'Não é para negros': usuários reclamam de prioridade para brancos no Tinder

Jéssica Vanderley, 33, considerou sua experiência no Tinder como "péssima": "não é para negros", afirma a jovem. Ela conta que uma das coisas que mais a irritava no Tinder era a superficialidade. "Você dizia 'oi' a pessoa e ela respondia dizendo 'manda uma foto sua'". E, apesar de nova, a pernambucana se diz "à moda antiga". Por esse motivo, não gostava das conversas rasas que tinha por ali.

Para ela, dar match com pessoas não-negras era um tanto trabalhoso.

As pessoas simplesmente não entendiam minha vida como uma mulher preta e eu não tenho paciência para explicar. O Google tá aí para isso. Jéssica Vanderley

Depois de comentar sobre sua experiência com seu irmão, ela foi incentivada por ele a baixar o Denga Love, um app de relacionamento entre pessoas negras.

Por achar a proposta interessante, adicionou a aplicação em seu celular e, finalmente, achou ter encontrado um local seguro para conversas mais profundas. "Pelo menos de amizade a gente vai sair desse negócio", pensou. Na teoria, tinha certeza que encontraria pessoas parecidas culturalmente e socialmente com ela.

Mas o que Jéssica mal sabia é que ela encontraria o amor. "Fiquei apenas alguns dias no app e conheci meu marido", conta.

Em dois dias de conversa com Luiz Adriano, 33, no app, eles já migraram para outros, como Instagram e WhatsApp. Uma semana depois do match, se encontraram. "Nunca mais nos desgrudamos", diz ela. Após quatro meses do primeiro encontro, Jéssica já estava grávida do pequeno Zack, que hoje tem 10 meses.

'Não estamos excluindo ninguém'

Criador do Denga Love, Fillipe Dornelas também passou por alguns aplicativos de relacionamento. Em todos eles, encontrou problemas. Entre as inúmeras violências que mencionou ter sofrido, uma delas foi quando uma mulher com quem havia dado match fez comentários sobre seu tom de pele.

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"Por que que eu não tenho oportunidades iguais de relacionamento? Por que não sou tão procurado quanto meus amigos de pele mais clara?", se questionava.

Foi diante de tantas expectativas frustradas que ele pegou suas economias e criou o app do zero. Para ele, o ápice da influência da ferramenta na vida das pessoas são as construções de histórias como de Jéssica e Luiz, que, através dela, formaram uma família. "Esse é meu objetivo com o Denga", diz.

Hoje, o app reúne mais de 200 mil usuários espalhados pelo Brasil. No ranking de estados que mais o utilizam estão São Paulo, em primeiro, seguido por Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais.

Um levantamento feito pela própria plataforma revelou que 67% de seus usuários têm entre 18 e 30 anos, sendo 52,1% mulheres, 47,3% homens e 1,4% pessoas transexuais.

Mas, antes que esse resultado pudesse ser atingido, Fillipe precisou pensar em como representar as pessoas que queria de atrair. Do nome à estética, tudo foi pensado para fazer com que seus usuários se sentissem "em casa".

Página inicial do Denga Love, app de relacionamento para pessoas negras
Página inicial do Denga Love, app de relacionamento para pessoas negras Imagem: Reprodução/Denga Love
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O projeto do app já começa pelo nome: Denga vem do termo kikongo — idioma bantu falado em Angola, República Democrática do Congo e República do Congo — "ndengo", que pode significar doçura ou gesto de carinho.

Se você entrar no app vai reparar que, desde o começo, quando você abre o aplicativo, a primeira frase é "de pessoas negras para pessoas negras". Nas páginas seguintes, você vê pessoas negras durante o cadastro? Você vê mensagens e frases voltadas a ideia. Além disso, temos a mesma usabilidade ou até melhor que de outras plataformas de relacionamento.
Fillipe Dornelas

Além da estética pensada para levar identificação, segundo Fillipe, ela também tem como objetivo mostrar às pessoas que não são o público-alvo — pessoas não-negras — que o app tem um objetivo.

Mas dia após dia, Fillipe recebe reclamações de usuários que dizem que a cada dia o app tem recebido mais usuários brancos. Para ele, não é como se essas pessoas não tivessem entendido, elas realmente estão entrando conscientemente em um espaço que não foi designado para elas.

