'Fui demitida após licença-maternidade, por WhatsApp, no meu aniversário'

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F. B., 41, é executiva de recursos humanos e professora universitária, mas isso não a excluiu de estar dentro das estatísticas que apontam um índice exorbitante de demissões de mulheres que retornam da licença-maternidade: acontece com 56%. Na grande maioria dos casos, logo no primeiro dia de retorno. Com a executiva, antes.
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Dois dias antes do meu retorno, fui chamada para tomar um café e confesso que fui bem esperançosa, achando que iam me transferir de unidade, porque é um conglomerado grande. Na verdade, escutei algo como: 'não temos mais a sua posição.F. B., 41, é executiva de recursos humanos e mãe
Um choque para ela, fruto da mesma narrativa quando nasceu. "Minha mãe foi desligada quando voltou da minha licença-maternidade, então eu tinha um desejo muito grande de romper com essa história, mas não foi o que aconteceu". E para piorar, ela era a executiva a porta-voz da empresa quando o tema era maternidade e carreira, e chegou a dar palestras até a trigésima semana de gestação.
F. B. prefere não se identificar, pois ainda está enfrentando dificuldades para se recolocar, e tem receio de que possa ser ainda mais prejudicada. "Estava em uma posição executiva, em um segmento de alta remuneração e, quando surgem vagas, as pessoas nem querem conversar comigo achando que quero ganhar exatamente o mesmo salário", explica. A profissional, que já era professora de pós-graduação, aumentou a carga horária nessa frente.
Apesar de ter reagido bem na hora, F.B. conta que tem questionamentos, e o principal é: "por que aconteceu comigo?". Como profissional da área de RH, ela conta que nunca demitiu uma mulher logo que voltou de licença, mas que já escutou com frequência diretores de diferentes empresas falarem que uma mulher que decide ter filho "está escolhendo não seguir carreira".
Sempre fui de tentar trazer a importância de não julgar sem conversar, a gente não sabe se a pessoa quer conciliar maternidade e carreira, é uma história individual, mas as pessoas acabam julgando.F. B., 41, é executiva de recursos humanos e mãe
Desligada pelo WhatsApp no dia do aniversário
Kelly Benicá, 27, é psicóloga, atua com recrutamento e seleção, e também enfrentou a demissão logo que voltou do período de licença, a qual emendou com um mês de férias. Mãe do Rafael, hoje com um ano e oito meses, foi desligada por ligação de voz, no WhatsApp.
Tinha me organizado com relação ao retorno, apesar de ser uma posição remota. Mas fui desligada pelo Departamento Pessoal sem feedback e sem a presença de alguém da minha gestão, no dia do meu retorno que, de quebra, era meu aniversário. Kelly Benicá, 27, psicóloga, recrutadora, e mãe

Segundo a psicóloga, faltou tato, empatia, além de um melhor planejamento do desligamento. "Me senti muito mal. É uma empresa tech que sempre pregou o cuidado com as pessoas, e não é pequena. Não tive tempo de me despedir, colegas me procuraram na época falando que não concordavam."
Através de relatos de outras ex-colaboradoras, ficou sabendo que essa era uma prática comum da companhia. Três meses depois se recolocou, não sem sentir dificuldade tanto pelo tempo sem atuar no mercado (seis meses de licença + férias), quanto pelo tempo que dedicava ao filho. "Em alguns processos eu deixava de contar que tinha sido mãe recentemente, para não ser julgada".
Estatísticas de mães no mercado de trabalho

