'Sou a única pessoa preta na sala': ela criou produtora de games nos EUA
Natural de Sorocaba, no interior de São Paulo, Raissa Leme, 29, quebrou paradigmas. Um deles em sua carreira como modelo, afinal, de acordo com o Boletim Raça e Gênero na Publicidade, produzido pelo GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa), 83% dos modelos brasileiros são brancos, contra 17% de variadas etnias.
Outra quebra foi ser uma mulher negra brasileira cocriadora de uma produtora de jogos em Nova York, nos Estados Unidos, vivendo seu tão desejado sonho americano. Mas, para ela, embora se considere uma pessoa que foi além de limites socialmente impostos, a ausência de referências no meio ainda pesa.
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Quando você entra numa sala e não vê ninguém parecido com você, isso já diz muito sobre como o espaço foi construído.
Raissa Leme
A Universa, Raissa se abriu pela primeira vez para contar sua história "sem filtros", como ela mesmo rotulou. Antes muito moldada pela expectativa dos receptores de suas falas, ela se atinha ao que as pessoas gostariam de ouvir.
Hoje, após transformações de carreira e sua vivência com a maternidade de seu filho Rio, de apenas um ano, ela disse se sentir preparada para viver o próximo passo e se ver como referência para outras mulheres como ela.
Do interior de SP aos EUA
Filha de uma chefe de família que trabalhava fora todos os dias, Raissa teve uma grande influência de sua avó em sua criação.
"Minha mãe foi sorteada num apartamento da CDHU quando eu tinha 2 anos. Era do outro lado de Sorocaba. Então a gente acordava umas 6h30 da manhã, pegava o ônibus em que levávamos uma hora para chegar até a minha avó, onde eu ficava, e depois ela ia trabalhar", contou.
E nessa rotina puxada, ela só via a mãe às 21h da noite. "E minha mãe ali, sempre muito guerreira", disse emocionada.
Na escola, ela já desenhava em seus trabalhos de arte seu maior sonho: ser modelo. Nesse ínterim de seu crescimento, sua mãe e seu pai lutavam para pagar os custos da profissão. Books, cursos, viagens para São Paulo em busca de trabalho geravam altos gastos, ainda mais há 22 anos atrás.
Aos 12, começou a trabalhar em uma agência de sua cidade e conseguiu seus primeiros trabalhos. Aos 16, viajou para São Paulo atrás de um trabalho e finalmente conseguiu um contrato, mas com um grande detalhe: ela teria que ir para a China.
Com coragem e US$ 600 no bolso, foi em busca de seu sonho em Xangai. E dali deslanchou.
Voltei para São Paulo, mas logo fui novamente para a China. Depois morei na Europa em países como Itália, Alemanha e França. Também passei pelo Líbano antes de ir para Barcelona, onde vivi por 4 anos.
Raissa Leme
Em 2020, após passar por muitas mudanças em sua vida pessoal, decidiu seguir para os Estados Unidos. Seu grande sonho era desbravar Nova York e trabalhar por lá. Foi quando a pandemia de covid-19 a surpreendeu.
Cheguei com pouco dinheiro, malas e um sonho. Duas semanas depois: pandemia. Tudo fechado. E pensei: o que faço da minha vida? Volto para o Brasil ou fico? Era meu sonho ficar. Conversei com minha agente, ela disse: 'fica, vamos tentar'
Raissa Leme
Ela ficou. Afinal, o pior que poderia acontecer seria voltar para o Brasil. "E voltar para minha família nunca seria o fim do mundo", comentou.
Durante aniversários, casamentos e chás de bebê que vivenciou em chamadas de vídeo durante o isolamento social, conheceu sua atual sócia, Kelsey Falter, com quem fundou a Mother, uma produtora de games com duas mulheres — e mães — no comando.
A Mother
Mais do que uma produtora de games, a Mother é um dos braços da Matriarchal, marca cujo nome carrega a ideia de criação e potência, ligada à essência de gerar algo do zero e transformá-lo em vida.
O nome da produtora foi definido antes mesmo de Raissa se tornar mãe. Dois meses após a materialização da empresa foi que descobriu a gestação.
Eu estava parindo duas coisas ao mesmo tempo: um filho e uma empresa.
Raissa Leme
Para ela, o objetivo da empresa sempre foi maior do que apenas desenvolver jogos: é sobre construir experiências que provoquem questionamentos e transformações em quem joga.
O primeiro projeto da Mother, Le Zoo, é a materialização dessa proposta. Inspirado em reflexões sociais, políticas e existenciais, o game nasceu de uma ideia inicial de criar um personagem alienígena que questionaria a forma como vivemos. Com o tempo, esse conceito evoluiu para um jogo imersivo, pensado como um "parque de diversões surreal".
No universo de Le Zoo, o jogador passa por um portal e assume a forma de um Zutt, criatura que abandona a forma humana para focar na consciência e na experiência. A jornada se dá em três reinos — céu, terra e inferno — cada um com vivências que refletem aspectos distintos da realidade. A narrativa se molda às escolhas do jogador: as atitudes tomadas no jogo revelam quem ele é, quais valores carrega e quais consequências está disposto a enfrentar.
A construção dos personagens se inspira em arquétipos, ancestralidade e diversidade cultural, sempre permeados por doses de humor, porque, como explica Raissa, o autoconhecimento não precisa ser doloroso. "Queremos que o jogador se pergunte: quem sou eu nesse jogo da vida?", resume.
Assim, a Mother busca não apenas entreter, mas também oferecer um convite à reflexão — sobre identidade, escolhas e sobre como cada pessoa pode, à sua maneira, reinventar o mundo ao seu redor.
"Não quero que olhem para mim com pena"
Head de Community and Culture (líder de comunidade e cultura, em tradução livre) da Mother, Raissa Leme lidera as áreas de comunicação externa com o público e de cultura interna da empresa.
Isso significa estar à frente de toda a relação com a comunidade do estúdio — incluindo um servidor no Discord com mais de 4.500 membros — além de acompanhar o bem-estar dos times espalhados em diferentes países.
Também é sua responsabilidade cuidar de como a marca se apresenta, como seus colaboradores se sentem e de que forma a cultura da empresa se fortalece no dia a dia.
A posição central que ocupa hoje é resultado de uma trajetória marcada por coragem e resistência. Da adolescência trabalhando em agências de modelo em Sorocaba, passando pela experiência de se jogar sozinha na China aos 16 anos, até os anos em que morou pela Europa, Raissa construiu uma carreira baseada na disciplina e na arte de viver o inesperado.
E, como ela mesma define, nunca quis ser vista a partir de um lugar de fragilidade.
Não quero que olhem para mim com pena. Eu vim da potência da periferia, e foi de lá que tirei a força para chegar até aqui.
Para o futuro, Raissa projeta ampliar a diversidade na indústria de games, garantindo espaço para mais mulheres e pessoas negras em cargos de liderança. Também sonha em lançar Le Zoo em português e tornar o Brasil um dos principais polos de expansão da Mother.
Meu foco é onde estão as pessoas negras, quero inspirar. Não é comum o caminho que trilhei. Moro em Nova York, criei uma produtora de games aqui, e quero que essa história chegue a quem realmente importa. Se minha história inspirar ao menos uma pessoa, já terá valido a pena.
Raissa Leme