'Estou grávida, faço o pré-natal e decidi entregar minha filha à adoção'

"Chorei muito. Já é minha terceira gestação. Eu não podia ter engravidado de jeito nenhum."

Essas foram as palavras de Maria*, 28, que está grávida de quatro meses, ao ser perguntada sobre sua reação ao ver a presença de duas linhas num teste de gravidez caseiro, indicando um resultado positivo. Ao todo, ela fez o teste três vezes. Inconformada, chegou a tentar abortar e, recentemente, decidiu entregar o bebê à adoção.

Maria já tem dois filhos: um menino, de 9 anos, fruto de um relacionamento anterior, e uma menina, de um ano e cinco meses, resultado de uma relação casual. A caçula mora com Maria em Goiana, uma cidade no extremo norte de Pernambuco. Já o primogênito mora com o pai, em Serra Talhada, no sertão pernambucano, a cerca de 500 quilômetros de distância.

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O pai da menina não quis assumir responsabilidade pela filha. Maria, então, se tornou mãe solo da criança e, desde então, a vida vem sendo uma luta. O que ela ganha —R$ 1.400 mensais, sendo R$ 800 do Bolsa Família e R$ 600 de um trabalho informal que exerce remotamente— mal dá para pagar as contas. Sem estudo e com uma filha pequena em casa, a jovem não consegue trabalhar fora e nem arrumar um emprego melhor.

"Meu meio de vida hoje é só o Bolsa Família e passar jogo [ela revende jogos da loteria]. Com esse dinheiro, pago o aluguel, as contas de água e luz e as despesas da menina", conta Maria a Universa. "Deixo meus gastos sempre por último. O que sobra eu gasto comigo, quando sobra. Geralmente não sobra."

Maria descobriu a gravidez com um mês, depois que a menstruação atrasou por dois dias. Ela teve uma relação desprotegida e rapidamente tomou a pílula do dia seguinte, mas o método de emergência falhou. Desesperada, tentou, num primeiro momento, abortar, tomando um suposto chá abortivo.

A tentativa não prosperou. Maria então comunicou a gravidez ao pai do bebê, que a orientou a abortar, mas desta vez tomando uma pílula adquirida no mercado clandestino. Ela inicialmente aceitou a proposta, mas recuou depois de fazer uma pesquisa na internet — como passou por uma cesárea recentemente, teve medo de colocar a vida em risco.

O aborto só é permitido por lei no Brasil em caso de gravidez resultante de estupro, quando há risco de vida para a mulher e em casos de anencefalia (ausência de desenvolvimento do cérebro) do feto. Maria não se enquadra em nenhuma dessas circunstâncias.

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Ao perceber que a gravidez tinha 'vingado', como se diz aqui no Nordeste, decidi entregar o bebê à adoção e comuniquei minha decisão a todos: o pai do bebê, minha família e amigos. Comecei a fazer o acompanhamento pré-natal em junho. Já sei que é uma menina.
Maria, 28 anos

Maria vê a adoção com um ato de carinho. Ela própria foi adotada, ainda que irregularmente, quando criança —e isso teve um peso grande em sua decisão. Filha de um ajudante de pedreiro e uma dona de casa, ela conta que morava em uma casa de taipa com os pais e três irmãos. A família passava extrema dificuldade.

Quando Maria tinha cerca de sete anos, sua mãe resolveu doá-la a um casal que morava na vizinhança: um policial militar aposentado e uma professora da rede estadual. Ela morou com eles por cinco anos e, nesse tempo, viu a vida melhorar significativamente.

Maria não vestia mais roupas surradas, fazia refeições regularmente e, no dia de seu aniversário, ganhava presentes e festa. Também estava encaminhada para estudar na Escola de Aprendizes-Marinheiros de Pernambuco, em Olinda. A vida, que antes parecia perdida, passou a ter um sentido —mas tudo mudou repentinamente, quando a mãe a tomou de volta.

"Quando minha mãe me pegou de volta, ela destruiu o meu futuro. Toda a minha vida já estava encaminhada. Esse casal já tinha formado outras duas crianças que eles pegaram da rua para criar, além de um primo meu. Uma dessas crianças virou policial e a outra trabalha na Marinha até hoje. Meu primo virou militar e hoje mora no Rio de Janeiro", relata. "Pensando nisso, tomei a decisão de entregar meu bebê à adoção."

'Não tinha o que comer: que mãe quer isso ao filho?'

Nenhuma pessoa do convívio de Maria a influenciou a entregar o bebê à adoção —pelo contrário. A família, mesmo sem condições de ajudá-la, não a apoiou em sua decisão, bem como as amigas, que disseram: "Por um filho a gente mora até debaixo da ponte". Ela discorda desse posicionamento e afirma não se importar com os julgamentos.

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Para Maria, embora a sociedade julgue as mulheres que entregam um filho à adoção, como se o estivessem abandonando, a entrega voluntária é um ato de amor. Ela relembra que chegou a passar fome em 2020, quando se separou do ex-marido, e não quer passar necessidade novamente com outro bebê nos braços. À época, o pai não pagava pensão, e sua única fonte de renda era o Bolsa Família.