A estabilidade da gestante dura cinco meses a partir do parto, incluindo o período de licença-maternidade de 120 dias. O que, por fim, significa que no mês de retorno de uma licença de quatro meses, a mulher não pode ser demitida. O cenário muda, infelizmente, no caso de emendar as férias ou de uma licença de seis meses. Outros dados importantes:
- 75% das mulheres são questionadas sobre com quem os filhos ficariam durante o trabalho;
- 40% acreditam que perdem oportunidades de promoção ou desenvolvimento profissional por serem mães;
- 52% deixaram de exercer alguma atividade como mãe por medo de perder o emprego;
- Apenas 5,5% das mães recebem promoções durante a gravidez ou após a licença-maternidade;
- Discriminação na contratação : 40% das mulheres relataram discriminação em entrevistas de emprego por serem mães;
- 77,3% das empresas seguem a licença-maternidade de quatro meses, 18,3% estendem para seis meses, e apenas 2% oferecem períodos mais longos;
- Apenas 16,2% das empresas disponibilizam apoio psicológico ou médico para mães após o retorno ao trabalho.
Para Susana Zaman, mestra em equidade de gênero e fundadora da consultoria Maternidade nas Empresas, os estereótipos evidenciam que as mulheres, especialmente as mães, enfrentam desafios desproporcionais na conciliação entre trabalho e família - o que nos faz encarar um índice tão alto de desligamentos pós-licença.
As mulheres ainda são as únicas responsabilizadas pela tarefa do cuidado, o que reforça a ideia de que, ao se tornarem mães, não vão mais querer se dedicar ao trabalho, perdendo o "foco".Susana Zaman, mestra em equidade de gênero e fundadora da consultoria Maternidade nas Empresas
É o chamado viés da maternidade, de difícil digestão, mas que pode ser combatido. As mulheres e as empresas podem combatê-lo entendendo que a profissional não se torna pior por ser mãe, pelo contrário, torna-se ainda mais habilidosa. É preciso mudar a visão sobre a parentalidade - de um obstáculo para um impulso. Ou seja, ela na verdade potencializa habilidades, contribuindo para o autodesenvolvimento e gerando melhores resultados, tanto para o profissional quanto para a organização.
Mas será que podemos contar com esse olhar por parte dos empregadores? "Uma conversa franca antes de sair é ideal, tanto para a gestante quanto para a organização, pois assim é possível desenhar todo o período da gestação, desde a descoberta até o retorno da licença", sugere Susana.
É claro que nem sempre é simples, mas é um começo, especialmente para mais empregadores se conscientizarem da necessidade de criar um ambiente de trabalho mais inclusivo e seguro psicologicamente. É necessário não apenas não demitir, como auxiliar a gestante na adaptação à nova fase familiar e no retorno ao trabalho.
Pensando nisso, Suzana criou o 'Pacto Pela Parentalidade', movimento que convida sociedade e organizações a repensarem o papel do cuidado, buscando incluir todos nessa discussão em prol da equidade de gênero.
"Embora seja um momento delicado e uma experiência que ninguém gostaria de enfrentar, pode ser uma oportunidade para ressignificar esse desafio". O primeiro passo é avaliar se a cultura da empresa seria realmente a ideal para você e depois lembrar que a maternidade traz habilidades valiosas, como organização, resiliência e empatia, e que estas enriquecem sua trajetória profissional. Sabendo disso, ajuste a rota. "Existem cada vez mais organizações que tratam a cultura parental com o devido cuidado", reforça Suzana.
É empregador(a)?
Confira comentários da especialista sobre três tópicos relacionados à carreira e maternidade, que podem ajudar a repensar o desligamento de recém-mães:
- 50% das mulheres são indagadas se têm planos para serem mães durante processo seletivo
Esse tipo de pergunta evidencia o quanto a maternidade ainda é enfrentada como um obstáculo profissional. O foco da liderança é compreender a disponibilidade do profissional para o trabalho, no entanto, o questionamento revela um pré-julgamento em relação à maternidade e carreira. Você perguntaria isso para um recém-pai? Além disso, uma família pode ter diversas configurações, como a mãe que trabalha enquanto o pai cuida da casa, ou a mãe que é a única provedora, entre outras. Nesse contexto, avaliar a disponibilidade, competência e perfil do profissional não deve envolver suas vivências pessoais ou questões privadas, tampouco deve ser um fator decisivo em uma contratação.
- 40% acreditam que perderam oportunidades de promoção ou desenvolvimento profissional por serem mães
Esse dado mostra o impacto da maternidade na carreira, como se a escolha de ser mãe implicasse em abrir mão do próprio desenvolvimento profissional. Empresas precisam rever essa visão, criando políticas de igualdade para garantir que a maternidade seja vista como uma parte da vida, e até um impulso de carreira, não uma barreira. A busca pela equidade de gênero passa pela compreensão de parentalidade como potencializador dos profissionais e das empresas. Além disso, estudos comprovam que organizações com maior equidade trazem maiores resultados de negócios.
- 52% deixaram de exercer alguma atividade como mãe por medo de perder o emprego
Nenhuma mãe deveria ter que escolher entre manter seu emprego e ser mãe de forma plena. Famílias, agentes privados e públicos, instituições e profissionais precisam entender e valorizar as figuras parentais, constituindo uma verdadeira rede de apoio que irá amparar as próximas gerações.
Como se faz isso? Incentivando a paternidade ativa, encorajando homens a adotarem mais flexibilidade para atender as demandas do cuidado com a família, promovendo uma divisão mais equânime das responsabilidades da parentalidade. Em países como Suécia e Noruega, por exemplo, os papeis sociais de gênero estão em discussões avançadas, crianças são vistas como projetos sociais, e a ideia de homens mais presentes nas tarefas domésticas é cultivada.
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