Imensa solidão: Carol Pires fala do esgotamento de ser mãe de filha atípica
Carol Pires usa sua versatilidade profissional para contar histórias em vários formatos -vários mesmo. Você pode acompanhar o trabalho dela em seu podcast Retrato Narrado, ou assistindo ao documentário Democracia em Vertigem, no qual foi roteirista. Se preferir, ela tem textos de uma newsletter de maternidade que manteve com duas amigas, a FOLGA.
Suas funções profissionais se aproximaram da vida pessoal agora, enquanto Carol escreve um livro com relatos sobre maternidade atípica, desde o desejo de ser mãe até a chegada de sua filha Eva, que tem cinco anos e foi diagnosticada com TEA (Transtorno do Espectro Autista).
Vi claramente quando o autismo se manifestou na minha casa. É muito comum que tentem te dissuadir dizendo 'claro que não é autista', como se soubessem qualquer coisa sobre o assunto ou conhecessem sua filha melhor do que você. Essa falta de interlocução, de sentir que ninguém me entendia, me fez sentir uma imensa solidão.Carol Pires, jornalista, roteirista, apresentadora, e mãe atípica
O que é ter um filho atípico?
Ter um filho atípico, aquele que tem o desenvolvimento físico ou intelectual diferente do esperado para sua idade, traz desafios específicos para jornada do maternar. As mães de filhos atípicos - comumente chamadas mães atípicas, ainda que o termo seja debatido - sentem na pele outras necessidades, talvez sintam no corpo todo o cansaço e na mente o estado constante de alerta.
Uma em cada 36 crianças é autista, de acordo com o relatório do CDC (Centers for Diseases Control and Prevention), publicado em 2023. Na maioria dos casos, é a figura materna a responsável primordial pelos cuidados intensivos - informação apontada em estudo publicado no Jornal da Psicologia da Infância e Psiquiatria de Londres. Assim, os dados mostram que a maior parte das mães atípicas sofre com ansiedade, estresse ou depressão, e nem sempre a sociedade se dá conta disso tudo.
No começo é um buraco, um abismo. Você cai em lugares muito ruins, do eu não mereço, ou de se perguntar o que fez de errado, se é castigo, todos os piores pensamentos. Você pensa lá na frente, se a criança vai frequentar a escola, se vai aprender a falar, ser independente, e aí entra numa coisa de não ter mais o direito sequer de morrer porque ninguém mais saberia cuidar dela como eu. Achava que nunca mais ia conseguir parar de chorar.Carol Pires, jornalista, roteirista, apresentadora, e mãe atípica
Do esgotamento ao acolhimento
Tive bons médicos, mas em geral só perguntam sobre a criança, se a gravidez foi desejada e fazem uma anamnese de todo o desenvolvimento do seu filho. Até que um dia cheguei em uma médica que me perguntou: 'e como você está?'. Eu chorei, porque ninguém me perguntava como eu estava.Carol Pires, jornalista, roteirista, apresentadora, e mãe atípica
A atenção da médica que quis saber como a mãe estava é o colo que a própria Carol quer oferecer a outras mães atípicas. Não são apenas gestos bonitos e inspiradores, são necessários.
"Quando há dificuldade de promover independência e autonomia para a criança, você acaba sendo a figura mais importante na vida dela, o que gera uma sensação de que você é a única pessoa que pode cuidar, que não pode falhar ou faltar. É importante que as mães possam buscar um acompanhamento que as ajudem, grupos de mães, de pessoas que de alguma maneira passam por histórias parecidas, porque isso traz uma rede de suporte e pertencimento", explica a psicóloga Lygia Dorigon, doutora em Análise do Comportamento e supervisora de pesquisas no Instituto Spectra.
E foi justamente a sensação de pertencimento, de perceber que não estava sozinha, que fez diferença para Carol. "É como se colocasse um óculos, comecei a enxergar toda a neurodiversidade ao meu redor, que antes eu não enxergava", pontua. Não que tenha sido um trajeto fácil. A jornalista chegou a parar no hospital com paralisia facial, sintoma do seu esgotamento emocional.
Na época, morava na capital de São Paulo, longe da família e recém-separada. Foi ali que decidiu voltar para Brasília, perto da mãe, não só para ter ajuda com a Eva, mas para poder olhar para si mesma. "Acho que assim que colocar a criança na terapia, você também deve entrar na terapia. É preciso cuidar de você para poder cuidar da criança. É clichê, mas a gente tem que falar muito, porque esquece disso o tempo inteiro, e é absurdo", analisa.
Hoje, de volta à capital paulista, ambas vivem no mesmo bairro do pai da Eva, que compartilha a guarda igualmente.
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Carol acredita que demorou para buscar terapia para si mesma porque primeiro entrou no modo "guerrilha". "Você fica em total alerta. No meu caso, Eva é muito hiperativa, busca experiências sensoriais, ao contrário de alguns autistas que evitam o contato. Então, se ela encontrar um creme, ela vai derramar tudo - principalmente os que eu mais gosto, porque ela me vê usando e quer mexer justamente neles. No começo, se ela conseguisse ir na cozinha sem eu perceber, quebrava todos os ovos no chão. Ela ainda quebra, mas agora dentro de uma tigela".