"Pessoas brancas não estão nos respeitando, e estão entrando mesmo com todos os avisos bem explícitos", desabafou Fillipe.

E, além do preconceito relacionado a sua estética e ao fato de não sentir que a plataforma está sendo respeitada, o empresário disse enfrentar uma outra camada do racismo: a dificuldade em conseguir investidores para o Denga por conta da proposta do app. "Por ser voltado para pessoas negras, acaba passando por outros tipos de preconceito", disse.

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Algumas das frases ouvidas por ele de pessoas não-negras e investidoras durante suas tentativas de rodadas de investimento foram "vocês estão criando um novo apartheid", "estão lucrando com o racismo".

Mas ele contesta: "não estamos excluindo ninguém. Pelo contrário, estamos incluindo um povo que nunca foi bem tratado nos outros aplicativos".

Algoritmo faz distinção?

Fillipe e Jéssica apontaram o mesmo sentimento em comum em relação às plataformas de namoro mais usadas no Brasil. Eles sentem que o algoritmo age diferente entre pessoas brancas e negras.

A pernambucana acredita que a aparição de pessoas negras no Tinder não compete com a de pessoas brancas: "parece que o algoritmo dá muito mais espaço para pessoas brancas", disse. Para ela, com os negros sendo a maioria da população brasileira (56% de acordo com o IBGE), isso não deveria acontecer.

Fillipe também acredita nisso. Estudioso no tema, contou que em suas leituras estão "Not My Type" (Não é Meu Tipo), livro de Apryl Williams, que fornece um exame sociotécnico sobre os sistemas de IA que alimentam o Tinder, o Bumble, o Hinge e outros aplicativos de relacionamento.

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Para Fernanda Rodrigues, coordenadora de pesquisa e pesquisadora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS), projeto que nasceu na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), os aplicativos de relacionamento não são transparentes a ponto de serem identificadas suas "falhas".

Falhas entre aspas, porque muitas vezes essa entrega que achamos falha é exatamente como aquele aquele sistema funciona. É o reconhecimento facial que não enxerga pessoas negras adequadamente, é o algoritmo das redes sociais que podem estar priorizando não recomendar conteúdo em que as pessoas mencionam racismo...
Fernanda Rodrigues

E, quando ela fala de transparência, não é sobre ter acesso aos códigos daquela plataforma, mas, sim, entender como funciona o sistema de recomendação.

Sendo assim, Rodrigues enxerga duas possibilidades para a percepção de Jéssica e Fillipe. A primeira, seria que Tinder e outras plataformas possam estar fazendo o rankeamento de acordo com a preferência dos usuários, ou seja, os usuários curtirem mais perfis de pessoas brancas — o que, para ela, poderia explicar como o racismo estrutural poderia estar alimentando essas diferenças.

A segunda, é de que eventualmente o próprio algoritmo esteja priorizando pessoas brancas por entender que algum tipo de preterimento em relação a pessoas negras.

Ter essas explicações é o mínimo. Se o usuário tiver ciência dessa informação ele pode decidir se permanece naquela plataforma ou se vai buscar alguma outra opção
Fernanda Rodrigues

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O que o Tinder diz sobre isso?

Procurado por Universa, o Tinder negou qualquer tipo de interferência algorítmica na distribuição de seus usuários.

Em nota, a plataforma disse que "o algoritmo de correspondência do Tinder foi projetado para criar conexões com base na atividade do usuário, interesses compartilhados e proximidade geográfica. Ele não leva em consideração fatores como status social, religião ou etnia, garantindo que cada membro tenha a mesma oportunidade de se conectar com outros na plataforma".

"O Tinder reconhece a responsabilidade que tem em combater viés, preconceito e discriminação em espaços online. Estamos comprometidos em fornecer uma plataforma que promova respeito e justiça para todos os usuários, independentemente de sua origem racial. Incentivamos que os usuários relatem qualquer comportamento inadequado experienciado, para que possamos agir rapidamente e garantir que nossa plataforma continue sendo um espaço seguro para todos", escreveu a plataforma.

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