Sofrer violência na infância compromete a saúde mental pro resto da vida?

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"Eu sofri violência na infância, cresci apanhando para ser educada e, adulta, criei meu filho assim, porque para mim não havia outro jeito. Estou em tratamento de depressão pela segunda vez e lido com transtorno de ordem alimentar há anos."
O relato da produtora de eventos C.P., de 51 anos, é um exemplo claro de como a violência na infância -fase decisiva para o desenvolvimento emocional, social e cognitivo- pode deixar impactos profundos na saúde mental, que se estendem ao longo da vida. Seu filho, J.C, 26 anos, que parou de apanhar com 15 anos, foi diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Observadas em consultórios do mundo todo há anos, as consequência desse tipo de trauma foram quantificadas por uma pesquisa da Associação Médica Americana, publicada no ano passado no periódico JAMA Psychiatry. Os números chamam a atenção: de acordo com o estudo, aproximadamente 1,8 milhão de casos de transtornos de saúde mental, como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático, dificuldades de socialização e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), poderiam ter sido evitados se a violência não tivesse acontecido. E mais de 184 mil anos de vida saudável foram perdidos devido a transtornos mentais diretamente relacionados à violência infantil.
Não me acho boa o suficiente, acho que não tenho capacidade para nada, que não tenho valor, e sempre acabei aceitando muita coisa, até como esposa. Descobri que era gente muito tarde.C.P., 51, produtora de eventos
"Os efeitos da violência impactam a construção da identidade, a capacidade de estabelecer vínculos e a forma como os indivíduos enxergam o mundo e a si mesmos", destaca o psicólogo Fernando Caffarello, gerente de Projetos da ONG Ficar de Bem, que oferece suporte às vítimas, promove a reconstrução de vínculos familiares saudáveis e contribui para a superação dos traumas vivenciados.
Crianças expostas à violência desenvolvem níveis elevados de estresse, o que compromete áreas do cérebro responsáveis pelo controle emocional, memória e tomada de decisões. Fernando Caffarello, psicólogo e gerente de Projetos da ONG Ficar de Bem
Consequências das agressões

Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), cerca de 80% das agressões contra crianças de até 14 anos ocorreram dentro de suas próprias casas. Para ficar claro, nem sempre precisa haver agressão física: entre os tipos de violências estão a física, sexual ou a psicológica.
Apesar de ser ideal que nenhum desses atos ocorra, é melhor que a tomada de consciência aconteça um dia, do que nunca aconteça. "Parei de bater muito tarde, foi um processo longo e, quando comecei a me dar conta do que é uma agressão, fiquei sem conseguir falar sobre o assunto, porque era muito dolorido", conta C.P..
O objetivo da produtora de eventos não era castigar o filho, e sim educá-lo, porém da forma como foi ensinada na própria infância. Na época, não havia a Lei Menino Bernardo (de 2014), que proíbe castigos físicos contra crianças e adolescentes e propõe métodos de educação não violentos. Apesar da aplicação da lei depender da interpretação do juiz, a palmada é considerada crime de maus tratos, previsto no Código Penal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Para C.P., hoje é claro o erro das palmadas, e não foi preciso a lei para orientá-la, mas acolhimento e conhecimento. "O que me fez parar de bater foi entender que eu só batia porque não tinha recursos para lidar com aquilo, e isso veio através de uma amiga, que me trouxe a disciplina positiva, e também através de um grupo de mães onde trabalhei", conta, emocionada.
Querer ver o filho adulto saudável e ter uma relação sadia com ele foi outro grande motivo. "Fui olhando para a educação de outra forma, e decidi que bater não era mais opção. Proibi meu marido também. Não fiz tudo como deveria ser, mas dentro da minha história foi o que, como e quando consegui."
A hora de superar os traumas chega, porém, mais importante do que pensar em como ajudar nossos filhos a fazer isso (ou em como nós podemos superar o que vivemos), é que todos cuidem das crianças em casa, no dia a dia, no convívio familiar, e também no escolar e entre amigos - para que não haja traumas.
Abuso de substâncias
Além do estresse tóxico que afeta o desenvolvimento do cérebro e o comportamento, a exposição às violências em idade precoce pode ainda favorecer o abuso de substâncias.
"Muitos adultos têm dificuldade de lidar com histórico de violência doméstica, traumas ou negligência na infância, e é comum usarem álcool, drogas ou medicamentos, para se anestesiarem emocionalmente da dor que não foi tratada adequadamente com ajuda profissional", afirma Pedro Zogaib, psicólogo clínico certificado em trauma, que atua há mais de dez anos em clínicas de reabilitação de transtornos mentais e de uso de substâncias.
No passado as pessoas falavam que uma droga era a porta de entrada para outras drogas, hoje dizemos que o trauma é a porta de entrada para o transtorno de uso de substância. Pedro Zogaib, psicólogo clínico, especialista em reabilitação de transtornos mentais e de uso de substâncias
Futuro saudável existe

