Misoginia e violência: o que é o movimento incel, central em 'Adolescência'

O termo "incel" voltou à tona após a internet ser tomada por comentários sobre a minissérie "Adolescência", da Netflix, que aborda um adolescente de 13 anos que comete um homicídio contra uma garota de sua escola.

O que é "incel"?

O termo incel é a junção das palavras celibatário e involuntário. Segundo o pesquisador da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo) Yan Cardoso, as pessoas que se dizem pertencentes a esse grupo acreditam não terem afeto ou mesmo relações sexuais por serem preteridas. "Você não pratica o sexo porque algo ou alguém te priva, mesmo você querendo. Tudo no final está relacionado ao afeto" explica.

Criadora do termo é uma mulher canadense. A universitária conhecida apenas pelo seu primeiro nome, Alana, criou um site para discutir sua inatividade sexual com outras pessoas chamado "Alana's Involuntary Celibacy Project".

Por meio de um fórum, pessoas como Alana trocavam suas dores. Dentre elas estavam mulheres, homens e pessoas do movimento LGBTQUIAPN+ de todas as etnias.

O objetivo da autora era criar uma rede inclusiva, mas acabou se tornando um movimento misógino. Com o tempo, os homens participantes do fórum tomaram o discurso para si, atrelando seus fracassos amorosos às lutas femininas. Em entrevista ao The Guardian, em 2018, Alana lamentou profundamente a mudança do discurso: "Não é um sentimento feliz".

A partir disso, o movimento também conhecido como "machosfera" se inspirou na teoria econômica 80/20. Também conhecida como Princípio de Pareto, a teoria 80/20 descreve um padrão observado no século 19 pelo italiano Vilfredo Pareto: segundo ele, na época, 20% dos italianos detinham 80% da riqueza. Com o tempo, percebeu-se que essa mesma distribuição se repetia em outros países e até em outras áreas: por exemplo, no comércio costuma dizer-se que 80% da renda vem de 20% dos clientes. O princípio, então, passou a descrever qualquer cenário em que 80% dos efeitos vêm de 20% das causas.

Ignorando que mulheres não são um bem a ser adquirido, os influenciadores incel aplicaram o conceito aos relacionamentos. Segundo essa ideologia, e sem dados estatísticos para provar isso, 80% das mulheres só se interessam por 20% dos homens — fração da qual os celibatários involuntários acreditam não fazerem parte. Os adeptos dessa filosofia, então, voltam seu ressentimento contra as mulheres (e não contra os homens que, segundo eles, detêm a maior parte da atenção feminina).

Grupos em redes sociais como o Facebook e Discord dão vida às narrativas incel. Segundo Cardoso, que pesquisa o universo e já esteve dentro dele durante seus trabalhos de campo, o que acontece nesses grupos vai desde misoginia (ódio às mulheres) até comparações físicas de seus corpos, pois acreditam que sua aparência é culminante para o preterimento.

Para Pablo Rosa, pesquisador do tema, as plataformas digitais ganham com esses discursos. "Jovens que produzem conteúdo em plataformas como o YouTube, por exemplo, não apenas divulgam conteúdo misógino, homofóbico e transfóbico, eles monetizam, ganham dinheiro com isso", diz.

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E as plataformas digitais sabendo que isso cria engajamento e, consequentemente, permite com que elas extraiam de forma ainda mais massiva os dados desses usuários, ela fatura com essa captura de dados, porque as pessoas ficam mais presas a elas. Portanto, essas empresas não têm interesse em estabelecer qualquer regulamentação, porque faturam com a liberdade de modular a atenção das pessoas.
Pablo Rosa, professor do programa de pós-graduação da UVV (Universidade Vila Velha) e doutorando em Psicologia Institucional na Ufes

Perfil dos incels

São normalmente pessoas que têm dificuldade em interagir socialmente. Segundo Cardoso e Rosa, que já trabalharam juntos em pesquisas sobre esse tema, os incels são, em suma maioria, os considerados "adolescentes de quarto" e estão muito ligados ao universo dos jogos. "Eles têm uma enorme dificuldade em interação face a face em decorrência da intensificação do uso das telas de computadores e smartphones", explica o professor.

