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Cobradora de ônibus é aprovada em concurso do TJSP: 'Estudava na catraca'

Luana Farias estudava na catraca e conseguiu passar no concurso do STSP - Acervo pessoal
Luana Farias estudava na catraca e conseguiu passar no concurso do STSP Imagem: Acervo pessoal

Fernando Barros

Colaboração para Universa, em Salvador

25/11/2022 04h00

"Sonho realizado". É assim que a cobradora de ônibus Luana Farias, 27 anos, define a sua nomeação esta semana para o cargo de escrevente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). A paulistana havia prestado o concurso público para o órgão em outubro do ano passado e, agora, vai ter a oportunidade de começar um novo emprego e mudar de vida.

Ela, que já sofreu preconceito no dia a dia como cobradora, aproveitava os momentos de menor fluxo de passageiros na linha em que atuava para revisar os conteúdos que seriam postos à prova no concurso. A felicidade com a conquista foi compartilhada em seu perfil no Twitter e viralizou. Até o momento, a publicação já recebeu mais de 149 mil curtidas, fora os retuítes e comentários.

A Universa, Luana contou um pouco mais da sua história. Confira o relato dela a seguir:

"Moro na periferia, no Grajaú, em São Paulo e venho de uma família bem humilde. Somos três irmãos e, muitas vezes, meus pais abdicavam de algo, para nos dar o que podiam. Estudei a vida toda em escola pública e sempre fui apaixonada por livros, principalmente por romances. Tanto que entre 2015 e 2016 escrevi um livro chamado 'O colar de Lis'. Muitos subestimam esse gênero literário, chamam de clichê ou perda de tempo, mas foi graças a essa bagagem de leitura, por exemplo, que eu gabaritei a prova de português do TJSP.

Nos últimos tempos, a nossa vida financeira em casa estava bem apertada porque tudo ficou mais caro. Meu pai sempre trabalhou como motorista de ônibus e, há cinco anos, me indicou para uma vaga na empresa em que ele trabalhava. Comecei como cobradora fazendo a linha Terminal Grajaú-Metrô Brás e, hoje, atuo na linha Grajaú-Jabaquara. Trabalho oito horas por dia durante a semana e, aos finais de semana, chego a doze/treze horas de expediente.

'Profissão de cobrador é vista com desdém'

Muitos encaram essa profissão como algo obsoleto, são hostis, dizem que é inútil eu estar ali, que o cobrador não faz nada no ônibus. O povo esquece que a gente oferece auxílio para pessoas deficientes ou com mobilidade reduzida, damos apoio ao motorista, mantemos a ordem no coletivo e fazemos a cobrança, pois muitos ainda pagam em dinheiro. Diversas vezes já ouvi piadas, fui tratada como um peso morto e tive que escutar calada.

Apesar disso, nunca me envergonhei de ser cobradora. Para mim, é uma profissão honesta e que me trazia o sustento, mas eu também queria melhorar minha vida financeiramente e ajudar minha família, proporcionar lazer aos meus pais, por exemplo. Por isso, comecei a ver o concurso do TJSP como um sonho e uma possibilidade de realizar essas coisas.

Em 2017, cheguei a fazer o concurso para o TJ interior, mas não fui aprovada e mantive o foco na seleção do de São Paulo. Quando começaram os rumores de que sairia o concurso em 2021, comecei a me preparar para as matérias, estudando mais de seis horas por dia. Estudava os conteúdos de Direito pelo site do Planalto e assistia videoaulas de raciocínio lógico e matemática, pois eram as matérias que eu tinha mais dificuldade.

'Eu estudava para o concurso na catraca do ônibus'

Luana Farias estudava na catraca e conseguiu passar no concurso do STSP - Acervo pessoal  - Acervo pessoal
Luana Farias estudava na catraca e conseguiu passar no concurso do STSP
Imagem: Acervo pessoal

Além disso, mesmo trabalhando em uma linha movimentada na época, eu aproveitava os momentos de menor movimento e lia as leis que caíam no concurso, pelo celular mesmo, grifando e repetindo até cansar. Acredito que os passageiros e os colegas não imaginavam o que eu estava fazendo. Talvez, eles até pensassem que era apenas redes sociais, mas eu estava focada em estudar.

Eu evitava contar que estava estudando para o concurso, porque imaginava que as pessoas iam achar pretensão ou que eu não era capaz. Só minha família sabia e me apoiava bastante. A rotina de trabalhar e estudar era bem cansativa. Às vezes, eu me sentia fatigada mentalmente; noutras, eu desanimava porque não estava conseguindo evoluir nos simulados e até pensava em desistir, mas me mantive de olho no meu objetivo.

A ansiedade da aprovação também foi cruel, porque além da prova objetiva há outra de digitação e, como fui enquadrada como candidata PCD por ter visão monocular, ainda precisei passar pelas perícias antes da nomeação. Agora, estou aguardando a posse para entrar em exercício na função e até lá seguirei trabalhando como cobradora. Estou muito grata e cheia de expectativas. Meu salário será cerca de quatro vezes mais do que o que eu ganho atualmente e o TJ vai poder me proporcionar muita coisa.

'Vou continuar os estudos e ajudar minha família'

Quero ser uma profissional que faz jus à oportunidade. Com esse novo emprego, pretendo retomar minha graduação em Direito, que cheguei a começar e fazer cinco semestres numa faculdade privada, mas precisei largar. Vou poder ainda realizar os sonhos da minha família, como pagar um cruzeiro para a minha mãe, que é um dos desejos dela, e viajar com meu pai para lugares lindos, porque ele ama viajar.

Tudo isso só foi possível graças ao apoio deles e também à educação. Ela é imprescindível e é onde o nosso país deveria investir com mais força. A educação amplia horizontes, mostra outras perspectivas para aqueles que nascem em famílias desajustadas ou apenas sem oportunidades. É o que nos permite sonhar". Luana Farias é de São Paulo, tem 27 anos, trabalha como cobradora de ônibus e foi aprovada no concurso público para escrevente do TJSP