Muitas vezes, não tinha o que comer. Que mãe quer isso para um filho? Tenho para mim que, quando você ama, você não quer ver a pessoa sofrer, não quer vê-la passar necessidade. Tomei essa decisão por amor a essa criança. Ela não tem culpa de nascer de mim, uma pessoa sem estrutura financeira nenhuma.
Maria, 28 anos

"Com um filho só, você até consegue se virar. Sempre tem alguém que dá uma fruta, um leite, um biscoito. A partir do segundo filho, ninguém mais quer ajudar. As pessoas pensam: 'Já errou duas vezes'. É claro que essa criança seria muito amada, mas só amor não basta", acrescenta.

Em agosto, no terceiro mês da gravidez, Maria procurou a assistência social para comunicar sua decisão pela entrega voluntária. Já imaginando que os funcionários tentariam convencê-la do contrário, chegou à unidade dizendo: "Não tentem me manipular porque vocês não vão conseguir." A desconfiança de Maria não é sem fundamento.

Segundo pesquisa liderada pela assistente social Renata Rigatto, em um trabalho de mestrado em saúde da família na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), a maioria dos profissionais da área da saúde se deixa influenciar por crenças pessoais, julgando a decisão das mães que decidem pela entrega voluntária.

O estudo, realizado entre novembro de 2023 e janeiro de 2024, também mostrou um desconhecimento da entrega voluntária como direito das mulheres e das crianças, o que gerava preconceitos no atendimento.

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A psicóloga Renata Travain, especialista em adoção, reforça os achados da pesquisa, afirmando que comentários e julgamentos por parte de profissionais da saúde vêm de um desconhecimento da legislação sobre a entrega voluntária, além de crenças pessoais e religiosas. Para ela, essas manifestações não apenas desrespeitam a decisão da mulher, mas também reforçam estigmas sociais que as culpabilizam e marginalizam.

"É fundamental que os profissionais envolvidos nesse processo ofereçam um atendimento respeitoso, acolhedor e informado, garantindo que a mulher se sinta segura e apoiada em sua decisão", diz. "A falta de compreensão e empatia por parte dos profissionais pode agravar o sofrimento emocional da mulher, comprometendo sua saúde mental e o bem-estar da criança."

Trâmites legais

Entrega voluntária é prevista em lei
Entrega voluntária é prevista em lei Imagem: Divulgação/Pixabay

De acordo com a advogada Amanda Ramos, que trabalha com processos de adoção, toda mulher está apta a fazer a chamada "entrega voluntária". A Lei da Adoção (13.509/2017) diz apenas que a decisão deve ser tomada antes ou logo após o nascimento. Se a mulher for menor de 18 anos, deve nomear um representante legal. Caso não haja, será nomeado um curador especial, o que geralmente é feito pela Defensoria Pública.

O primeiro passo para fazer a entrega voluntária é buscar um órgão da rede socioassistencial, como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) ou a própria Vara da Infância e da Juventude, órgão responsável por iniciar o processo. Lá, a mulher passará por atendimento multidisciplinar, com psicólogo e assistente social, para que a situação seja bem avaliada.

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"Isso não acontece para tentar dissuadir a mulher, mas para garantir que ela não esteja tomando a decisão exclusivamente por razões socioeconômicas ou psicológicas que podem ser resolvidas com o apoio de outros órgãos", afirma Amanda.

"A mulher tem garantido o direito de não ser constrangida em razão da escolha e também de sigilo, inclusive em relação à comunicação ao genitor e à família extensa", acrescenta a advogada, ressaltando que, caso ela autorize, será feita, no prazo máximo de 90 dias, a busca pelo genitor ou de parentes interessados em exercer a guarda.

Após o parto, a mulher comparece a uma audiência, em que pode confirmar a entrega legal ou voltar atrás na decisão. Caso ela confirme a entrega, serão aguardados dez dias para o exercício do chamado "direito de arrependimento". Não havendo retratação, a criança será encaminhada à família substituta, habilitada no Sistema Nacional de Adoção.

Amanda ressalta que não é possível, pela legislação atual, que a mulher entregue a criança para uma pessoa de sua escolha ou que se disponibilize a ficar com o bebê sem ter vínculo consanguíneo. Isso é o que é chamado de "adoção à brasileira" e é vedado pelo direito.

"Já tivemos muitos avanços nos últimos anos, mas acredito que falte maior conscientização em relação à entrega legal. Não se trata, de forma alguma, de prática de crime ou de abandono, mas de um direito previsto em lei", diz.

É também um ato fortemente permeado por amor e renúncia, de uma mulher que, mesmo sem condições de exercer a maternidade, decidiu gerar vida e permitir que aquela criança encontre uma família e tenha uma história feliz. A sociedade precisa rever alguns preconceitos e começar a entender a grandeza por trás dessa atitude.
Amanda Ramos, advogada

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*A reportagem usou um nome fictício para preservar a identidade da mulher

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