Criada em culto, roteirista de 'Psicopata Americano' escreve para se curar
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Por décadas, a premiada roteirista e atriz americana Guinevere Turner, 56, teve seu nome associado aos seus trabalhos como o filme 'Psicopata Americano' (American Psycho, 2000) e a série 'The L Word' (2004 - 2009).
Porém, em 2023, ela publicou o livro When the World Didn't End: A Memoir (Quando o Mundo Não Acabou: Uma Memória, Crown Publishing, Penguin Random House, ainda sem tradução para o português) expondo os desafios ao crescer dentro do culto da Família Lyman e deixar aquela vida para viver em um lar tóxico lidando com a negligência de sua mãe e os abusos de FP, o namorado da mãe.
O livro de Turner conta pelos olhos de uma menina como é ser membro de um culto já que ela conseguiu preservar seus diários e usá-los como base de sua memória.
Em entrevista exclusiva a Universa, Guinevere abre como foi crescer no culto da Família Lyman, o sensacionalismo e exploração da mídia em cima de sua história, as feridas psicológicas e seu processo criativo.

Universa: Em seu livro você escreve utilizando capítulos de seus diários de infância e adolescência como base. Por que escolheu esse caminho?
Guinevere Turner: De um modo geral, senti que a melhor maneira de contar esta história era da perspectiva de quando eu era criança, não a da adulta que tem opiniões, e sem basear-me em meu conhecimento sobre cultos para compreender a minha experiência, senti que (a visão adulta) era menos interessante.
Ao me preparar para escrever este livro li um milhão de memórias, algumas relacionadas a cultos, outras não, quase todas escritas por mulheres, e comecei a ver qual é o padrão e o que percebi é que não gosto quando contam suas histórias explicando-as com a sabedoria que possuem hoje.
Eu era uma garota pretensiosa, queria escrever coisas em meus diários que via como grandes ideias, parte de mim escrevia em meu diário naquela época para provar o quão inteligente eu era. Eu simplesmente senti que (o diário) era uma fonte inegável de autenticidade.
Universa: Quais eram as percepções quando criança sobre a Família Lyman e como elas divergem das suas opiniões sobre aquela vivência nos dias de hoje?
GT: Como criança, eles eram tudo! Era apenas o meu mundo, não havia percepção dele porque não havia nada com que comparar. Já adulta, demorei muito para avaliar. Certa vez, quando eu tinha 20 e poucos anos, um terapeuta me disse: "Você não cresceu em uma comunidade, você cresceu em um culto". Fiquei ofendida e na defensiva pela família em que cresci.
Especialmente depois de escrever o livro e ouvir as perguntas das pessoas, tenho uma nova raiva deles. Essa tem sido uma jornada interessante para mim porque as pessoas começaram a me questionar: "Por que você perdoa tanto essas pessoas?" e tudo que eu respondia era: "não sei".
Porque questionar todos que te criaram, todos os adultos, os poucos em quem você confiou é uma jornada difícil. Para realmente entender que ninguém deu a mínima para o que aconteceu conosco ou mesmo comigo.
Universa: Apesar de eventos traumatizantes, há também momentos de ternura em seus relatos sobre o período com a Família Lyman. Como trabalha essas emoções tão diversas?
GT: A ideia de amar alguém que também lhe causa dor não é específica de um culto, é uma experiência humana.
Apenas tento conter os dois lados tanto para não cair na ridícula cegueira do perdão absoluto quanto em um sentimento generalizado de ódio e rejeição.
É um fato: a vida é simplesmente complexa. A maioria das pessoas que conheço tem ex-parceiros e ex-amantes que odeiam e amam.
Universa: Nas comunidades da Família Lyman também havia plantações de maconha, uso de ácido, casamentos envolvendo crianças e trabalho infantil, garotos mais velhos abusando de meninas em sua primeira infância, e seu livro até mostra um caso de adultério entre adultos. Você conseguia interpretar essas coisas ao seu redor?
GT: Não, eu não posso. Acho que uma das coisas mais perturbadoras sobre o abuso em qualquer contexto, seja violência sexual ou coerção com crianças, é sobre aquilo que você conhece e se faz parte da "rotina", sendo assim (parece) simplesmente natural, é apenas a estrutura da vida (para você).
Então não, não sabia como processar aquilo. Maconha, LSD, noivas crianças e tudo isso eram casuais como qualquer terça-feira, qualquer outro dia.
Universa: Qual é o tratamento dado às mulheres e crianças dentro das estruturas dos cultos?
GT: Eu acredito que os cultos são apenas patriarcados com esteroides, o que é uma coisa curiosa porque, a maior parte do meu livro é sobre uma mulher (Jessie Lyman) que conduzia essa família e reverteu a hierarquia ao seu favor.
Não acho que ela poderia ter começado o culto, especialmente nos anos 60 e 70, quando tudo começou, e, eu não creio que ela poderia ter chamado esse tipo de atenção. Porém apesar de ser um clichê estúpido nesse caso tem algo válido: "Por trás de cada homem poderoso existe é uma mulher." Mas Jessie fingiu que Mel Lyman estava vivo quando na verdade estava morto há anos e ela conseguiu chegar ao topo e se tornar incrivelmente poderosa.
