'Estava destruída após um aborto, mas tinha medo de contar à minha chefe'

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"No dia seguinte ao meu terceiro aborto, eu estava destruída."
O relato é da jornalista Andrea*, 43, que enfrentou três perdas gestacionais. Mesmo em meio ao luto devastador, ela não faltou um único dia ao trabalho, após o terceiro aborto.
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Relatos de mulheres que retornam ao trabalho após um aborto não são incomuns. A lei trabalhista dá direito a licença, mas poucas conhecem seus direitos e, em alguns casos, sofrem pressões para voltar à ativa o quanto antes.
Recentemente, a apresentadora Sabrina Sato revelou que passou por dois abortos espontâneos e sofreu em silêncio. "Vivi o luto trabalhando", disse à revista Glamour. O público nem sequer ficou sabendo de uma das perdas gestacionais.
'Pessoas seguiam a vida normalmente'
Após dar à luz seu primeiro filho, Andrea engravidou mais três vezes. Em nenhuma delas, a gestação foi até o final. A vergonha diante do chefe e a fragilidade emocional fizeram com que ela voltasse ao trabalho mesmo sem condições.
"Na primeira vez, minha médica viu meu exame e, pela contagem hormonal do beta HCG, já estava claro que a gravidez não seguiria", contou a Universa. Naquele dia, ao chegar ao trabalho, ela sentiu uma forte sensação de luto —muito semelhante à que teve quando seu pai morreu.
Você vê as pessoas seguindo a vida normalmente, quando algo tão grandioso aconteceu com você. E ninguém sabia. Não fui atrás de entender se tinha direito ao afastamento.
Andrea Machado
Andrea acredita que não teria contado a ninguém o que estava passando, mesmo se soubesse de seus direitos.
"É colocar um holofote em cima de você. Por estar em uma posição de liderança, não queria que tivessem um olhar de pena e vulnerabilidade sobre mim."
O segundo aborto aconteceu durante a pandemia. Dessa vez, ela não teve opção: precisou avisar no trabalho que estava com uma gravidez ectópica e que precisaria retirar uma das trompas. "O feto tinha sete centímetros", conta. Nessa situação, mandou uma mensagem ao chefe explicando o que estava acontecendo. A resposta foi: "Se cuida".
Ela trabalhou da cama do hospital, mesmo após avisar sobre a situação. "Ninguém me orientou, o RH não entrou em contato dizendo que eu poderia me afastar. As pessoas continuavam me chamando com pedidos do escritório. No fim, minha ginecologista me deu uma semana de afastamento [devido à cirurgia de retirada da trompa]."
Ela e o marido pararam de evitar uma nova gravidez, pois sabiam que a possibilidade de sucesso era pequena. No começo deste ano, Andrea engravidou novamente. "Quando fiz o teste e deu positivo, não queria acreditar que daria certo."
Nem para a família ela contou. Era medo —reflexo de tudo o que já havia vivido. Quando finalmente começou a curtir a gestação e acreditar que evoluiria, sentiu uma cólica muito forte e percebeu um sangramento.
Confirmada mais essa perda, Andrea acreditava estar bem, pois, no fundo, já esperava que isso acontecesse. Saiu do exame final, foi direto para o escritório e contou apenas para três amigas próximas. Mas, para a chefe, que é uma mulher bastante durona, mais uma vez não teve coragem de falar.
No dia seguinte, a sensação era de estar destruída. "Meu maior medo era contar para minha chefe, ela achar que eu estava tentando engravidar e perder a confiança de me manter naquele cargo de liderança."
O que diz a lei
A lei trabalhista protege mulheres que enfrentam a perda gestacional. "Em caso de aborto espontâneo, a funcionária tem direito a 14 dias de licença remunerada", diz o advogado trabalhista Gustavo Akira Sato.
Já quando a gestação é interrompida a partir da 23ª semana, o caso é considerado como natimorto, o que garante à mulher um tempo maior de afastamento. "É como se ela tivesse passado por um parto. Então, existe o direito à licença-maternidade de 120 dias e à estabilidade no emprego por cinco meses", explica Sato.
'Me organizei para um bebê, não para uma perda'
A cabeleireira Viviane Lopes, 43, é autônoma. Não teve opção a não ser retornar ao trabalho após os três abortos que sofreu. "Tudo aconteceu no período de um ano", disse a Universa.
Em uma das ocasiões, precisou esperar o corpo expelir o feto naturalmente após a confirmação da perda. Ela conta que passar por esse processo não é como nos filmes. "É muito doloroso, demorado. Fiz diversos exames para saber se tudo já tinha saído. Foi muito difícil para mim."

Vanessa voltou a trabalhar no dia seguinte ao fim do abortamento.
Não tinha impedimentos físicos, mas estava destruída. Como era o começo da gestação, ninguém imaginava que eu tinha perdido. Retornar ao trabalho foi terrível.
Vanessa Lopes
Segundo ela, com o tempo, as coisas foram melhorando e voltando ao normal, mas, no início, Vanessa não tinha cabeça para nada além do luto.
"Passei por isso três vezes seguidas. Quando era liberada para tentar novamente, engravidava e perdia. Na segunda vez, eu já tinha até escutado os batimentos cardíacos", conta.
Ela chegou a correr risco de vida em um dos abortamentos, mas não quis passar por intervenções médicas porque tinha marcado de fazer o cabelo de uma noiva naquela semana. "Combinei com o médico que iria para o hospital após o atendimento", lembra. Mesmo sem condições emocionais, queria honrar o compromisso.
Não sou CLT, não tenho opção, tinha contas para pagar. Tinha me organizado pensando que o bebê nasceria dali a alguns meses, não para uma perda gestacional.
Viviane Lopes
Depois das três perdas, ela conseguiu engravidar e hoje tem uma filha de sete anos.

Sofrimento em silêncio
Sofrer em silêncio pode fazer com que os traumas aumentem. "O luto perinatal é negado pela sociedade. Ninguém fala dessas perdas. Muitos encaram como algo natural, mas pode doer demais na mulher", diz a psicóloga Liliana Seger, voluntária no IPq (Instituto de Psiquiatria da USP).
E, por não ter os sentimentos validados, lidar com o luto torna-se ainda mais difícil. "O suporte social é importante para lidar com o luto. Você conversa, divide memórias. No caso do aborto, é algo só da mulher. E, por não se sentir vista, ela acaba ignorando os sentimentos", diz Seger.
Para o psicólogo Marcos Torati, professor e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP, a mulher grávida estabelece um vínculo com um bebê que está em desenvolvimento. Por isso, é normal passar pelo luto após um aborto.
Nem todo luto é traumático, mas, dependendo da idade da mãe, por exemplo, se ela sente que é sua última chance, pode ser. Não ter um ritual de despedida também impacta. Não existe adeus em um aborto. É algo que não teve começo, meio e fim.
Marcos Torati, psicólogo
Segundo Seger, sem tratamento, esse trauma pode trazer consequências a longo prazo. "Pode surgir o medo de engravidar, por exemplo. Cada pequena mudança no corpo pode se tornar um sinal de que nada dará certo."
* O nome completo foi omitido a pedido da entrevistada
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