Ela deu a volta ao mundo de moto... e foi completamente ignorada pelo feito

Hoje, é comum que se fale de viajantes que se aventuram ao redor do globo. Muitas vezes, literalmente. Porém, imagina fazer uma volta ao mundo no começo dos anos 1980? E se for uma mulher? E se ela estiver somente acompanhada de uma motocicleta? Pois essa é a história de Elspeth Beard.

Autora da autobiografia "Lone Rider: A primeira mulher britânica a dar a volta ao mundo de motocicleta", lançado em 2017, Elspeth conversou com Universa. Mas antes, um breve resumo de sua grande aventura.

A volta ao mundo

A britânica, hoje com 66 anos, começou a vida sobre duas rodas aos 16 anos. Aos 18, comprou sua primeira moto (uma Yamaha YB100), somente para rodar por sua cidade natal Londres. Um ano depois, veio a Honda CB 250, e depois, uma BMW R60/6.

Elspeth Beard e sua Yamaha YB100
Elspeth Beard e sua Yamaha YB100 Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

O que começou como viagens curtas até Escócia e Irlanda, inspirou a primeira grande tour, em 1981, ao lado do irmão, a bordo de uma BMW R75/5, de Los Angeles a Detroit (EUA).

Aos 25 anos, formada em arquitetura e com "um coração partido", decidiu dar uma volta ao mundo começando por Nova York. De lá, para o Canadá. E depois México. A moto foi de navio até encontrá-la na Austrália — e já que a companhia metálica não havia chegado, deu uma andada por Nova Zelândia.

Elspeth Beard em estrada na Austrália
Elspeth Beard em estrada na Austrália Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Em Sydney, trabalhou para juntar uma graninha e fez a manutenção da moto para o resto da viagem com suas próprias mãos. Em Queensland, seu primeiro grande acidente - o que rendeu uma concussão, "mas nenhum osso quebrado".

De lá, Singapura, Indonésia, Tailândia e Malásia. No caminho para a Índia, mais um acidente e mais semanas de recuperação. De Calcutá, foi para Nepal (onde encontrou os pais depois de dois anos de viagem). A viagem seguiu por Paquistão, Irã, Turquia, Grécia, a "estrada da morte" da antiga Iugoslávia e o frio intenso dos Alpes.

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Elspeth Beard e sua BMW R60 GS
Elspeth Beard e sua BMW R60 GS Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

De volta a Londres, Elspeth calculou dois anos de viagem e mais de 56 mil km. Em casa, reconstruiu sua moto e hoje ainda pega estradas com sua 1998 BMW R80 GS Basic, "para o dia a dia".

Elspeth fala a Universa

Universa: Nessa viagem e em outras, quão mais fácil você imagina que seria se fosse um homem?

Elspeth Beard: Acho que uma mulher viajando sozinha sempre será vista como um alvo fácil, mas acredito que, se você demonstrar confiança, andar de cabeça erguida e parecer que tem um propósito, consegue reduzir significativamente os riscos.

Eu me sentia segura quando estava na moto, usando todo o meu equipamento e o capacete fechado. Como naquela época pouquíssimas mulheres andavam de moto, sempre presumiam que eu era um homem.

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Elspeth Beard em sua despedida da Índia
Elspeth Beard em sua despedida da Índia Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Eu me preocupava muito com a minha aparência e sempre usava as roupas mais feias e mal-ajustadas que conseguia encontrar, para não chamar atenção. Tinha plena consciência da minha vulnerabilidade.

No geral, não senti que ser uma mulher sozinha fosse uma desvantagem — muitas vezes, era uma vantagem. Os locais não me viam como uma ameaça e houve várias ocasiões em que fui convidada a ficar na casa de pessoas que estavam preocupadas com a minha segurança. Não sei se teria recebido a mesma hospitalidade se fosse homem.

Quando conheci Robert (um holandês que também estava de moto) e começamos a viajar juntos, notei claramente uma diferença: com um companheiro homem, parecia que eu não precisava mais da proteção deles.

Universa: Como você imagina que sua viagem seria diferente se fosse feita hoje em dia?

Elspeth Beard e sua Honda CB 250
Elspeth Beard e sua Honda CB 250 Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado
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Elspeth Beard: Acho que hoje em dia tudo é mais fácil; a maioria das motos é mais confiável e existem acessórios para tudo que se possa imaginar. O equipamento moderno para pilotagem é muito superior e mais protetor, o que considero algo positivo. No entanto, a maior mudança é a tecnologia e a quantidade de informação disponível — hoje você pode descobrir qualquer coisa, em qualquer lugar, na palma da mão com um smartphone.

Isso transformou a forma como as pessoas viajam, pois elimina o medo do desconhecido e oferece um certo "conforto" e uma rede de segurança, o que incentiva muito mais gente a cair na estrada.

Embora isso seja bom, não consigo evitar a sensação de que algo se perdeu. Saber o que está depois da próxima curva e poder planejar tudo nos mínimos detalhes elimina o desconhecido e a incerteza — e, no fim das contas, a aventura.

Para mim, a jornada não era apenas passar 4 ou 5 horas por dia sentada na moto, mas sim as experiências: as pessoas que você encontra, as quebras, os acidentes, se perder, e as situações bizarras em que você se encontra quando algo inesperado acontece. Essas são as experiências que compõem "a jornada" — e elas não acontecem quando você apenas segue uma linha vermelha no GPS.

Com tanta tecnologia e informação, essas experiências são minimizadas, e existe o risco de que a jornada deixe de ser uma aventura para se tornar apenas uma sequência de dias andando de moto.

