Lei do Feminicídio faz 10 anos; veja outras políticas de proteção à mulher

No Brasil, a Lei do Feminicídio foi a primeira a reconhecer que uma mulher pode ser morta apenas por ser mulher. Promulgada em 9 de março de 2015, a legislação completa dez anos como um marco no debate de violência de gênero no país.

A advogada Fayda Belo, especialista em crimes de gênero, explica que a norma é importante pois coloca as vítimas em evidência.
"Com esses dados, é possível formular e aprimorar políticas públicas para combater a violência de gênero. Afinal, sem informações concretas, não há como desenvolver estratégias eficazes de proteção às mulheres", explica.

Em 2024, uma mudança na lei tornou o feminicídio um crime autônomo, o que significa que deixou de ser apenas um qualificador do homicídio e passou a ser um crime específico. Além de aumentar a pena do agressor, a atualização também incluiu novos contextos que agravam o ato, como quando uma mulher é assassinada durante a gravidez ou nos três primeiros meses após o parto.

"Muitas pessoas questionam se essa lei cria um privilégio para as mulheres, mas o Código Penal já prevê qualificações específicas para homicídios motivados por razões como emboscada, pagamento ou motivo fútil. O feminicídio segue essa mesma lógica: identificar e punir assassinatos cometidos apenas pelo fato de a vítima ser mulher", ressalta a advogada.

Ana Addobbati, fundadora e CEO da Livre de Assédio, destaca que mesmo com a lei os índices de feminicídio continuam a subir no país. Somente em 2023, 1.467 mulheres foram mortas, maior número desde que a lei foi criada, segundo os últimos dados do Anuário de Segurança Pública.

"Combater a violência de gênero precisa ir além da legislação. É fundamental que as escolas falem sobre o tema, envolvendo familiares e a comunidade, e ensinem meninas a identificarem, desde cedo, sinais de abuso, controle e violências emocional, física e sexual e como acionar os canais de ajuda, inclusive de forma anônima", afirma.

Virada de chave

O Brasil alcança um lugar de referência no debate de gênero pela Lei Maria da Penha, que é considerada pela ONU (Organização das Nações Unidas) uma das três mais avançadas do mundo no que diz respeito às legislações de proteção à mulher.

A advogada Maíra Recchia, presidente da Comissão das Mulheres Advogadas da OAB de São Paulo, destaca que a lei foi importante para retirar a violência doméstica do ambiente privado e trazê-la para o debate público. Promulgada em 2006, a norma se tornou modelo para diversas legislações internacionais.

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Acredito que o Brasil teve duas grandes conquistas civilizatórias. A primeira foi o direito ao voto para as mulheres, e a segunda, a aprovação da Lei Maria da Penha. Depois disso, tivemos avanços importantes no reconhecimento da violência de gênero.Maíra Recchia, advogada

No passado, a Lei 9.099 de 1995 era a única que olhava para a violência sofrida pelas mulheres brasileiras e, ao considerá-la um crime de menor potencial ofensivo, estabelecia penas leves ao agressor, que muitas vezes não passava do cumprimento de serviços comunitários ou pagamento de cestas básicas.

"Antes, mulheres eram violentadas, agredidas e mortas dentro de suas casas, e o Estado não intervinha. Agora, a legislação assegura o direito das mulheres a uma vida sem violência", ressalta Fayda Belo, advogada especialista em crimes de gênero.

Agressores na mira

'Se tivéssemos suportado tudo caladas, não teríamos até hoje. O silêncio é a maior arma para que as violências se perpetuem'
'Se tivéssemos suportado tudo caladas, não teríamos até hoje. O silêncio é a maior arma para que as violências se perpetuem' Imagem: Getty Images

A Lei Maria da Penha mudou o cenário ao definir o que é violência doméstica e familiar. Além disso, jogou luz aos diversos meios que podem ser usados para cometer essas violações ao caracterizá-los como físico, psicológico, sexual, patrimonial e moral; também estabeleceu as medidas protetivas de urgência.

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Ao longo desse tempo, assim como a Lei de Feminicídio, outras legislações foram criadas na tentativa de ampliar o olhar para a violência de gênero no Brasil:

  • Lei Carolina Dieckmann (Lei nº 12.737 de 2012): tipifica crimes cibernéticos no Brasil e penaliza a invasão de dispositivos eletrônicos para o acesso ou a divulgação de dados sem autorização. Surgiu após o vazamento de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann;
  • Lei de Importunação Sexual (Lei nº 13.718 de 2018): trata dos abusos nos espaços públicos e criminaliza atos de importunação sexual, como assédio e toques sem consentimento;
  • Lei Mariana Ferrer (Lei nº 14.245 de 2021): busca impedir a revitimização das mulheres no sistema judiciário ao garantir proteção a vítimas de crimes sexuais em audiências judiciais. Surgiu após o caso de Mariana Ferrer, que sofreu constrangimento durante um julgamento.

