Mulheres relatam abusos no setor financeiro: 'Fui trancada na sala'

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Trancadas em salas, hostilizadas por cuidar dos filhos e rebaixadas: esses são alguns dos relatos de mulheres que enfrentam assédio no mercado financeiro, um setor ainda majoritariamente masculino.
Dados de 2024 da FESA Group com 82 empresas mostraram que as executivas representam 33,86% nos cargos de lideranças nas empresas de finanças, e que apenas 20% eram CFOs e estavam em setores de Riscos e Corporate. E num ambiente dominado por homens, casos de assédio e hostilidade contra as mulheres estão em maior porcentagem.
Relatos como o de Juliana*, 35, business partner de RH, Sabrina*, 37, gestora de fundos, e Camila*, 38, coordenadora de tecnologia, a Universa não deixam dúvidas sobre essa insistente e triste realidade, revelada também pela ex-vice-presidente do Goldman Sachs, a executiva Carolina Ragazzi.
Juliana* conta, por exemplo, que foi trancada na sala do chefe, que tentou agarrá-la à força. Ainda amamentando, Sabrina* ouviu que precisava "ter uma babá" para cuidar do filho doente, pois não podia se ausentar do trabalho. E um chefe de Camila* insinuou que ela não daria conta de liderar uma equipe após a maternidade.
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"Só me sentia segura perto de três colegas num time de cem homens"
Já passei por assédio moral e sexual. Não sei dizer qual é o mais destrutivo. Um chefe bateu na minha perna, trancou a sala e disse: 'Rola algo entre a gente, né?'. Por sorte, ainda havia gente no escritório. Ameacei gritar e ele abriu a porta.
Fui perseguida desde então e absolutamente tudo o que eu fazia era motivo de algum sermão desnecessário. Ele desqualificava tudo que eu fazia.
Já ouvi comentários sobre meu corpo e o de outras mulheres, minhas roupas e até meu estado civil. Disseram que eu fazia jiu-jitsu para 'desencalhar'. Num escritório com quase cem homens, eu me sentia segura perto de no máximo três.
Um sócio, casado, chegou a pedir umas "gostosas" no escritório por haver muito homem. Chamei sua atenção e fui demitida um mês depois.
Em outro escritório, saí um pouco mais cedo porque a Faria Lima, o coração do mercado financeiro em São Paulo, estava ficando deserta.
Até que minutos depois, o dono da empresa me ligou dizendo que não me via nas câmeras. Me xingou e afirmou que eu nunca seria sócia por ser irresponsável. Comecei a chorar no meio da rua, e uma amiga me alertou que aquilo era assédio moral.
Nunca denunciei porque fazem checagem no CPF. Isso me tiraria do mercado. Fui desligada recentemente e ainda busco uma posição no mercado.
Poucos homens sabem acolher. Já caminhamos, mas cada desrespeito nos faz regredir. Acredito que, no futuro, vai ser mais natural a presença feminina sem tantos casos de assédio.
Juliana*, 35, business partner de RH
"Mandei meu filho com febre à creche com medo de faltar"
Estou no mercado financeiro há 15 anos, onde comecei em funções administrativas e fui crescendo.
Após a maternidade, em 2021, entrei numa gestora de fundos com ganhos elevados. A primeira surpresa veio quando meu filho ficou doente: avisei com um dia de antecedência que faria home office para levá-lo à pediatra. Me disseram que eu não podia faltar e deveria ter uma babá para isso.
Também me orientaram a encontrar um pediatra que atendesse fora do horário de trabalho, já que não podia sair nem chegar fora do expediente.
Cabe reforçar que cumpri toda a rotina de casa, com a câmera ligada para me monitorarem.
A partir dali, a relação com a empresa foi só ladeira abaixo. O ambiente já era um dos piores que eu tinha passado. Era a única mulher e, apesar do cargo de governança, servia café e água nas reuniões.
