'Ele me tirou mais de R$ 300 mil': o que é o estelionato sentimental

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Em fevereiro de 2024 tudo mudou para Clara* que acreditava ter conhecido um parceiro de vida, alguém com quem finalmente poderia ser vulnerável e feliz. "Ele parecia ser bem-sucedido", diz ela, que, após se envolver com Leonardo, 41, perdeu pelo menos R$ 310 mil de seu patrimônio de vida em questão de meses.
Ela relata que ele dizia trabalhar com licitações e acabava por pedir "investimentos" de mulheres com quem se relacionava, com a promessa de retornos financeiros altíssimos a curto prazo.
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"Cheguei a pesquisar o nome dele e vi que ele tinha processos trabalhistas, mas achei algo comum, já que ele disse que era empresário", diz, abalada com o momento de fragilidade financeira e psicológica que contou estar passando.
Mais de R$ 300 mil
Espiritualizado, bom ouvinte e sempre disposto a ajudar. Foi assim que Leonardo foi descrito pela suposta vítima de estelionato sentimental.
Ao conhecê-lo, Clara* diz que Leonardo andava com um carro de luxo. Sendo assim, não desconfiava que aquilo poderia ser fachada, ou que, talvez, o dinheiro investido naquela brincadeira poderia ser de uma outra mulher enganada por ele.
Ele chegou a conhecer sua família — e vice-versa — e inclusive viajaram juntos com seu irmão. Por esse nível de envolvimento, ela sentia como se o relacionamento fosse perfeito: Leonardo sabia respeitar seu espaço, mas ao mesmo tempo era uma companhia agradável.
Totalmente envolvida com o suposto estelionatário, acabou o chamando para morar junto. Além de pedir dinheiro emprestado constantemente, ela conta que Leonardo não arcava com o mínimo de suas responsabilidades dentro de casa.
Pouco tempo depois, pediu para que ele saísse de sua casa, mas continuaram o relacionamento. Ele, então, foi morar numa área nobre de Goiânia, no bairro St. Bueno, em um apartamento avaliado em aproximadamente R$ 1 milhão.
"Ele dizia que o apartamento era pagamento de uma dívida que alguém tinha com ele", diz ela, que chegou a conhecer o local.
Foram aproximadamente 10 meses — de março de 2024 a janeiro de 2025 — para que o suposto estelionatário conseguisse mais de R$ 300 mil dela. A Universa, Clara* deu acesso aos comprovantes de transferência e cheques utilizados para os ditos "investimentos" que ele faria.
Em uma dessas, ela conta que Leonardo chegou a preencher um cheque dela, mas que não foi aceito pelo banco por conta da diferença na caligrafia.

Clara* nunca recebeu quase nada de volta. Muito abalada, ela conta que ele já devolveu valores muito baixos por aproximadamente dois meses, dizendo que aqueles eram os "lucros" que ela sempre ganharia pelo investimento, fazendo, assim, ela continuar a confiar nele.
Mal sabia ela que seu maior pesadelo já tinha começado ali, ao conhecê-lo. "Quando minha ficha caiu já era tarde. Ele me tirou um patrimônio de uma vida toda. Eu tenho um filho para cuidar", desabafa. "Eu dormi ao lado de um bandido que me tirou mais de R$ 300 mil", completa.
"Love bombing"
Clara* e Leonardo se encontraram app de relacionamento. Primeiro, ele se mostrou totalmente disponível emocionalmente para se envolver, sem medo de compromisso. E, na época, ela estava em processo de reforma em seu apartamento. "Ele me ajudava a comprar materiais e levava para o pessoal na obra. Inspecionava o trabalho, garantindo que estivesse sendo cumprido, sempre muito preocupado", diz ela.
"Logo no início, os golpistas demonstram um interesse intenso e aceleram a relação, declarando amor rapidamente e criando uma sensação de 'alma gêmea'. Eles fazem o que a gente chama de bombardeio de amor, ou 'love bombing'", é o que explica Arielle Sagrillo Scarpati, psicóloga e doutora em Psicologia Forense pela Universidade of Kent (Universidade de Kent).
