'Meu pai abusou de mim na infância e hoje cuido dele sem um pingo de amor'

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Quem vê a dona de casa Patrícia*, 50, cuidando do pai, preparando a comida e dando remédios a ele não imagina que o seu passado é marcado por anos tristes ao lado do genitor. Na infância, Patrícia sofreu violências e abusos sexuais cometidos pelo pai.
O homem, de 68 anos e diagnosticado com esquizofrenia, agora precisa de cuidados em tempo integral.
Cuido dele, dou remédio, faço comida, mas não tenho um pingo de amor.
Patrícia
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O caso de Patrícia levanta questões sobre o papel de cuidado, culturalmente atribuído a mulheres, e os deveres legais dos filhos em relação aos pais idosos.
'Tudo parecia um sonho terrível'
Os abusos contra Patrícia começaram na casa dos avós paternos. Ela ficava um longo tempo sozinha com o genitor, na presença apenas de empregados da casa da família. A mãe a abandonou quando ela tinha 2 anos.
Foram anos até que ela assimilasse a violência que sofreu.
As imagens estavam comigo, sempre estive assustada, mas me dei conta que meu pai abusou de mim quando me tornei adulta. Tudo parecia um sonho terrível congelado. Patrícia
A família de Patrícia vivia um momento financeiro razoavelmente confortável —seu avô era militar e a avó trabalhou por anos em uma usina de cana-de-açúcar, o que proporcionou a capacidade, mais tarde, de montar uma granja como empreendimento próprio. Mas o tempo no trabalho fez com que eles não percebessem o que se passava dentro de casa.
Foi só aos 23 anos que os abusos vieram à tona: uma ex-empregada da casa visitou a avó de Patrícia e contou o que acontecia na residência enquanto eles saíam para trabalhar.
"A empregada disse para minha avó: 'A senhora sabia que o pai dela se trancava com ela no quarto? Sabe lá o que ele fazia com ela'. Foi neste exato momento que eu disse à minha avó tudo o que ele fazia comigo. A partir daí, comecei a criar coragem e contar às pessoas", diz Patrícia.
"Ele me levava para o quarto dele, tirava minhas vestimentas, me deixava nua e fazia tudo o que você pudesse imaginar comigo, só não tinha o ato em si que eu me lembre."
'O que recebo não é suficiente para colocá-lo em uma clínica'
Por volta dos 12 anos, Patrícia passou a confrontar o pai, o que fez com que os abusos cessassem, mas não as agressões verbais e físicas. Os abusos nunca foram denunciados formalmente às autoridades.
Aos 14, ela enfrentou a perda do avô e ficou parcialmente responsável pelo cuidado do pai junto com a sua avó. Na época, o genitor já demandava atenção devido à esquizofrenia.
Hoje, ela é quem cuida integralmente dele. Patrícia mora com dois filhos, uma garota de 12 e um menino de 9, e teme pelas crianças, que não têm contato com o avô sem supervisão.
"Cuido dele contrariada e forçada, recebo um salário de pensão dele que foi da minha avó. Só consegui por meios judiciais em 2019, mas ajuda com os remédios dele. Tudo empacou em minha vida e o que recebo não é suficiente para colocá-lo em uma clínica", diz.
"Algumas vezes tenho pena dele, porque ele passou pela vida e não viveu devido à esquizofrenia, mas, ao mesmo tempo, tenho raiva quando penso que ele detonou com minha vida."
Cuidado é fardo das mulheres e 'papel social'
Para a psicóloga Helen Barbosa dos Santos, professora da pós-graduação em psicologia da Universidade Federal de Rio Grande do Sul, os padrões de gênero colocam frequentemente as mulheres no papel de cuidadoras, independentemente das circunstâncias ou necessidades individuais.
Existe uma pressão social de que a gente deve cuidar dos pais acima de qualquer demanda, principalmente em relação às mulheres, filhas. Não importa o que tenha acontecido, a ideia é que você não é uma boa filha se não cuidar dos teus pais. A gente às vezes coloca esses filhos num lugar de maldade, de egoísmo, de abandono, mas não vê a história de trauma e violência.
