Rastreio de câncer pelo SUS: 'Meses pedindo que investigassem meu nódulo'

A cada dez mulheres diagnosticadas com câncer de mama no Brasil, seis enfrentam um obstáculo crítico: esperam mais de 60 dias para iniciar o tratamento, mesmo com uma lei que garante esse prazo como máximo. A demora, somada à baixa taxa de mamografias preventivas — apenas 23,7% da cobertura ideal, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde) —, forma um cenário alarmante para a saúde da mulher no país, aponta o Panorama do Câncer de Mama, realizado pela Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia), em parceria com o Instituto Natura.

A paulista Fabiana Fernandes, 42, viu o impacto que essa espera pode causar. Em 2006, com apenas 23 anos, enfrentou uma busca por respostas durante cerca de seis meses. Após a morte de uma tia pelo câncer de mama, ela passou a fazer com frequência o autoexame até que encontrou um nódulo no seio. Na época, procurou atendimento na rede pública e ouviu da ginecologista que era muito nova para ter câncer de mama. Ainda assustada com o caso familiar, persistiu buscando outros locais.

"Foram meses correndo de um posto de saúde para outro, entre Itaquera, na capital paulista, o município de Suzano, além de outros bairros de São Paulo. Ninguém queria investigar porque diziam que eu não tinha idade para isso", conta. Só seis meses depois que conseguiu fazer uma punção e uma biópsia e ter a confirmação do câncer.

Quando finalmente consegui o diagnóstico, o tumor já tinha se multiplicado. Em vez de um nódulo, eram três. Não tive nem tempo de pensar, comecei a quimioterapia três dias depois do resultado. Fabiana Fernandes

Ela foi diagnosticada com câncer de mama triplo negativo, um tipo agressivo que costuma afetar mulheres mais jovens. A quimioterapia começou em setembro de 2006 e, em abril do ano seguinte, ela precisou retirar a mama. A reconstrução só veio meses depois. Todo tratamento foi pelo SUS.

Fabiana Fernandes
Fabiana Fernandes Imagem: Arquivo pessoal

Os episódios de câncer, infelizmente, voltaram a acontecer na família de Fabiana. Em 2012 e 2016, a mãe e a irmã de Fabiana foram acometidas com o tipo da doença. No ano de 2019, ela descobriu o mesmo câncer, na outra mama. Desta vez, como ela seguia em acompanhamento, a confirmação veio mais rápida.

O pai de Fabiana, no entanto, não teve a mesma sorte. Ele morreu em março de 2024, cinco meses após começar a ter sintomas. A investigação de uma possibilidade de câncer pela rede pública demorou demais. "Levava para o hospital, mandavam para casa, porque meu pai era alcoolista", conta Fabiana. "Precisei implorar por atendimento no hospital e, ainda assim, resistiram em aceitar. Foi uma luta ser atendido."

A demora em detectar a doença aumenta o risco de morte dos pacientes. De acordo com a médica mastologista Alice Francisco, integrante do Movimento Todos Juntos Contra o Câncer e do Instituto de Oncologia de Sorocaba, no caso do câncer de mama, as chances de cura quando a descoberta acontece nos estágios iniciais é de até 90%. Nos casos mais avançados, porém, elas caem de forma significativa, e os cuidados médicos se tornam ainda mais complexos e onerosos.

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"O diagnóstico precoce do câncer de mama tem impacto direto nas chances de cura e no tipo de tratamento instituído. Em estágios iniciais, muitas pacientes podem evitar quimioterapia e realizar cirurgias menores, além de permitir que a mulher retome suas atividades diárias mais rapidamente e com menos efeitos colaterais", explica a médica.

Há diferença no acesso ao exame de rastreamento do câncer de mama quanto o assunto é raça e cor
Há diferença no acesso ao exame de rastreamento do câncer de mama quanto o assunto é raça e cor Imagem: iStock

Desigualdade racial no acesso ao diagnóstico

Outro dado apontado pela pesquisa é a diferença na taxa de exames realizados em relação à raça e cor. De acordo com o estudo, 41,7% das mamografias de rastreamento realizadas pelo SUS entre 2023 e 2024 foram realizadas em mulheres negras (pardas e pretas). Mulheres amarelas totalizaram 11,5%; e indígenas, apenas 0,1%.

Nina Melo, coordenadora do Observatório de Oncologia, avalia que o racismo estrutural é uma das explicações para esses números. "Essas mulheres são mais suscetíveis a viver em condições de pobreza, sem acesso a transporte adequado, tempo livre —devido a jornadas de trabalho extensas ou duplas— e até mesmo informações claras sobre a importância do rastreamento do câncer", afirma. "No contexto da saúde, isso se traduz em barreiras e desigualdades que afetam desproporcionalmente essa população, impactando seu acesso a serviços essenciais como o exame de rastreamento do câncer de mama", complementa.

Não há sensibilização e capacitação profissional para atender grupos específicos. Muitas mulheres negras e indígenas relatam experiências de atendimento menos acolhedoras, com menos tempo de escuta e desvalorização de suas queixas, o que pode acarretar em evasão desse público das unidades de saúde. Nina Melo, coordenadora do Observatório de Oncologia

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A fim de ajudar as pessoas que, como ela, enfrentam dificuldades como as que passou, Fabiana criou a ONG Instituto Olhar Rosa, que visa auxiliar pacientes e levar informações para as comunidades. "Eu criei a ONG para as mulheres saberem da importância da mamografia e entenderem que o câncer de mama não tem idade", conta.

