Katábasis: entre matemática e fantasia, livro ensina desigualdade de gênero
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É difícil imaginar onde começa o inferno, mas uma de suas portas encontra-se no Musée d'Orsay, em Paris. A versão em gesso da escultura Porta do inferno, de Rodin, representa a combinação de desespero e dor em formas que emergem do gesso carregadas de simbolismo - e foi inspirada na Divina comédia, de Dante, que aparece personificado n'O Pensador.
Fiquei quase uma hora sentada no chão, encarando cada curva branca, refletindo sobre que estaria por trás dela, caso fosse realmente um portal. Imaginar o inferno é difícil, e é na arte que ele ganha contornos. O impressionante Jardim das delícias terrenas de Bosch, o submundo da Odisséia de Homero, e a própria Bíblia aludem aos terrores que nos encontrariam após a morte. Dante sistematizou um mapa, que serviu de guia para que outros personagens, séculos depois, adentrassem o mundo dos mortos.
O livro Katábasis, de R. F. Kuang, conta a história de Alice Law e Peter Murdoch, alunos de mágica na Cambridge dos anos 80, que vão até o inferno resgatar o professor respeitado que poderia dar as melhores cartas de recomendação. É, ao mesmo tempo, um épico fantástico e um romance acadêmico, misturando sistemas de magia baseados em paradoxos matemáticos e evocando noções de geometria hiperbólica para reimaginar o mapa do inferno.
O livro mal chegou em minhas mãos e já estou na segunda leitura, de tanto que gostei de visitar o submundo. Existem muitos aspectos que merecem um profundo mergulho investigativo, mas hoje quero falar de um - dos outros falo na minha newsletter.
Kuang é excelente em muitas coisas, e uma delas é a inegável capacidade de criar narradoras não confiáveis, mas que sem dúvida confiam demais em si mesmas. Somos levados por uma retórica que poderia ser muito lógica se não fosse construída em cima de premissas falsas, e essas narradoras não escondem fatos porque querem nos enganar ou nos convencer. Pelo contrário: parecem viver na ânsia de explicar o próprio lado da história, a convicção da perspectiva pessoal, e é pela limitação do ponto de vista que devemos desconfiar.
Em Katábasis, a protagonista justifica cada uma de suas escolhas, entre elas a expressa negação da desigualdade de gênero:
Havia um consenso geral entre as mulheres da turma de Alice de que o feminismo era um modismo constrangedor, uma febre ultrapassada dos anos 1970. Era tudo tão vergonhoso que parecia menos uma revolução e mais uma birra. Para ela, a melhor maneira de provar que as mulheres não eram inferiores era simplesmente não ser inferior. Qual era a dificuldade nisso?
Sua ânsia por separar a própria da imagem da reputação dessas mulheres talvez fosse consequência de se sentir resignada e diferente ao mesmo tempo. Protegida durante parte da vida por um universo acadêmico menos sexista, a chegada em uma nova realidade a deixa chocada, mas não muda sua opinião.
"Ainda acreditava que exista um meio-termo impossível: a ideia de que poderia existir um equilíbrio perfeito entre feminilidade e subjugação", o que, na sua visão de mundo, dependia completamente da própria atitude. As roupas que usava, com uma mistura certa de cuidado e distância; a forma como falava e se portava diante de outros homens; o seu nível de dedicação ao estudo. Kuang consegue nos colocar dentro do raciocínio sofisticado de uma mulher inteligente que tenta justificar o injustificável.
Mas existe outra camada pouco explorada em histórias que buscam discutir desigualdade de gênero: a ambivalência que vem do medo e de um desejo estranho que se confundem e resultam em uma culpa que às vezes parece inescapável. Encontrar homens com má reputação parecia um convite: se seu professor era conhecido por colocar a mão nas alunas, surge uma necessidade de validação. Se há um desdém por mulheres, o favoritismo seria a suposta prova do valor feminino.
Alice descreve a emoção de caminhar na linha tênue entre a virtude e o pecado, e vislumbrava envolvimentos físicos que, em uma leitura atenta, não passavam de uma representação do autodesejo: como já escrevi aqui, se enxergar como a parte desejada é um pedaço da fantasia feminina em um mundo que celebra o olhar masculino e o papel da mulher como objeto. "Alice acreditava que tinha conseguido alcançar o ideal impossível: a mulher muito desejada, porém inalcançável e, portanto, virtuosa e perfeita", Kuang escreve.
Quando as consequências chegam, não seria possível nenhum outro desfecho senão o desespero. E, entregue ao mundo dos homens, não havia uma mulher disponível para acolhê-la ("Achei que soubesse exatamente no que estava se metendo", fala a única mulher com quem conversa na academia.).
É no inferno que encontra cumplicidade. Cara a cara com uma vítima do mesmo professor, que recorreu ao suicídio como fuga de um doloroso cenário, Alice vai do desprezo à compreensão e finalmente ao companheirismo. E, pela primeira vez, revela e dá vazão à fúria. Quando a raiva toma o lugar da negação, um caminho de liberdade aparece. A raiva feminina é, com certeza, uma excelente estratégia de libertação.
Alice viajou ao submundo por um motivo. Saiu de lá por outro. Mas, não importa o que tenha acontecido nos passeios pelos tribunais dos pecados, uma coisa é certa: ela precisou ir ao inferno para descobrir que, no fim das contas, quem a salvaria seria sempre outra mulher.




























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