Primeira Parada Gay do Brasil não foi em SP e reuniu apenas 3.000 pessoas

A Parada de São Paulo, considerada uma das maiores do mundo, será realizada no dia 22 de junho com o tema "Envelhecer LGBT+ é memória, resistência e futuro". Mas engana-se quem imagina que o primeiro evento ocorreu na capital paulistana, como muitos acreditam.

A Parada pioneira aconteceu no Rio de Janeiro em 25 de junho de 1995 sob o nome de 'Marcha pela Cidadania', após o encerramento da 17ª Conferência da ILGA - Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexo.

A Praia de Copacabana foi o cenário escolhido para sediar a celebração organizada pelo Grupo Arco-Íris, Atobá, Movimento DELLAS, Grupo Unido Astral, Caras e Coroas, Triangulo Rosa, e diversos outros, e que contou com um número pouco expressivo de pessoas LGBTQ+, cerca de 3.000, incluindo os 1.500 participantes da convenção oriundos de 40 países.

'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995
'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995 Imagem: Toni Reis

A razão para a baixa adesão era simples: muitos não eram assumidos para suas famílias e temiam aparecer na televisão e jornais, cientes que a imprensa estaria no local.

A empresária transexual Kassandra Taylor, 58, se recorda nitidamente daquele dia. Ela chegou na orla a bordo do seu ônibus rosa chamado Priscilla, em homenagem ao filme australiano "Priscilla - A Rainha do Deserto" de 1994. O veículo roubou a atenção, uma multidão de curiosos cercaram o transporte.

Kassandra Taylor e seu ônibus rosa chamado Priscilla, na 'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995
Kassandra Taylor e seu ônibus rosa chamado Priscilla, na 'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995 Imagem: Kassandra Taylor

Continua após a publicidade

Estava no teto, assim que chegamos as pessoas correram para ver de perto a Priscilla, havia um jogo de vôlei na praia, e o povo deixou de assistir para nos ver, parecia um carro alegórico, conta.

A repercussão foi tão grande, que ela e suas amigas drag queens estamparam reportagens de alguns jornais da época.

Como lembra a veterana drag queen Eula Rochard, que em 2023 virou notícia internacional ao revelar o passado do ex-deputado republicano George Santos, a estrutura do evento era simples em comparação aos dias atuais. O carro de som era pequeno tendo sido emprestado por um sindicato, uma bandeira de 124 metros com as cores do arco-íris foi erguida por ativistas enquanto caminhavam do posto 6 ao 2.

Eula Rochard
Eula Rochard Imagem: Arquivo pessoal

Ativa nos palcos cariocas desde 1984, Eula relembrou quando algumas pessoas que estavam assistindo da orla, disseram impropérios, mas nada que manchasse o momento. Na ocasião da Parada, um jornal local reportou que ameaças havia sido feitas por representantes de grupos conservadores, incomodados com a presença massiva de homossexuais na cidade.

Continua após a publicidade

Nomes ilustres e 'Olimpíadas'

Personalidades da cena LGBT+ também marcaram presença, diretamente de São Paulo, a drag queen Salete Campari foi um dos destaques que prestigiaram o evento.

Era uma parada política, uma caminhada política, quando estávamos lutando por direitos, por inclusão social, e isso era o mais importante que me lembro, conta.

A cantora Marina Lima também compareceu à marcha, assim como Jane Di Castro (1947-2020); outra figura conhecida foi Isabelita dos Patins, que assistiu à Parada da varanda do Copacabana Palace a convite da direção do hotel. Ela salientou o carinho do público para com ela dois anos após o famoso 'beijo' no rosto de Fernando Henrique Cardoso.

As pessoas acenavam, tiravam fotos, e mandavam beijinhos para mim, anos dourados que não voltam mais.

'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995
'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995 Imagem: Grupo Gay da Bahia
Continua após a publicidade

Ativistas do país inteiro também estiveram presentes como Toni Reis, João Antônio Mascarenhas (1927-1998), Luiz Mott (um decano do movimento homossexual no país), Claudio Nascimento, Raimundo Pereira (1960-2006), Beto de Jesus e muitos outros nomes relevantes. O cantor e compositor Renato Russo (1960-1996) doou US$ 10 mil para a organização da conferência, uma alta soma para a época.

Na ocasião, o canadense Andy Quan, coordenador da ILGA, declarou a um jornal carioca, "não existe lugar mais liberal em toda a América Latina", se referindo ao Rio.

Paralelo a ILGA, também ocorreram na Cidade Maravilhosa outros eventos, como o III Encontro Nacional de Travestis e Liberados e a 1?ª Olimpíada Internacional de Gays e Lésbicas. Intitulada Gaymes, os jogos de futebol de praia, vôlei, ciclismo, natação e uma mini maratona de 4 km, contou com 300 inscritos e a presença de famosos como Rogéria (1943-2017), Renato Russo, Fernando Gabeira e a ex-modelo e apresentadora Monique Evans, considerada a madrinha dos gays.

Nas bancas de jornais, a revista Sui Generis, primeira publicação dedicada ao público homossexual (e sem apelo erótico) saia com uma tiragem de 30 mil exemplares.

Como era ser LGBT em 1995?

Indagadas se era mais difícil ser LGBT nos anos 1990, Taylor opinou, "acho que é igual, talvez hoje as portas estão mais abertas, as pessoas têm um olhar melhor hoje, mas ainda falta muito a percorrer, e preconceito sempre vai existir, infelizmente".

Continua após a publicidade
'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995
'Marcha pela Cidadania' no Rio, a primeira Parada Gay do Brasil, em 1995 Imagem: Kassandra Taylor

Enquanto Angélika Rawaxi que também esteve na Parada de Copacabana, ressaltou sobre o mercado de trabalho naquele tempo:

O preconceito poderia ser maior, o respeito poderia ser menor, mas éramos muito mais valorizadas profissionalmente, para quem trabalhava com shows, teatro, etc, pontua.

As primeiras Prides do Brasil (conforme são chamadas no exterior, cuja tradução significa Orgulho) também eram mais politizadas, havia um esforço em buscar mudanças efetivas para a comunidade que naquele tempo era reconhecida pela sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes).

"As pessoas eram mais unidas, lutavam pela causa, era um ambiente mais tranquilo, onde as pessoas se entendiam, mas hoje em dia parece um carnaval fora de época", critica Rawaxi.

Continua após a publicidade

No ano seguinte a pioneira Pride carioca, ocorreu uma pequena manifestação na Praça Roosevelt em São Paulo, que reuniu cerca de 500 pessoas. E em 1997, foi realizada a primeira Parada Gay de São Paulo, na Avenida Paulista, local onde continua sendo palco até agora.

Ali surgiu a nossa caminhada de São Paulo em 1996, e depois a nossa maior parada do mundo, muito importante mesmo, concluiu Salete.

Tchaka em cima do trio na Parada LGBTQIA+ 2024
Tchaka em cima do trio na Parada LGBTQIA+ 2024 Imagem: Alexandre de Melo

O evento cresceu em proporções enormes, o público aumentou exponencialmente, novas causas foram agregadas, assim como atrações em trios elétricos e também apoio (patrocínios) ao longo dos anos. Em 2024, o evento no Rio reuniu 1 milhão de pessoas, enquanto em São Paulo cerca de 3 milhões, um número surreal comparado há três décadas.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.