Primeira trans na FAB lutou 22 anos contra saída compulsória: 'Vida acabou'

De seus 64 anos de vida, Maria Luiza Silva dedicou 22 à Força Aérea Brasileira e outros 22 lutando contra a instituição na Justiça.

Em 2000, aos 40 anos, ela era cabo quando foi aposentada compulsoriamente da Aeronáutica logo após comunicar aos superiores que era uma mulher transexual e que passaria por uma cirurgia de redesignação sexual.

Maria Luiza não aceitou a decisão e foi à justiça pelo direito de retomar o posto — mas apenas agora, em junho de 2024, por decisão do ministro Herman Benjamin, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que ela foi vítima de discriminação e que, por isso, sua aposentadoria deveria ser anulada.

Maria Luiza Silva
Maria Luiza Silva Imagem: Diego Bresani/Diazul de Cinema

Agora, com a vitória na justiça, ela tem o direito se aposentar como suboficial, patente que chegaria se pudesse continuar na ativa, e é reconhecida como a primeira pessoa trans a fazer carreira nas Forças Armadas Brasileiras.

Em entrevista a Universa, ela narra sua trajetória desde o sonho de trabalhar com aviões, passando por suas missões humanitárias e operações de resgate de acidentes, até a aposentadoria compulsória por discriminação e a luta de duas décadas contra a Aeronáutica na Justiça.

"Minha vida acabou. Foi um baque muito grande"

Maria Luiza Silva
Maria Luiza Silva Imagem: Acervo pessoal / filme Maria Luiza

Desde criança, Maria Luiza é fascinada por tudo o que voa: pássaros, pipas, aviões. Também sempre gostou de desenhar, montar e desmontar coisas.

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Aos 16 anos, na cidade de Ceres, no interior de Goiás, ela não sabia muito bem como fazer para se tornar engenheira ou piloto de aviões, mas recebeu um folheto incentivando jovens a se alistarem na Força Aérea. "Entendi que aquele era o caminho possível para trabalhar com aviões", lembra.

Na Aeronáutica, Maria Luiza estudou mecânica de aeronaves e se tornou professora, ensinando o ofício a outros militares. Também participou de missões humanitárias, distribuindo mantimentos em aeronaves, e de operações de resgates de acidentes aéreos.

A Aeronáutica investiu em mim. Tive uma carreira brilhante e fui uma militar muito apaixonada pelo meu ofício, lembra.

Maria Luiza Silva
Maria Luiza Silva Imagem: Diego Bresani/Diazul de Cinema

Pelo menos três fatores levaram Maria Luiza a decidir passar pela transição de gênero, em meados de 1998: primeiro, a carreira admirada que tinha construído até então; segundo, mulheres já eram admitidas na FAB desde a década de 1980; terceiro, o Conselho Federal de Medicina tinha autorizado um ano antes as cirurgias de redesignação sexual.

"Resolvi assumir minha identidade porque, para mim, naquele momento, era uma questão muito simples. Por todos esses fatores, imaginei que tudo correria favoravelmente."

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Mas, quando comunicou à FAB de que, a partir dali, deveria ser tratada como Maria Luiza, uma militar do gênero feminino, "as coisas começaram a ficar mais difíceis", lembra.

Trecho de atestado de Maria Luiza Silva
Trecho de atestado de Maria Luiza Silva Imagem: Filme MARIA LUIZA / Diazul de Cinema

Primeiro, foi encaminhada à perícia médica para atestar que ela estava apta a seguir nas funções que exercia há 20 anos. Maria Luiza foi submetida a pelo menos duas juntas médicas, uma no hospital da FAB, em Brasília, e outra no Rio de Janeiro, onde ficou retida por 13 dias para passar por novos exames.

Foi horrível. As avaliações médicas eram intermináveis e pressão foi aumentando, se agravando. No hospital do Rio de Janeiro, eu era vigiada 24 horas por dia e não podia sair do quarto onde estava, lembra.

"Alguns médicos diziam que eu estava apta a continuar exercendo minhas atividades, outros não, e enquanto não chegavam a um consenso, eu era submetida a mais testes."

Foram dois anos de entrevistas, exames médicos e avaliações das mais diversas, até que a aposentadoria compulsória foi publicada no Diário Oficial, em 2000.

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Minha vida acabou. Foi um baque muito grande. Doeu imensamente ter que deixar um trabalho que eu amava. Mesmo que financeiramente fosse positivo, afinal eu receberia uma boa aposentadoria sem ter que trabalhar, eu queria continuar a minha carreira e galgar postos mais altos, como vinha fazendo até aquele momento. Evidentemente, eu não ia aceitar aquela discriminação.

"Uma vida inteira brigando por direitos"

Imediatamente após a aposentadoria forçada, Maria Luiza ajuizou uma ação para anular seu afastamento e retornar às suas funções, com a proteção do Ministério Público.

Maria Luiza Silva
Maria Luiza Silva Imagem: Diego Bresani/Diazul de Cinema

"A primeira decisão da justiça foi favorável ao meu retorno, mas a União recorreu e o juiz pediu investigação de uma nova junta médica e jurídica para avaliar se eu realmente teria condições de estar no meu trabalho. Essa junta decidiu que eu não tinha nenhum problema físico ou mental que impossibilitaria minhas atividades. Ganhei de novo, a União recorreu de novo, e assim o processo seguiu subindo instâncias e passando por todos os recursos possíveis", resume a suboficial aposentada.

Após 22 anos de processo, no final de junho de 2024, o Superior Tribunal de Justiça decidiu favoravelmente às demandas de Maria Luiza Silva. Dias depois, a União anunciou que não recorreria novamente e a sentença transitou em julgado.

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Como a ação se arrastou por todo esse tempo, Maria Luiza atingiu uma idade em que não poderia mais reassumir suas funções militares.

"Então, me foi concedida a progressão de carreira, ou seja, eu teria que ser aposentada no posto em que eu teria alcançado se tivesse finalizado meus 30 anos de serviço militar", explica.

Maria Luiza Silva
Maria Luiza Silva Imagem: Diego Bresani/Diazul de Cinema

Para ela, aos 64 anos, a decisão representa não só uma vitória judicial, mas "uma melhora na minha saúde mental após uma vida inteira brigando por direitos".

A justiça foi feita, mesmo que tardiamente. A ação terminou garantindo todos os meus direitos e, ainda, pode valer como precedente para proteger outras pessoas trans na carreira militar, celebra.

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