Meu livro termina comigo visitando a família e aos dezoito anos avaliando os papéis de gênero impostos de uma forma que eu nunca havia processado, e percebendo: "Não há como eu viver com esta família, não posso ser subserviente para homens ou qualquer pessoa, essa não é quem eu sou."
Universa: Há semelhanças entre cultos de diferentes épocas e países?
GT: É o mesmo ciclo maldito.
Por exemplo, Shoko Asahara, líder do Aum Shinrikyo, um culto japonês dos anos 90. Asahara planejou o ataque com gás sarin no metrô de Tóquio em 1995, resultando em 13 mortes e 6 mil feridos. Um ato extremo por si só.
Outro exemplo é o americano Heaven's Gate, também na década de 90, esse diferente de outros cultos não tinha foco na questão de abuso sexual.
Os cultos de hoje se proliferam entre coaches de estilo de vida, coaches de atuação e professores de ioga que se tornaram líderes de cultos. Assim, "culto" torna-se um termo muito amplo, mas trata-se de controle coercitivo e, em última análise, de fazer as pessoas desistirem das suas vidas para trabalharem gratuitamente para alguém e encontrarem o seu valor próprio na aprovação dessa pessoa.
Universa: Precisou ou ainda precisa de ajuda profissional?
GT: Não me dou bem com terapia. A única terapia que fiz, exceto recentemente, foi por exigência da pessoa com a qual estava me relacionando.
Talvez eu só precise colocar tudo para fora, não preciso processar essa história, só preciso contá-la. Essa é a visão do meu lado escritora, e, talvez não seja saudável.
A coisa mais incrível que aconteceu comigo, que mudou tudo para mim em termos de ser uma sobrevivente de trauma, e trauma específico de culto, é esta organização chamada: The Lalich Center. Atualmente dou oficinas lá para outras pessoas como eu, 99% mulheres, que diferente das pessoas que aderiram aos cultos e depois saíram deles, nós nascemos neles. Somos uma população muito específica e demorei muito para encontrá-las.
Isso é o mais próximo de cura que vivenciei, e com isso aprendi muito sobre mim mesma.
Universa: Sua vida se tornou ainda mais árdua quando sua mãe deixou o culto e vocês foram viver fora da comunidade. Mesmo nessa casa ainda havia alguma influência das pregações da Família Lyman?
GT: Uma das coisas do meu livro é que eu não mencionei necessariamente que havia fotos do líder do culto emolduradas nas paredes de cada sala.
FP nunca foi o cara; "FP" é como eu o chamo, esse não era seu nome verdadeiro, é apenas uma piada para mim mesma, pois significa "Fucking Psycho" (Psicopata da Porra, em tradução livre). Ele estava sempre falando a doutrina da Família (Lyman).
A casa era basicamente uma mini versão do que eles haviam escapado, e eu queria voltar para a vida do culto, que na verdade era muito mais fácil do que a que experimentei nos quatro anos seguintes.
Universa: Como foi o processo para escrever o livro e lidar tanto com memórias positivas, mas também reviver passagens traumáticas? E essa relação também se reflete no roteiro do filme no qual está trabalhando?
GT: Realmente foi muito difícil, lembrei repetidamente a mim mesma de que estava contando uma história para as mulheres com as quais cresci e que elas, com exceção de uma agora, nunca falarão ou contarão sobre a nossa história, e isso me estimulou muito.
E disse para mim mesma: "Basta sentar-se e escrever, você é uma escritora. Apenas trabalhe nisso, escreva uma versão de merda, mesmo que seja bagunçada, depois volte ao trabalho e conserte".
Universa: Em 2019, você lançou o filme 'As Discípulas de Charles Manson' (Charlie Says). Quanto da sua experiência com a Família Lyman influenciou na produção desse profundo filme?
GT: Muito, muito. A única razão pela qual aceitei o trabalho foi porque de início eu pensei: "Ah? eu realmente não me importo com essa história?" Tantas pessoas escreveram sobre ela e a representaram de tantas formas e maneiras. Então me bateu: "Não, espere, na verdade tenho algo para contribuir".
Teve um momento muito engraçado na pré-produção. Tenho a minha experiência pessoal e há a experiência da "Família Manson" e em ambas havia crianças correndo sujas e soltas, enquanto os pais mal prestavam atenção a elas.
Estávamos em uma reunião de pré-produção e alguém me disse: "Não podemos nos dar ao luxo de ter todas essas crianças". Ter crianças em um set de filmagem é muito caro e complicado. E eu pensei: "O quê?!"
Eu disse: "Temos que ter as crianças". E então todo mundo disse "acalme-se" e eu apenas respondi: "vocês estão certos".
Na verdade, a história do filme não é sobre as crianças, mas sim sobre mulheres jovens que, de qualquer maneira, eram basicamente crianças. Pensei: "Escrevi isso por minhas próprias razões emocionais". Na verdade, escrevi sobre minha mãe e sobre mim mesma.
Universa: Como se sente ao ver que pessoas de diferentes partes do mundo a procuram para contar suas vivências em cultos e como os deixaram?
GT: Sempre lembro de quando 'Go Fish' (Par Perfeito) foi lançado em 1994, uma época pré-internet. O distribuidor mandou para minha casa uma caixa grande, quase do meu tamanho, cheia de cartas do mundo todo. Foi incrível, e eu fiquei tipo: (emocionada) "OK, OK. É um trabalho árduo, não sou rica, estou incrivelmente falida, mas esse é o poder da arte."
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