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1ª negra doutora em física do Brasil: 'Eram 90% contra mim, agora são 10%'

Sônia Guimarães desenvolveu uma patente importante para a defesa brasileira Imagem: Larissa Isis/Divulgação

De Universa, em São Paulo

10/09/2025 05h30Atualizada em 10/09/2025 12h19

Sônia Guimarães ocupa um lugar único na história da ciência brasileira. Primeira mulher negra a conquistar o título de doutora em física no país, ela quebrou barreiras em universidades, laboratórios e também no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), onde se tornou também a primeira professora negra.

Sua trajetória é marcada por pioneirismo, mas também por embates com estruturas que sempre tentaram afastá-la.

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Nascida e criada em São Paulo, ela trilhou um caminho improvável para uma menina negra dos anos 1950. Formou-se técnica em edificações, pensou em seguir engenharia, mas foi na física que encontrou sua vocação.

Da graduação na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos), passando pelo mestrado na USP (Universidade de São Paulo), até seu doutorado na Universidade de Manchester, no Reino Unido, construiu uma base sólida para pesquisas que mais tarde resultariam em uma patente de tecnologia de defesa.

Se o currículo impressiona, a jornada esteve longe de ser tranquila. Ao longo da carreira, Sônia enfrentou resistência de colegas, alunos e chefias. No ITA, instituição historicamente masculina e branca, chegou a ser afastada do cargo por uma década após episódios de perseguição. O retorno à sala de aula, anos depois, foi também um ato de resistência.

Mais recentemente, a cientista ganhou reconhecimento fora da academia. Foi eleita uma das 15 mulheres mais poderosas do Brasil pela Forbes e incluída em listas de personalidades influentes da tecnologia.

Para além dos prêmios, o que move Sônia é ver cada vez mais jovens negras ocupando espaços de liderança e pesquisa, quebrando os mesmos muros que ela ajudou a derrubar.

Aos 68 anos, ela se prepara para novos desafios. Entre planos acadêmicos e a defesa de maior representatividade de mulheres negras na ciência e na política, Sônia segue olhando para o futuro com a mesma determinação que guiou sua vida inteira.

Em 2023, Sônia recebeu a Medalha Santos Dumont de Honra ao Mérito pelos seus 30 anos de atuação no ITA Imagem: Dalila Dalprat/Divulgação

UOL: A senhora foi a primeira mulher negra doutora em física do Brasil. Como era sua sala de aula, como foi estudar e desenvolver pesquisa sendo provavelmente a única mulher negra ali?

Na Federal, quando eu entrei, tinha 1.500 estudantes no total. Eu era a única mulher preta da universidade. Tinha alguns homens pretos — dois na física, dois na química e acho que um em enfermagem. Eu era a única mulher. Mas voltei em 2017 e hoje, com 20 mil estudantes, 20% são negros. Inclusive encontrei negras no curso de engenharia física, que é a elite da elite da física. Tudo mudou.

Na USP, quando eu fiz, eram pouquíssimos. Eu estava no mestrado, havia três homens negros e nenhuma mulher negra. Éramos três mulheres no total — uma delas turca. Até hoje, o número de meninas em física é baixo e de meninas negras, menor ainda.

E como surgiu sua decisão de seguir física? Teve algum incentivo?

Na realidade, eu me formei técnica em edificações no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. Pensei em engenharia civil, mas no cursinho vi física pela primeira vez de verdade e gostei. O professor dizia: preencham todas as opções de carreira, e coloquei física entre as últimas. Entrei na Federal. No segundo ano, já estudava física moderna e semicondutores. Me apaixonei e nunca mais saí.

A senhora foi também a primeira mulher negra a lecionar no ITA, em 1993. Como foi essa experiência?

Foram os piores anos da minha vida. Nem meus alunos, nem parte dos colegas me aceitavam.

Em 1996, me expulsaram do cargo que conquistei por concurso, com justificativas absurdas, como dizer que minha roupa chamava mais atenção que minhas aulas.

Fiquei mais de dez anos afastada, até ser chamada de volta. Voltei primeiro para engenharia eletrônica e depois, com a aposentadoria de quem me perseguia, para física. Mas os problemas não cessaram.

Ainda hoje, alguns alunos e colegas ainda me desprezam, outros tentam me boicotar. Antes eram 90% contra mim, agora são só 10%.

Qual foi a justificativa da expulsão?