São homens que se consideram fora do padrão de beleza social. O "chad" é o termo utilizado para homens dentro do padrão que consideram ser o ideal e mais atrativo para mulheres: alto, possui queixo marcado, corpo musculoso e feições masculinas. Já o termo "sub-5" é para ditar o contrário: são os homens abaixo de 1,70, calvos ou gordos, longe dos estereótipos de virilidade.

Podem ser desde crianças, de 10 e 12 anos, até adultos mais velhos. As desilusões amorosas são o maior chamariz para a adesão à teoria.

Alguns são cooptados por um certo romantismo, por não conseguirem ver as relações como elas realmente são.
Ian Cardoso, pesquisador em Ciências Sociais pela Ufes

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Red Pills, Blue Pills e Black Pills

Com o passar dos anos, a estruturação dos incels trouxe outras nomenclaturas muito conhecidas no universo, como Red Pills, Blue Pills e Black Pills. Segundo Rosa, os significados desses termos são:

  • Red Pills [pílula vermelha]: essa "classe" de incels considera sua "inferioridade genética" reversível, ou seja, busca aumentar seu VSM (valor social de mercado) --um termo criado por eles que classifica a atratividade sexual de uma pessoa, baseada em cálculos, com notas que vão de 0 a 10. Para isso, passam por cirurgias e outros métodos de "embelezamento". Também são os mais ligados a questões políticas de extrema direita e neonazismo e atuam no combate à luta de classes minoritárias.
  • Blue Pills [pílulas azuis]: são os homens que estão "encarcerados" em relacionamentos. "É como se muitos homens estivessem nessa prisão mental e emocional e não se deram conta ainda. E aqueles que já perceberam isso, não sabem lidar", explica Rosa.
  • Black Pills [pílulas pretas]: eles se consideram geneticamente, socialmente e até etnicamente inferiores e não veem como mudar isso. Por este motivo, acreditam que nunca serão atrativos para mulheres.

Simbologias vêm do filme "Matrix", de 1999. Na trama, A pílula azul representa a ignorância, a felicidade e a continuidade da simulação da Matrix. Já a pílula vermelha representa a verdade, a dor e o despertar para a realidade. Já a pílula preta é como se representasse a morte. "Para os black pills não adianta se você é rico ou inteligente: se a sua genética é ruim e você é feio, você perdeu", explica Cardoso.

Independentemente da sigla, os incels consideram as mulheres um gênero superior aos homens. É por este motivo que o movimento feminista é tão atacado. No caso dos Red Pills, movimentos ligados à luta de classe e outras lutas sociais podem ser constantemente atacadas pela ligação do movimento com o conservadorismo e a extrema direita.

Um dos símbolos da Red Pill brasileiro é o influenciador Thiago Schutz, mais conhecido como "calvo do Campari". Ele ficou famoso após ameaçar a atriz Livia La Gatto, que postou um vídeo em resposta às suas declarações misóginas em um podcast, mesmo sem citar seu nome.

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O que a minissérie "Adolescência" aborda?

Na série, um policial percebe que não entende o vocabulário utilizado pelos adolescentes que investiga. É seu filho quem lhe apresenta termos como "incel" — celibatários involuntários, os homens que culpam as mulheres por seu fracasso sexual.

Ele também aprende o significado de emojis usados pelos adolescentes. Alguns exemplos são a figura de comprimido, símbolo dos "red pill" (referência à pílula que revela a verdade em "Matrix"), e o emoji de "100" — referência à teoria 80/20.

Na série, assim como na vida real, adolescentes veem nessa ideologia uma validação para sua baixa autoestima. Quando o policial questiona como o protagonista Jamie (Owen Cooper) pode ser celibatário involuntário com apenas 13 anos, seu filho explica que, dentro dessa filosofia, as características não são fluidas: se ele não atrai mulheres aos 13 anos, ele nunca vai atraí-las naturalmente: "Você precisa enganar as mulheres, porque nunca vai consegui-las de um jeito normal".

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