Compersão: o que é o termo da não monogamia que se opõe ao ciúme?

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Camila Vasconcelos já queria viver uma relação não monogâmica com seu parceiro, Thiago Dias, mas os percalços da vida sempre os fazia adiar o início dessa experiência. Foi quando ela o viu dançando com outra mulher em uma festa, que percebeu uma sensação nova. Apesar de uma pontada de ciúmes, ela se viu satisfeita em ver ambos felizes com aquela cena de flerte. Este sentimento é o que vem sendo chamado de compersão.
A não monogamia vem se popularizando nos últimos anos, mas aquela fantasminha dos ciúmes não deixa de existir completamente, nem para quem já a vive. A compersão entra como uma oposição às questões de posse e insegurança, com uma visão diferente em relação ao parceiro - e a si mesmo.
Compersão costuma ser definido como o sentimento de alegria ou felicidade que uma pessoa sente ao ver (ou saber de) seu parceiro amoroso com outra pessoa. O termo não existe no dicionário e é uma tradução livre de compersion, que teria surgido de comunidades poliamorosas nos Estados Unidos, nos anos 1990.
Camila, 38, é psicanalista, não monogâmica e usa suas redes sociais para falar sobre o que estuda e vivencia numa jornada que também é de autodescobrimento. A cearense, que hoje mora em Florianópolis, começou a desbravar uma abertura na relação durante a pandemia. Ela, sua filha e Thiago estiveram próximos, morando juntos no isolamento, que moveu questões sobre individualidade, liberdade e desejos.
O casal começou a estudar juntos a não monogamia, mas demorou a pôr em prática, pois sempre havia um motivo pra adiar o "risco". Um tempo depois daquela cena com Thiago dançando, Camila estava em uma festa, se interessou por uma pessoa e chegou em casa disposta a retomar o assunto e desbravar a liberdade.
"Já adianto que é necessário, sim, uma certa maturidade do casal pra trazer isso e poder lidar com isso", diz a psicanalista. "Mas nesse dia, especificamente, eu falei pra ele: 'Olha, eu não quero ficar tendo que passar por um perrengue de estar adiando uma coisa. Hoje poderia facilmente ter ficado com uma pessoa e ter voltado, ter chegado em casa e compartilhado com você", acrescenta Camila.

Entre beijos, dates e até namoros, Camila e Thiago hoje vivem relações paralelas e, apesar de o caminho ser cheio de obstáculos, relatam suas experiências nas redes sociais para ajudar outras pessoas. Entre eles, um vídeo sobre compersão viralizou.
Camila deixa claro que essa sensação não é algo que sempre virá, e nem deve ser assim.
Nossas relações passam por tudo que a gente é, inclusive nos dias que estamos vivendo. Então, compersão é a felicidade pelo momento que o outro está vivendo com pessoas diferentes. Mas não há compersão que se sustente quando você ou o outro não estão bem. Se eu não estiver nem feliz comigo, como estarei com o outro? Nós conversamos muito, temos pausas para elaborar essas questões e respeitar o momento do outro.
Camila Vasconcelos
Entre as vivências, uma das mais importantes foi a primeira vez que Camila ouviu que o parceiro se apaixonou por outra mulher.
"Quando ele se apaixonou e trouxe pra mim do mesmo jeito que eu trouxe pra ele lá no começo, meu coração ficou feliz, sabe? Porque, de verdade, eu estava vendo a não monogamia funcionar para os dois. Sem aquele peso inicial", conta a cearense.
"A gente foi sempre levado a dizer: 'Ah, encontrei essa pessoa maravilhosa pra viver a minha vida, vou ser feliz pra sempre com ela. E aí você percebe que você pode viver pra sempre com ela, mas que esse outro pode ser feliz com outras pessoas e que você pode ficar feliz por isso. Não é mais sobre uma questão de só ser feliz uma vez de cada vez", acrescenta Camila.
Então, eu acho que é isso: a partir do momento que você entende que existe no outro uma liberdade de ser feliz para além de você e você consegue internalizar isso e ficar feliz por isso. Isso sim é compersão.
Camila Vasconcelos
Compersão: o que dizem as especialistas
Regina Navarro Lins, psicanalista e escritora, considera importante haver novos termos para novas sensações, ajudando as pessoas a entenderem o que se passa nas emoções.
Definir uma palavra específica pode ser interessante porque diferencia de outros fenômenos emocionais e as pessoas podem se identificar melhor. Estabelecer os contornos das diferenças para que as pessoas sintam que não são excluídas ou invisíveis.
Regina Navarro Lins
Ana Canosa, socióloga, educadora e terapeuta sexual, lembra que o ciúme é movido pelo medo de que se perca a parceria e explica que as duas sensações podem coexistir.
O ciúme surge quando a gente faz uma triangulação, quando um terceiro se aproxima - muito fomentado pela nossa cultura. Mas não vejo a compersão como algo que apague o ciúme. Eu posso sentir as duas coisas juntas, ter medo da perda, ao mesmo tempo em que nutro esse sentimento de felicidade. Acho que são sentimentos que podem caminhar juntos, até como um dilema.
Ana Canosa
Regina complementa: "O amor é uma construção social, que em cada período se apresenta de uma forma. E o amor romântico prega, como ideal, que os dois se transformem num só. Nada de individualidade. E diz algo mentiroso: de que quem ama não tem olhos para mais ninguém. Então, o que coloco é que as pessoas reflitam sobre as crenças e valores aprendidos, para se livrar de moralismos, preconceitos e viver melhor. O novo assusta, o desconhecido gera insegurança, então é fundamental refletir".
Camila concorda sobre a coexistência dos sentimentos: "Todos somos atravessados por um ciúme, eu acho que ele é normal, porque é aquela coisa de sempre querer ser o lugar do desejo principal do outro".
E como cuidar dos ciúmes?
Sentido por muitos e incompreendido por quem não passa por isso, o ciúme tem razões culturais, mas também de criação, segundo Camila. Um dos elementos é o medo da perda, que pode se originar lá na infância.
"O medo da perda é um medo do abandono que todos nós temos de alguma forma. Todo mundo é traumatizado por esse medo primário, que pode ser de quando o bebê chorou e a mãe não voltou no tempo que ele estava acostumado. Naquele universo do bebê, ele sente que ela nunca mais vai voltar, e isso vai sendo internalizado por nós", diz Camila.
Além de tratar esse medo, a desconstrução da ideia de propriedade do outro é o princípio básico para caminhar rumo à compersão.
"Se o outro não é propriedade tua, se ele é só o outro, ele é um indivíduo que pode sentir, desejar, gozar de tudo que a vida tem. E se você o ama, por que não? Então o ciúme vai se diluindo", explica a psicanalista. "Quando vi o Thiago com outra pessoa, senti alegria por ele e por ela também, porque eu sei o quanto que o Tiago é uma pessoa foda, incrível, o quanto que ele gostaria e merecia estar vivendo aquilo ali com ela."
Para quem ainda não está convencido, ou ainda não se vê nesse lugar, Camila dá uma última dica sobre ciúme:
Eu não deixo ele criar um ninho na minha cabeça. Sempre penso assim: 'Eu não posso impedir que um pássaro voe sobre a minha cabeça, mas eu posso impedir que ele crie um ninho e faça uma moradia aqui.
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