Para autora, jovens em grupos incels é regressão: 'Pais devem se preocupar'

Nunca se falou tanto sobre incels na ficção como atualmente. A série "Adolescência", da Netflix, ultrapassou 60 milhões de espectadores em uma semana com uma trama imersa na misoginia. E agora, as livrarias do Brasil recebem "Garota Invisível", de Lisa Jewell (Intrínseca), um thriller que aborda o mesmo universo.

Na obra, uma jovem que passou por diversos traumas recebe alta do seu terapeuta e desenvolve comportamentos de stalker em relação a ele, o que a leva a descobrir uma série de segredos sobre a vida do profissional até simplesmente desaparecer.

Publicado na Inglaterra em outubro de 2020, Jewell afirma que pouco se falava sobre esse movimento de homens que odeiam mulheres quando começou sua pesquisa para o livro. Falar sobre incels nem sequer era seu objetivo inicial; foi o comportamento dos personagens que a conduziu até esse caminho.

"Queria escrever sobre um homem assustador, que faz as mulheres se sentirem desconfortáveis e que, às vezes, ultrapassa limites e se comporta de forma inapropriada. Foi durante o desenvolvimento do personagem que decidi testar até onde poderia levá-lo. Foi aí que entrou o mundo dos incels", disse ela com exclusividade para Universa.

A reportagem entrou na biblioteca de Lisa para um papo sobre misoginia, processo criativo e seus próprios traumas — como um casamento abusivo e a ameaça de estupro que sua filha sofreu na escola. Sua obra é de ficção, mas a vida não economiza nas inspirações.

UNIVERSA: A história tem detalhes sobre o tipo de mensagens trocadas nos fóruns de incels na internet. O quanto você se infiltrou nesse universo para obter essas informações?
Lisa Jewell: Não muito. Em 2018, um artigo publicado no "The New Yorker" ficou muito famoso. Chamado The Rage of Incels (A raiva dos incels, na tradução livre), a jornalista Jia Tolentino fez uma cobertura dos fóruns com uma identidade falsa e ficou extremamente assustada com o que encontrou. Então, eu entrei nesses grupos pelas palavras dela. Também assisti a um documentário sobre o assunto e usei muito do que está difundido na internet. Fico feliz de não ter precisado ir mais longe do que isso, porque acho que teria me marcado profundamente.

Você é mãe de meninas e tem pleno conhecimento desses males do mundo. Como as prepara e as protege daquilo que elas podem encontrar?
Essa pergunta é interessante para mim. Há uns anos, quando a minha filha mais velha estava em uma escola mista (na Inglaterra é comum que os colégios sejam separados por gênero), fiquei bem impressionada com a estrutura do local. Andando pelos corredores, eu acreditava que todas as crianças ali eram boas.

Me lembro de dizer a ela que estava feliz por ela estar em um colégio tão legal, com garotos tão legais. Ela me olhou e disse que não eram. Me desestruturou contando coisas terríveis que aconteciam, inclusive com ela. Uma vez, ela estava no pé de uma grande escada, que era bem alta. Um grupo de cinco meninos a viu lá embaixo e disse: 'Cuidado, podemos estuprá-la aí'

Nossa, imagino que tenha sido um susto terrível para você?
Sim. Eles não fizeram nada, mas era o pensamento: uma mulher em posição de fraqueza precisava ser lembrada e ameaçada sobre o poder que eles poderiam ter sobre ela. Ela me contou histórias terríveis, de toques inapropriados, de acontecimentos em festas... Eram atitudes obscuras desses garotos, que um dia eu acreditei que eram bons. Não são só os caras dos grupos de incels que são assustadores; jovens também podem ser. Devíamos estar evoluindo, mas não parece que isso está acontecendo.

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'A Garota Invisível', Lisa Jewell
'A Garota Invisível', Lisa Jewell Imagem: Divulgação

Como era na sua época? Quando você tinha a mesma idade que sua filha quando ela passou por isso?
Eu era uma adolescente viciada em agradar os outros. Fazia qualquer coisa para que os garotos e homens estivessem sempre felizes. Era charmosa demais quando precisava falar com alguém, se sentia que existia resistência ou mesmo se achava que estava sendo vítima de um comportamento inapropriado. Minhas filhas não são assim, são valentes, sabem o valor que têm. Vão saber lidar com o que precisar, mesmo que seja assustador.

Esse comportamento te marcou de alguma forma? Te colocou em situações ruins?
Me coloquei em situações vulneráveis e perigosas por não querer desagradar. Era uma jovem muito assustada, com medo de dizer "não". Por sorte, nunca sofri consequências graves disso.

O pior que me aconteceu foi dizer 'sim' para um pedido de casamento de um homem pelo qual eu não era apaixonada, aos 21 anos. Não queria decepcioná-lo, então me casei. Essa relação durou cinco anos e foi cercada por abusos psicológicos. Esse homem me isolou do mundo; eu precisava viver seguindo as suas regras. E permiti que isso acontecesse.

Essas experiências são inspirações para seus livros? Afinal, suas histórias são thrillers com protagonistas que passam por situações desagradáveis...
Sempre escrevo sobre manipulação, controle, coerção e a dinâmica que pode acontecer entre homens e mulheres. Mas essas não são as únicas, claro. Estou constantemente buscando uma resposta, por que eu deixei isso acontecer comigo? Por que um homem que disse que estava apaixonado por mim fez isso? Por que ele quis me manter prisioneira? Me controlar? Em todos os meus livros há algo que passa por esses comportamentos.

Você falou que sente que não estamos evoluindo no combate à misoginia. Ouve o mesmo de suas leitoras? Recebe esse tipo de feedback?
Sim, não estamos. Agora temos jovens de 13 anos participando desses fóruns de incels e falando sobre como machucar mulheres. Isso é uma regressão. Acredito que isso está acontecendo porque os homens estão se sentindo sem controle, como parte da minoria, o que não são.

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Os pais não têm que se preocupar só com os filhos vendo apenas pornografia, mas também com jogos violentos e discussões que vêm online, que podem estar transformando suas personalidades.

Em meio a tantas histórias fortes, você perde o sono com seus próprios livros?
Não, eu tenho um estômago forte e uma capacidade de aguentar os lados obscuros. Quero entender por que vivemos em um mundo onde a maioria das pessoas acorda todos os dias, faz o bem e volta para casa, enquanto outras têm fixações e hábitos completamente distorcidos. Quero assistir, observar e entrar em suas cabeças. Nunca me incomodo com minhas histórias, fico fascinada. Quero que o leitor veja o mesmo que eu.

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