Fabiana Fernandes criou a ONG Instituto Olhar Rosa, que visa auxiliar pacientes e levar informações para as comunidades
Fabiana Fernandes criou a ONG Instituto Olhar Rosa, que visa auxiliar pacientes e levar informações para as comunidades Imagem: Arquivo pessoal

O que diz a legislação

Além dos resultados alarmantes da pesquisa Panorama do Câncer de Mama, um levantamento do Instituto Oncoguia apontou que, em São Paulo, quase metade dos pacientes oncológicos não conseguiu iniciar o tratamento dentro do prazo previsto por lei. Entre 2018 e 2022, a chamada Lei dos 60 Dias foi descumprida em 46% dos casos. O estado ocupa a décima posição no ranking nacional de atrasos.

A advogada Juliana Hasse, presidente da Comissão de Direito Médico e de Saúde da OAB-SP, explica que, além da Lei nº 12.732/2012, que determina que o tratamento de câncer pelo SUS deva começar em até dois meses após o diagnóstico, a Lei nº 13.896/2019 garante que o diagnóstico da doença seja concluído em no máximo 30 dias, após a suspeita médica.

Na prática, porém, essas garantias são sistematicamente descumpridas. "Há um déficit estrutural no sistema público, com falta de leitos oncológicos, profissionais especializados, equipamentos e recursos para exames e terapias. Além disso, filas de regulação e burocracias administrativas atrasam o início do tratamento", diz. A advogada ressalta ainda que esse cenário se agrava pelo subfinanciamento e má gestão dos serviços oncológicos em diversas regiões do país, que comprometem a efetividade das leis existentes.

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Melo destaca que, do ponto de vista de políticas públicas, existem ações que buscam a redução da mortalidade por câncer, no entanto, as legislações não estão sendo efetivas.

"Tudo começa por uma boa regulamentação, onde as responsabilidades dos entes federativos são bem definidas, mas há também problemas de gestão e dificuldades orçamentárias. A recém-sancionada Política Nacional de Controle e Prevenção do Câncer vem para ajudar nesse contexto. O Programa de Navegação do Câncer, se bem implementado, por exemplo, pode ajudar bastante para o aumento de diagnósticos precoces e, consequentemente, diminuição das mortes por câncer de mama", declara.

Em SP, entre 2018 e 2022, a chamada Lei dos 60 Dias foi descumprida em 46% dos casos
Em SP, entre 2018 e 2022, a chamada Lei dos 60 Dias foi descumprida em 46% dos casos Imagem: Getty Images

Amparo legal

Pacientes que enfrentam lentidão no diagnostico e início do tratamento têm amparo legal para buscar seus direitos. A advogada Juliana Hasse lista três caminhos principais:

  1. Ação judicial com pedido de urgência: é possível ingressar com uma ação solicitando o início imediato do tratamento, com base no direito constitucional à saúde (art. 196 da Constituição Federal).
  2. Tutela de urgência: é preciso solicitar uma liminar exigindo a prioridade na marcação de consultas, cirurgias e terapias.
  3. Denúncia ao Ministério Público ou à Defensoria Pública: registrar denúncias junto ao Ministério Público e Defensorias Públicas, que são órgãos com legitimidade para atuar em ações individuais e coletivas, além de fiscalizar o cumprimento de políticas públicas da saúde.
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Segundo Hasse, o judiciário costuma reconhecer de forma pacífica e com agilidade o direito dos pacientes oncológicos, especialmente em casos de risco de agravamento clínico. A Justiça brasileira, explica, entende que atrasos podem colocar vidas em risco.

Posição do Estado

Questionada sobre o dado que indica atraso no início do tratamento contra o câncer de mama no Estado de São Paulo, a Secretaria Estadual de Saúde afirmou, por meio de nota, que ampliou a assistência oncológica nos últimos anos, passando de 34.499 procedimentos em 2022 para 44.972 em 2024, o que gerou redução significativa do tempo de espera dos pacientes.

Ainda de acordo com a Pasta, o Estado conta com 88 unidades da Rede Hebe Camargo de Combate ao Câncer, sendo 66 Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacons) e 14 Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacons). As outras oito unidades são hospitais gerais que realizam cirurgias oncológicas.

Outra iniciativa do Estado, segundo informa a nota, é a Tabela SUS Paulista, que visa a ampliar o acesso da população à rede pública e reduzir filas de espera. O Governo de São Paulo afirma que já destinou cerca de R$ 6 bilhões a 800 Santas Casas e entidades parceiras em todo o Estado.

No biênio 2022-2024 houve aumento de 30% na realização das cirurgias de alta complexidade por meio desta ação. Mais de 2,2 milhões de cirurgias foram realizadas entre 2023 e 2024, um crescimento de 50% quando comparado a 2022. Houve ainda redução de 82,6% no tempo de espera das filas do SUS paulista, afirmou o texto.

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