso inclui a presença do intérprete", afirma.

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Como a mulher vai avisar que tem uma alergia, ou entender o que o médico está prescrevendo? Uma simples falha de comunicação pode gerar consequências graves. E o hospital não pode se eximir dessa responsabilidade.
Jorge Curtis, advogado

Para ele, o problema está na falta de preparo e de conhecimento sobre as leis. "Os hospitais deveriam oferecer intérprete automaticamente, sem que a pessoa surda precise pedir ou justificar. É um direito básico de comunicação, garantido por lei federal."

Ele diz que a inclusão precisa começar cedo, inclusive dentro das escolas. "Libras deveria ser ensinada como disciplina obrigatória. São mais de 10 milhões de brasileiros surdos, quase 5% da população. É um número enorme de pessoas que dependem dessa comunicação. Não é um favor — é cidadania."

O que dizem os governos e o hospital

Universa procurou a Secretaria Municipal de Saúde de Itamarati de Minas, onde Amanda fez o pré-natal, para saber por que não havia intérprete de Libras disponível durante os atendimentos, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

A gestante deu à luz na Santa Casa de Misericórdia de Cataguases, cidade vizinha. Universa também entrou em contato com a Secretaria Municipal de Saúde de Cataguases e com a Santa Casa, questionando a ausência de intérprete de Libras durante o parto e o fato de a presença de Hilmara ter sido questionada por parte da equipe médica. Até o fechamento da reportagem, não houve retorno. O espaço segue aberto.

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