Após um evento para clientes, em que eu tive que encomendar a refeição, fui chamada atenção por ter tirado hora do almoço e não ficar até o final para organizar a sala e a louça utilizada. Chamei uma reunião para alinhar que eu não era a secretária e copeira da empresa.
Cheguei a mandar meu filho com febre para a creche por medo de faltar ao trabalho. Chorei o caminho todo e me senti a pior pessoa do mundo. Por sorte não era nada demais, mas arrisquei a integridade de todos.
Aceitei uma vaga com metade do salário, mas era necessário naquele momento. Quando comuniquei meu desligamento, chorei de alívio e falei tudo que estava sentindo e que vinha sofrendo. Ouvi do CEO que flexibilizaram muito por terem me deixado fazer home office por duas vezes, e por questões de saúde.
Saí de lá com muitas questões psicológicas, me colocando em dúvida se seria capaz de voltar a ser uma boa profissional pós-maternidade.
Mas sofri outra decepção. Entrei em uma vaga exclusiva para mulheres com jornada flexível. Seis meses depois, estava em home office quando o computador cedido pelo escritório parou de funcionar, e só conseguiriam substituí-lo no dia seguinte.
Meu líder disse que eu "não poderia me dar ao luxo de ficar sem trabalhar metade do dia", me mandou trabalhar no escritório e só sair de lá quando me entregassem uma máquina funcionando. Comuniquei que não poderia ficar por período indeterminado pois precisava receber meu filho no transporte escolar. E ouvi que aquilo não era problema dele.
Acabei saindo de lá e hoje estou numa empresa incrível que me reconhece como profissional e me respeita.
O ambiente está mudando, mas porque as mulheres estão começando a assumir posições altas nas empresas. E por uma questão de ESG e melhor posicionamento da marca no mercado, as empresas têm que promover a igualdade de gênero em cargos executivos. Por isso vimos um boom de vagas destinadas a mulheres.
Ainda falta muito para que essas posições conquistadas deixem de ser somente para fazer número e causem uma boa impressão e reflitam realmente uma mudança cultural no mercado financeiro.
Hoje, tenho uma gestora incrível. Nosso CEO é homem, mas tem empatia, caráter e sensibilidade raro de se ver em homens nessa posição. A empresa realmente promove o que "vende". Sou, inclusive, membro do programa de diversidade e faço o onboarding de todos os novos colaboradores. E temos um grupo de gênero.
Sabrina*, 37, gestora de fundos
"Gestor me disse que talvez fosse melhor focar na maternidade"
Trabalho com tecnologia há mais de 20 anos, quase sempre no setor financeiro, um ambiente ainda muito masculino. Mesmo com mais mulheres entrando, somos minoria e precisamos provar o tempo todo que somos capazes.
O mais difícil é ver esse comportamento tão enraizado que até algumas líderes mulheres acabam sendo menos acolhedoras.
Durante a pandemia, grávida, participei de processos internos para cargos de gestão. Quando voltei da licença, ninguém me deu retorno.
Ao pedir feedback, ouvi de um gestor: 'Talvez fosse melhor você focar na maternidade', insinuando que eu não daria conta de liderar uma equipe. Fiquei chocada. Deixei claro que ser mãe não diminui minha capacidade, mas ele desconversou. Aquilo me marcou profundamente.
Não denunciei, mas esse episódio foi um divisor de águas. Mesmo cumprindo todos os requisitos, percebi que as mulheres precisam se reafirmar o tempo todo. Foi aí que decidi sair da empresa onde fiquei mais de 13 anos.
Hoje sou coordenadora de tecnologia em outro banco. Vejo um movimento de mudança, mas ele ainda é superficial. No dia a dia, os paradigmas permanecem.
No mercado financeiro, ser mulher é viver em guerra constante por respeito e espaço. O desgaste físico e emocional é enorme. Ainda temos um longo caminho até a equidade ser real e não só discurso.
Camila*, 38, de São Paulo
*Os nomes foram trocados a pedido das vítimas.
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