Cris Fibe, colunista de Universa e especialista na cobertura de crimes de gênero, destaca que essas atualizações na legislação foram impulsionadas graças à mobilização da sociedade civil, principalmente por parte dos movimentos feministas, que sinalizam as lacunas que ainda precisam ser supridas.

"A própria lei de importunação sexual é um avanço importante e muito recente. Sou de uma geração que cresceu tendo o braço puxado em boate, a bunda ou os peitos apalpados em aglomerações, e não tínhamos nem sequer o nome de um crime para denunciar. Se tivéssemos suportado tudo caladas, não teríamos até hoje. O silêncio é a maior arma para que as violências se perpetuem", afirma.

A advogada Maíra Recchia ressalta que a transformação social, no entanto, vai além da criação de leis e também está relacionada à forma como as mulheres estão inseridas nos espaços de poder e decisão.

"Hoje o Judiciário está se adaptando com cartilhas e diretrizes para julgamentos com perspectiva de gênero, elaboradas por mulheres e adotadas pelo Conselho Nacional de Justiça. A presença feminina nesses espaços influencia diretamente a forma como essas questões são tratadas", explica.

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Mulheres negras em segundo plano

'As mesas que discutem políticas públicas para mulheres no Brasil são compostas majoritariamente por pessoas brancas. Quando a mesa não é plural, a política pública também não é'
'As mesas que discutem políticas públicas para mulheres no Brasil são compostas majoritariamente por pessoas brancas. Quando a mesa não é plural, a política pública também não é' Imagem: Getty Images

Aos poucos, as legislações de gênero no Brasil têm criado um arcabouço de proteções e garantias para as mulheres. No entanto, nenhuma das leis criadas até o momento tem um direcionamento específico para raça, mesmo as mulheres negras representando as principais vítimas de feminicídio, violência armada e sexual no país.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 elas representaram 63,6% dos casos de feminicídio e 52,5% dos de estupro e estupro de vulnerável.

Os dados mostram que, no caso de mulheres negras, há uma dupla vulnerabilidade em jogo: além da violência de gênero, elas também estão expostas à opressão racial. "Ignorar isso significa permitir que as mulheres negras continuem sendo as mais violentadas, exploradas, com os menores salários e as maiores taxas de mortalidade", afirma.

Quando falamos da luta das mulheres para ocupar espaços e criar leis que garantam sua proteção, precisamos reconhecer que as mulheres negras foram excluídas desse processo. As mesas que discutem políticas públicas para mulheres no Brasil são compostas majoritariamente por pessoas brancas. E, quando a mesa não é plural, a política pública também não é.Fayda Belo, advogada

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A falta de pluralidade não está relacionada apenas às questões inerentes à realidade de mulheres negras, mas também a de outros grupos, como o de mulheres indígenas, mulheres trans e mulheres com deficiência.

"Uma mulher surda consegue ligar para o banco onde tem conta, mas não consegue denunciar a violência pelo número 180. Isso acontece porque a política pública foi criada por uma mulher sem deficiência. Se a mesa fosse mais plural, o disque 180 já teria nascido acessível", afirma Fayda.

Quando punir não basta

Ainda que o Brasil tenha avançado nas leis de proteção à mulher, a violência de gênero continua em escalada.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostra que o Brasil atingiu um novo recorde de estupros: a cada seis minutos uma mulher é estuprada no país. Além disso, também houve um aumento no número de agressões e tentativas de feminicídio.

Segundo Cris Fibe, os dados evidenciam que, apesar de os avanços na legislação e o aprimoramento das políticas públicas serem fundamentais para diminuir os índices de violência contra a mulher, eles não resolvem a raiz do problema: que é a crença social de que mulheres são inferiores aos homens.

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Não são crimes motivados pela busca por prazer, ao contrário do que muitos pensam. São crimes de poder, são maneiras de os homens reforçarem que os nossos corpos são objetos e devem ser subjugados e dominados por eles.Cris Fibe, colunista de Universa

A advogada Maíra Recchia também acredita que essa mudança de pensamento só é possível por meio da educação. Para ela, a Lei Maria da Penha deveria ser ensinada nas escolas como uma maneira de promover igualdade e respeito entre meninos e meninas.

"A conscientização também deve atingir os homens adultos. A punição é essencial, mas não suficiente. Precisamos de políticas de reeducação para evitar que agressores reproduzam comportamentos violentos em novos relacionamentos. Afinal, de que adianta afastá-los de uma vítima, se seguirão violentando outras mulheres?", ressalta.

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