O "love bombing" é uma forma de manipulação emocional que consiste em dar atenção e carinho excessivos no início do relacionamento.
É todo um enredo, uma história bem criada e uma forma de se colocar numa situação de vulnerabilidade -- naquele início que está te conhecendo -- pra que você abra a guarda, se sinta segura e permita essa entrada
Clara*
A partir deste momento de completo envolvimento emocional é quando os assuntos envolvendo dinheiro começam.
"Ele sempre contava uma história. Pedia dinheiro emprestado e dizia que era um investimento e que receberia os lucros mês a mês", conta Clara*, que começou com pequenas quantias, de R$ 2 mil, até chegar em cheques de mais de R$ 30 mil.
Quando perguntado sobre a devolução desse dinheiro, Leonardo sempre tinha uma história triste para contar.
Clara* diz que uma das táticas de Leonardo era usar seus problemas de saúde — que eram reais — para se vitimizar.
A manipulação emocional pode fazer com que a vítima duvide da própria inteligência e capacidade de julgamento; algo que interfere diretamente em sua autoestima. Depois que a vítima passa a confiar neles, eles podem contar sobre um problema urgente ou grave para o qual precisam de dinheiro.
Arielle Sagrillo Scarpati
A psicóloga também diz que não existe uma "vítima perfeita". O estelionatário sentimental pode enganar qualquer pessoa, mas alguns perfis de pessoas são os mais procurados por estes criminosos. São pessoas que:
- Estão passando por momentos de solidão, luto, ou separação e podem estar fragilizadas emocionalmente
- Estão em busca de um relacionamento sério e acabam por baixar a guarda
- Que têm uma boa condição financeira e podem fornecer ao golpista algum tipo de suporte financeiro
- Tenham pouco conhecimento sobre golpes --comum no caso de idosos
A especialista também alerta para um fato importante: o de não culpabilizar a vítima.
"Ninguém deveria se sentir culpado, envergonhado ou responsável pela sua própria vitimização. Acho muito importante que a gente deixe isso claro: a responsabilidade pelo ocorrido é sempre de quem pratica o ato", diz Scarpati.
Processo e medida protetiva
Segundo Clara*, há outras supostas vítimas de Leonardo. Mas ela foi a mais prejudicada e a única a processá-lo. Para ela, a ação é uma questão de honra e uma tentativa de tentar pará-lo.
As mentiras que disse ouvir de Leonardo foram o estopim para que ela entendesse com quem estava lidando. "Ele ficava com outra pessoa enquanto eu estava nos meus plantões de trabalho", diz.
Clara* foi atrás de algumas mulheres com quem ele teria se envolvido ao longo de seu relacionamento. Nisso, percebeu que a abordagem era sempre parecida:
- Ele se mostrava espiritualizado e praticante do espiritismo
- Mostrava "maturidade" no relacionamento, o que depois se mostrou parte da estratégia
- Usava alguns problemas de saúde crônicos que tinha para fazê-la sentir pena
- Demonstrava anseios financeiros ambiciosos. Ele dizia a ela que faria R$ 1 milhão até o fim daquele ano de 2024
Depois disso, não teve mais dúvidas e decidiu entrar na justiça contra Leonardo em três processos que estão tramitando: uma medida protetiva de urgência, uma ação criminal pelo estelionato sentimental e uma ação de cobrança pelos danos materiais e morais.
Em nota, o escritório de advocacia PFS Advogadas, que cuida do caso de Clara*, diz que "espera que com os processos nossa cliente retome sua dignidade, considerando que ela foi extremamente destruída emocionalmente, psicologicamente e, principalmente, financeiramente".
A gente precisa começar a tratar as violências psicológicas e estelionatos sentimentais com a gravidade dos atos que são. A gente espera que o acusado não faça mais vítimas, mas também que ele consiga seguir com a vida dele em frente, mas reparando a nossa cliente.