Em 1996, o chefe do departamento entrou na minha sala com 12 avaliações, e eu dava aula para 120 alunos. Nessas 12 estava escrito: "A professora Sônia não sabe física. A professora Sônia é a pior professora do mundo. E a roupa dela chama muita atenção para o corpo dela."

Por essa razão, eu fui expulsa de um cargo que eu passei por concurso. Licenciatura em física pela Federal de São Carlos, mestrado pela USP de São Carlos, PhD pela Universidade de Manchester, na Inglaterra — e mesmo assim me expulsaram. Fiquei mais de 10 anos afastada do ITA.

Tentei falar com o chefe do departamento, mas ele disse: "Cai fora, você está sendo perseguida." O reitor não me recebeu. O vice-reitor também disse: "Cai fora, quando a pessoa que está te perseguindo. Quando ele aposentar você volta." Foi o que aconteceu.

O que aconteceu nesses anos de expulsão do ITA e de sua contribuição com o IAE?

Fui para o IAE (Instituto de Aeronáutica e Espaço), e eles estavam precisando de uma especialista em semicondutores para fazer sensores que deveriam se tornar detectores para a cabeça do míssil, para o míssil saber qual avião atacar.

Trabalhei da ordem de uns dez anos. Quebrei um equipamento — o que não foi bom —, mas um instituto de Campinas me mandou todo um laboratório novo, com o qual eu consegui o maior sucesso. Eles tinham uma característica do dispositivo que eu tinha que trabalhar em cima, e eu consegui resultados melhores do que tinham pedido. Foi quando consegui minha patente.

Qual foi o momento mais marcante da sua carreira?

Quando saiu minha patente. A vida inteira ouvi que eu nunca aprenderia física, mas consegui desenvolver um sensor de radiação infravermelha. Ele capta calor e transforma em eletricidade, que vai para um computador identificar qual é o avião que deve ser atacado.

O dispositivo é basicamente 70% física, 20% química — para a produção do material — e 10% engenharia eletrônica. Trabalhei cerca de 10 anos nesse desenvolvimento no IAE. O objetivo era justamente esse: criar sensores nacionais, porque o Brasil não tinha sensores de radiação infravermelha próprios. Então a finalidade é de defesa da soberania — ensinar o míssil a identificar e atacar o alvo. Foi nisso que concentrei minhas pesquisas por todo esse tempo.

E como a senhora enxerga a tecnologia como força de transformação para pessoas negras no Brasil?

Cotas e oportunidade de trabalho são fundamentais. Conheci um jovem negro formado em eletrônica de computação que não conseguia trabalhar na área porque precisava de estágio mal-remunerado. Isso não pode acontecer.

Meninas também são desencorajadas a entrar em áreas tecnológicas. A tecnologia é a profissão do futuro — inteligência artificial, códigos, TI. Quem não dominar, ficará para trás.

Fora da sala de aula, o que te inspira a continuar?

O que me move é ver meninas negras na ciência. Já dei palestras em universidades e identifiquei poucas ou nenhuma estudante negra. Hoje, com as cotas, isso começa a mudar. Estamos organizando o primeiro workshop de físicos e físicas afrodescendentes brasileiros, em Salvador, para abrir oportunidades.

O problema não é falta de talento, é falta de oportunidade.

A senhora foi eleita uma das mulheres mais poderosas do Brasil pela Forbes. O que esse reconhecimento significa?

É uma delícia! Sempre disseram que eu não faria nada com física, e hoje sou uma das mulheres mais poderosas do Brasil e também uma das 35 mais influentes em tecnologia da informação. É reconhecimento. É gostoso. Além de ser networking, mostra que estou no mesmo nível de pessoas importantíssimas.

Sônia recebendo o prêmio de reconhecimento da Forbes por ser uma das 15 mulheres mais importantes do Brasil Imagem: João Sal/Divulgação

Ainda falta alguma conquista no seu currículo?

Quero aumentar o número de mulheres negras na política. Não basta só universidade. Precisamos de prefeitas, deputadas, vereadoras. É no poder político que se define orçamento, leis e cotas. É preciso formar líderes políticas negras.

Como gostaria de ser lembrada pelas próximas gerações de cientistas?

Como aquela que nunca desistiu, apesar de tudo o que ouviu e das dificuldades. Gostaria que as pessoas que conquistarem aquilo que disseram que elas não conseguiriam me contem depois — adoro dar boas notícias em palestras.

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