Universa: Você faria essa viagem hoje em dia?

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Elspeth Beard: Ainda há muito do mundo que eu gostaria de ver e muitas coisas que quero fazer. Estou muito feliz por ter feito minha jornada quando fiz, numa época em que pude viver uma verdadeira aventura.

Também vale lembrar que, embora eu tenha dado a volta ao mundo, só vi os dois lados de uma única linha!

Elspeth Beard em deserto no Irã
Elspeth Beard em deserto no Irã Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Universa: Algum outro motociclista te inspirou a fazer essa viagem? Alguma mulher?

Elspeth Beard: Quando comecei a andar de moto em 1977, eu não conhecia nenhuma outra mulher que pilotasse, pois era muito incomum mulheres pilotarem motos grandes no Reino Unido naquela época. Sem internet, era muito mais difícil descobrir outras mulheres que já tivessem feito viagens de moto antes.

Universa: Você prefere viajar sozinha na moto ou com companhia?

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Elspeth Beard: É difícil dizer — gosto da liberdade de viajar sozinha, mas também é preciso lidar com a solidão. Acho que, se você encontrar a pessoa certa para viajar (o que não é fácil!), isso provavelmente é o melhor, além de ser mais seguro. Quando estava na minha viagem, me preocupava com a possibilidade de sofrer um acidente e ficar ferida numa vala, sozinha, a milhares de quilômetros de qualquer lugar.

Como naquela época não havia como entrar em contato com ninguém, eu temia pelas minhas chances de sobrevivência — e não queria morrer sozinha.

Elspeth Beard no norte da Tailândia
Elspeth Beard no norte da Tailândia Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Universa: Li que um dos motivos da sua viagem foi o fim de um relacionamento. Como essa viagem te ajudou a lidar com isso?

Elspeth Beard: Foi uma forma de escapismo. Quando você se mantém ocupada e sua mente está focada em outras coisas, tem menos tempo para sentir pena de si mesma. Viajar ao redor do mundo me deu muito em que pensar, e aos poucos fui pensando cada vez menos na minha antiga paixão. Também é mais fácil quando você consegue se afastar fisicamente da pessoa.

Universa: Como você se compararia antes e depois dessa volta ao mundo?

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Elspeth Beard: A viagem mudou completamente a minha vida e me transformou na pessoa que sou. Ela me deu confiança para enfrentar qualquer coisa que a vida coloque no meu caminho, sem medo.

Elspeth Beard em Katmandu
Elspeth Beard em Katmandu Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Universa: Você se sentiu segura como uma jovem motociclista mulher em algum lugar? E em quais países se sentiu menos segura?

Elspeth Beard: De modo geral, achei mais difícil viajar por países muçulmanos, mas felizmente, na maioria das vezes, presumiam que eu era homem enquanto eu mantinha o capacete. Em contraste, países como Tailândia e Nepal eram muito mais fáceis e eu me sentia mais segura.

Universa: Quais países você deixou de visitar e gostaria de ter conhecido nessa viagem?

Elspeth Beard: Gostaria de ter visitado a Birmânia (atualmente Mianmar), mas não era possível entrar no país por terra no início dos anos 1980. O Butão era outro lugar que queria conhecer, mas estava fechado, então não foi possível. Também queria explorar a América do Sul, mas não tinha dinheiro. Precisava chegar à Austrália para trabalhar e juntar dinheiro para voltar para casa.

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Elspeth Beard fazia a manutenção de suas motos
Elspeth Beard fazia a manutenção de suas motos Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Universa: Como surgiu a ideia do livro?

Elspeth Beard: Quando parti para dar a volta ao mundo de moto, em 1982, nunca imaginei que, 35 anos depois, publicaria minha história. Ao voltar, em 1984, guardei todos os meus diários, fitas e fotos numa caixa de papelão no fundo de um armário, onde ficaram por mais de 30 anos.

Em 2008, um pequeno artigo sobre minha viagem foi publicado na revista BMW International e distribuído no mundo todo como um press release.

Nos sete anos seguintes, minha história começou a se espalhar pela internet e ganhou força. Em 2014, fui contatada do nada por um agente de Hollywood que tinha lido o artigo e queria comprar os direitos da minha história para fazer um filme.

Sempre quis escrever um livro, mas quando voltei, em 1984, quase ninguém se interessou. No entanto, 35 anos depois, pareceu haver um interesse real pela minha jornada, o que me convenceu a escrever o livro.

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Elspeth Beard e sua BMW R60/6
Elspeth Beard e sua BMW R60/6 Imagem: Arquivo pessoal/Uso autorizado

Universa: O que você acha de ser uma inspiração para motociclistas e mulheres?

Elspeth Beard: Se minha história pode agora inspirar outras pessoas — especialmente mulheres — a acreditar que não há limites para o que se pode conquistar com autoconfiança e determinação, então isso dá um novo sentido à minha viagem.

A jornada mudou completamente minha vida e me fez quem eu sou. Pensar que minha viagem possa encorajar e inspirar outras pessoas é algo extraordinário para mim.

Universa: Que conselho você daria a uma jovem que deseja fazer esse tipo de viagem?

Sempre digo que uma das coisas mais difíceis é partir — sempre haverá motivos para achar que ainda não é o momento certo.

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Deixe de lado seus medos e apenas vá. Você não conhece de verdade quem você é até estar disposta a se lançar no mundo e se testar. Para mim, foi uma experiência que mudou minha vida.

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