PFS Advogadas, em nota a Universa
Universa procurou o Ministério Público do estado de Goiás, que disse que o processo corre em "segredo de justiça, não sendo possível repassar informações".
A defesa de Leonardo disse, em nota, que "nega veementemente a prática de qualquer ato ilícito que lhe tenha sido imputado".
Reitera-se, ainda, o compromisso com os princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, bem como o respeito a presunção de inocência, garantia fundamental assegurada a todo cidadão até o trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. A defesa confia plenamente na Justiça e acredita que, ao final do processo, a verdade dos fatos prevalecerá, com o consequente reconhecimento da inocência do senhor Leonardo.
Rodrigo Marck's Mendes Cardoso de Oliveira, advogado de Leonardo, em nota
Estelionato sentimental
"Estelionato é quando alguém obtém uma vantagem para si ou para um terceiro, por meio de um ato ilícito ou de uma fraude", diz a advogada Cecilia Mello. A pena base vai de um a cinco anos e o artigo do Código Penal é o popularmente conhecido 171.
Já estelionato sentimental é quando uma pessoa causa além de um prejuízo financeiro: cria um trauma emocional na vítima. Mas, na lei, isso não é visto como um agravante para o crime e é tratado como um estelionato simples.
O Projeto de Lei 69/25 busca tipificar o estelionato sentimental como crime de alto potencial ofensivo. Ele também tem como objetivo o tornar um delito separado e aumentar sua pena de quatro a 10 anos de reclusão em regime fechado, criando o artigo 171A no Código Penal.
"Este crime não vai ser praticado exclusivamente contra a mulher, porque ele pode ser praticado contra idosos e contra homens também"
Cecília Melo
Melo aponta que o compartilhamento financeiro deve ser estabelecido com vínculo solidificado. "É muito arriscado travar qualquer coisa nesse sentido sem ter um relacionamento firme com alguém. Até no âmbito familiar é uma questão delicada. No âmbito dos romances, então, é muito arriscado", diz.
Por óbvio que não temos o hábito de pesquisar a vida pregressa da pessoa, mas eu diria que não é uma má ideia. Principalmente quando num relacionamento surge uma questão financeira. É o primeiro alerta que se tem.
Cecília Melo
"Desconfie de histórias muito românticas e aceleradas". É o que diz Scarpati, que completa: "se alguém que você mal conhece já diz que te ama, te isola de pessoas conhecidas ou diz que quer casar, isso pode ser um sinal de alerta".
'Não vale a minha vida'
"O conforto que eu tinha, demorei anos para construir. Nesses anos, tive a pandemia no meio, o que me causou um nível de estresse tão grande quanto esse e adoecimento físico e mental, e esse dinheiro também faz parte desse processo que eu vivi. Ele está roubando partes de mim que foram muito doídas de conquistar" diz Clara*, em prantos.
É pouco tempo pra dizer que eu me reergui, que eu estou bem. Não. E ver que para ele é indiferente... Se eu estivesse sem comida, ao ponto dele ter me tirado tudo, para ele ainda seria indiferente. Então, eu sei que é muita grana, mas mesmo assim não vale a minha vida.
Clara*
Agora, Clara* e sua equipe de advogadas aguardam os próximos passos do processo, muito esperançosas com o que há de vir. Querem justiça não só para ela, como para todas as pessoas que, de alguma forma, foram prejudicadas por ele.
Não é querendo o mal dele, é querendo que ele se responsabilize pelas atitudes dele. Ele tem atitudes que são erradas, são criminosas e geram danos irreparáveis para as pessoas. Eu consigo ainda pagar minha terapia e não me matar. E quem não consegue? E quem não consegue ter uma estrutura de trabalhar horrores para pagar advogado?
Clara*
Denúncia
Se você está passando por uma situação de estelionato sentimental, é recomendado que realize um boletim de ocorrência na delegacia de sua cidade ou por meio da Delegacia Eletrônica. Também é possível acionar o Disque Denúncia, da SSP (Secretaria de Segurança Pública) através do número 181. Procure ajuda psicológica.
*Nome trocado a pedido da entrevistada.
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