O constante estado de atenção é cansativo - algo comum entre mães que vivem essa realidade. Segundo estudo feito pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), o cansaço e o estresse de mães atípicas é comparado aos de soldados em situação de guerra.
"Ainda que seja importante para os pais colaborarem no processo de estimulação, essas famílias têm mães que estão em situação de esgotamento e, além desse filho, elas têm outras demandas na vida, são seres humanos e não são professores dos filhos, precisam de apoio", observa Lygia Durigon.
Observando o desenvolvimento
A dor do diagnóstico veio para Carol Pires quando a filha tinha pouco mais de um ano. "Eva apresentava os marcos do desenvolvimento, e aí percebi que teve uma regressão. Tinha começado a dar tchau e parou, eu chamava, ela não olhava", lembra.
Sua filha apresenta o que é conhecido como autismo regressivo (também chamado de Transtorno Desintegrativo da Infância, Síndrome de Heller ou autismo tardio), que é quando a criança começa a desenvolver, e passa a perder o que aprendeu.
"A gente tem ao longo da nossa vida várias podas neurais, basicamente uma programação do corpo de esquecer conexões neurológicas que você não usou para aprender coisas novas, mas, em quem está no espectro autista, é como se elas fossem programadas de um jeito errado", explica. Essas podas acontecem no nosso cérebro o tempo todo, mas nos autistas acabam descartando aprendizados necessários para o desenvolvimento e autonomia.
Nem sempre é tão simples de perceber os sinais, e algumas famílias podem achar que é passageiro. Ajudou o fato de que Carol já estudava um pouco o assunto para ser uma boa interlocutora com o filho de seu melhor amigo, com sinais bastante reconhecíveis do autismo clássico, como girar e não fazer contato visual.
Então, ela levou a filha imediatamente para a terapia, antes de passar pelos diagnósticos - que podem demorar. "Era para começar a fazer as terapias de desenvolvimento logo, ajudar ela a desenvolver enquanto eu ia atrás de neurologista e pediatra especializados em desenvolvimento infantil, e ter os laudos", lembra. A recomendação é, de fato, começar o tratamento o quanto antes.
Quanto mais cedo a intervenção, mais condições a criança tem de desenvolver um repertório de habilidades variado. Não é preciso esperar um diagnóstico formal para iniciar a intervenção.Lygia Durigon, psicóloga, doutora em Análise do Comportamento e supervisora de pesquisas no Instituto Spectra
Como identificar e agir com o diagnóstico
Como desconfiar se há algo diferente acontecendo? Para entendermos se o desenvolvimento está dentro do esperado, a aquisição de alguns marcos do desenvolvimento (como sentar, apontar, falar) são acompanhados em consultas com o pediatra, mas é possível e indicado ficar de olho dentro de casa. Normalmente, o que é mais comum de se perceber em crianças com características do TEA é a ausência de reciprocidade social, em aspectos relacionados com falha no contato visual, no sorriso social, na imitação.
São crianças menos responsivas ao contato e à atenção compartilhada. "Podem não reagir com entusiasmo diante de uma figura de referência ou não olhar para o rosto do cuidador diante de uma situação específica para checar se está tudo bem. Não esticam os braços para serem segurados ou não apontam, compartilhando coisas ao redor. Podem não se aninhar no colo, ser resistentes ao toque. Mas estes são apenas alguns dos parâmetros gerais, porque nem todos os indivíduos apresentarão falhas nos mesmos comportamentos", explica a psicóloga Lygia Durigon.
O fundamental é que os pais estejam atentos aos marcos do desenvolvimento, se informando através de livros ou manuais, como o da Associação Brasileira de Pediatria e de outras entidades do Brasil e do mundo - que dão parâmetros sobre o que esperar em cada um dos meses do bebê ou criança. Se observarem alterações no desenvolvimento, mesmo que sejam outras, buscarem um médico pediatra, psiquiatra infantil ou mesmo psicólogo que tenha especialização ou experiência em desenvolvimento.
Além de olhar para a criança, é importante olhar para si, exercitando o autocuidado, tendo rede de apoio, se percebendo dentro da dinâmica familiar. É comum e saudável querer ler, ver vídeos, se informar sobre o espectro do autismo (ou outra condição atípica), mas é preciso cuidado para não confundir seu papel de mãe com o de uma terapeuta.
Depois de três anos, a mãe de Eva sabe que a maternidade atípica trouxe muitos aprendizados e também conquistas (como a filha pedindo queijo), e que há muito mais pela frente. Ao terminar a entrevista, perguntei se hoje a Carol está bem. Um sorriso no rosto e um brilho materno no olhar surgiram, acompanhados das frases. "Sim, estou super. Faço muita análise e tenho muitos bons amigos e uma família que me apoia, e tudo isso vai se elaborando né?".
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