Helen Barbosa dos Santos
Ela ressalta o impacto emocional dessa obrigação, perceptível em pacientes que atendeu na clínica do SUS. "Via pessoas em estados emocionais difíceis por terem de cuidar dos seus pais, mesmo com uma relação péssima."
Em alguns casos, a pessoa que exerce o papel de cuidador nunca foi cuidada adequadamente.
Helen Barbosa dos Santos
Até onde vai a obrigação do cuidado?
Fabrício Posocco, advogado do escritório Posocco & Advogados Associados, explica que, por força de lei, os filhos são obrigados a cuidar dos pais e, inclusive, podem ter de pagar pensão alimentícia.
"Da mesma forma que os pais, em regra geral, devem fazer isso aos filhos menores, os filhos devem seguir esse mesmo raciocínio no caso dos idosos", explica.
O advogado afirma que auxiliar no sustento não é a mesma coisa de ser obrigado a conviver com o pai que lhe causou danos ou prejuízos físicos, ou psicológicos no passado.
"Se a pessoa tiver condições financeiras, pode colocar o pai em uma clínica de repouso. Se ela tiver mais irmãos, pode exigir na Justiça que os outros também contribuam para os cuidados e sustento do pai doente. Cada caso é um caso, e isso precisa ser bem analisado."
Em relação ao caso de Patrícia, Posocco analisa que ela não tem o que fazer juridicamente. "Se ela tiver condições financeiras por aquilo que o pai recebe, poderá colocá-lo em uma clínica e pagar esses valores", afirma.
Ainda assim, o advogado reforça que, mesmo nessa situação, Patrícia teria de visitar e ver se o pai está bem, sob pena de ser responsabilizada por abandono. "Ela é legalmente a responsável por ele", afirma.
Já a advogada Adriana Faria, do escritório Rodrigues Faria Advogados, especialista em direito civil, explica que o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) determina que a família tem o dever de garantir dignidade e bem-estar ao idoso, mas isso não significa que a filha precise ser a cuidadora principal. Esse cuidado pode ser prestado por terceiros, por meio de instituições ou da assistência social do Estado.
O Código Civil prevê a obrigação dos filhos de prestar alimentos aos pais, mas essa responsabilidade pode ser flexibilizada em situações específicas. Além disso, a Lei Maria da Penha protege mulheres contra qualquer tipo de violência, inclusive psicológica. Se a relação com o pai for prejudicial e ele continuar apresentando comportamentos inadequados, a filha pode buscar medidas protetivas e até afastamento judicial.
Embora não exista uma compensação automática prevista no Estatuto do Idoso, essa mulher pode buscar judicialmente reconhecimento pelo tempo que dedicou ao pai, seja por meio de remuneração pelos cuidados prestados, indenização por dano existencial ou direitos previdenciários. Além disso, ela tem o direito de se afastar da curatela e retomar sua vida, deixando o cuidado do pai para instituições públicas ou outros responsáveis legais
Adriana Faria, advogada, do escritório Rodrigues Faria Advogados, especialista em direito civil
Se ela for a curadora legal do pai, pode solicitar na Justiça a exoneração da curatela, demonstrando o impacto negativo desse cuidado em sua vida e saúde mental. O Estado pode nomear outro curador ou oferecer suporte institucional.
Faria ainda ressalta que se Patrícia ficou anos sem poder trabalhar formalmente devido ao cuidado com o pai, pode verificar se tem direito à aposentadoria como cuidadora informal. "O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) já reconheceu casos em que filhos que cuidaram de pais doentes conseguiram aposentadoria por meio da contribuição facultativa", explica a advogada.
Já nos casos em que o idoso apresenta comportamentos perigosos ou inadequados, como os descritos, é possível tomar medidas legais para garantir a segurança da filha e da família. "Atos como importunação sexual, violação sexual mediante fraude e atos obscenos podem ser enquadrados no Código Penal, mesmo que o agressor seja idoso e tenha problemas de saúde mental", afirma Faria.
Como procurar ajuda
Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia.
*O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade.
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