Uma vez que a violência foi sofrida, há como lidar com o trauma? A boa notícia é que sim, apesar de ser um doloroso e nem sempre rápido. O importante é buscar uma terapia comprovada cientificamente e um profissional habilitado: o risco de tentar revisitar essas memórias sem ajuda especializada é a pessoa se retraumatizar. O correto e seguro é passar por um preparo em que a pessoa se sente capaz e fortalecida para revisitar esses eventos.
É possível reprocessar as memórias com diferentes abordagens terapêuticas, como a cognitivo comportamental, que trabalha com o reprocessamento do pensamento para reestruturá-lo. Ou o EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing), psicoterapia que ajuda a reprocessar memórias traumáticas através da dessensibilização e do reprocessamento através do movimento dos olhos - ativando a bilateralidade do cérebro. Ou ainda a Experiência Somática, que faz esse trabalho através do corpo.
Segundo o especialista, a discussão atual entre os especialistas é que, de uma maneira muito rápida, possa ser possível atender a crianças que tenham distúrbios de comportamento na escola ou que sejam diagnosticadas com algum transtorno de atenção.O motivo é que estes podem ser sintomas relacionados às experiências traumáticas. "Ao invés de tratar o transtorno, você trabalha o trauma. Os sintomas desaparecem, e a medicação muitas vezes passa a ser desnecessária", explica o especialista, que atuou também com crianças refugiadas, vítimas de abuso físico, sexual e emocional, nos Estados Unidos.
Por trás dos números, uma sociedade toda
Os impactos da violência sofrida na infância ultrapassam a esfera individual e refletem na sociedade, elevando índices de evasão escolar, vulnerabilidade social e problemas de inserção no mercado de trabalho, por exemplo. Por isso, há a necessidade de fortalecer políticas de proteção e apoio às vítimas.
Cada um, por sua vez, pode apoiar organizações sociais, promover ambientes seguros para o desenvolvimento infantil e, claro, denunciar - caso perceba que algo está errado na família do vizinho. Lembrando que não estamos falando de poucas famílias ou de apenas alguns tipos de violência. Confira mais alguns números alarmantes, segundo a Unicef:
- A cada quatro minutos, em algum lugar do mundo, um menino ou menina morre em decorrência de um ato de violência;
- Quase 90 milhões de meninos e meninas vivos já sofreram episódios de violência sexual;
- 1,6 bilhão de meninos e meninas - ou seja, dois a cada três crianças - sofrem castigos violentos de maneira habitual em seus lares; mais de dois terços são vítimas tanto de castigos físicos como de agressões psicológicas.
Vale lembrar ainda que, só em 2023, foi registrado aumento de 24% no número de denúncias de violações contra crianças e adolescentes no Brasil. Desses casos, 3% a 5% são contra crianças com algum tipo de deficiência e 57% contra crianças com deficiência mental/intelectual.
As denúncias contra violência a crianças e adolescentes podem ser feitas nas delegacias especializadas ou pelo telefone, Disque 100.
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