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Homem é acusado de assediar mais de 70 psicólogas ao se passar por paciente

A psicóloga Liliany Souza, que criou grupo reunindo vítimas de assédio - Arquivo Pessoal
A psicóloga Liliany Souza, que criou grupo reunindo vítimas de assédio Imagem: Arquivo Pessoal

Anahi Martinho

Colaboração para Universa, de São Paulo

12/09/2022 04h00

Um homem identificado como Lucas Silva Dornelles, 34 anos, morador de Bom Retiro do Sul (RS), está sendo investigado por importunação sexual a mais de 70 mulheres, todas psicólogas. De acordo com as vítimas, ele entra em contato por meio das redes sociais, pede para marcar uma consulta online e assedia as profissionais.

O suspeito vem agindo há cerca de um ano. Algumas das vítimas afirmam ter sido constrangidas por mensagens de cunho sexual, encerrando o contato em seguida. Outras chegaram a atender virtualmente o homem, que teria se masturbado durante as sessões.

A psicóloga Letícia Martins de Oliveira, 27 anos, uma das vítimas, relatou a Universa que Lucas a procurou pelo inbox do Instagram, dizendo que precisava de ajuda e pedindo para marcar uma consulta com urgência.

"Ele entrou em contato comigo se passando por paciente, disse que tinha uma deficiência e que precisava de atendimento online. Esse é o modus operandi dele, ele fala isso para sensibilizar a psicóloga e conseguir uma abordagem mais rápida. Achei um pouco atípico, mas o tratei como trato todos os pacientes", relata Letícia.

Segundo ela, durante a "sessão" virtual, Lucas teria pedido para ser atendido deitado, devido à deficiência física. Ele posicionou a câmera do celular de forma que mostrava apenas o seu rosto. Durante a conversa, se queixou de problemas sexuais e afirmou ter um "fetiche" que estava fora de controle. Letícia conta que notou, pelas expressões faciais, respiração ofegante e movimentação de um dos braços, e que o homem parecia estar se masturbando.

"É tão constrangedor e chocante que você fica tentando entender se aquilo está acontecendo mesmo. Quando desliguei, me senti agredida, violentada e culpada", relata a psicóloga. A "consulta" teria durado cerca de 30 minutos, e alguns dias depois, Letícia o atendeu novamente.

Lucas Dornelles, de 34 anos, acusado de assédio sexual - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Lucas Dornelles está sendo investigado por crime de importunação sexual
Imagem: Reprodução/Instagram

"Eu já havia comentado a situação com colegas e, dessa vez, já estava mais preparada para caso acontecesse novamente", conta a vítima.

Na segunda sessão, Lucas narrou um sonho erótico que teve com Letícia e começou a se masturbar. Ela então encerrou a ligação. O homem não pagou nenhum dos dois atendimentos e chegou a insistir com ela, por mensagem, para que continuassem conversando apenas sobre sexo. Foi então que ela decidiu fazer a denúncia.

Vítimas em 12 estados

No fim de agosto, Letícia foi ouvida na 3ª DDM (Delegacia de Defesa da Mulher) de São Paulo. A delegada responsável, Wanessa Miranda Ferreira, disse à reportagem que a investigação ainda está em andamento e que ainda não é possível afirmar que se trata de importunação sexual, uma vez que o inquérito não foi concluído.

Dornelles já teria feito vítimas em 12 estados diferentes, o que, de acordo com a delegada, dificulta as investigações. Até o momento, o caso está com o Ministério Público de São Paulo, onde foi feita a primeira denúncia, a de Letícia.

Outra vítima, a psicóloga Liliany Souza, 37 anos, de Brasília, foi contatada pela internet pelo mesmo suspeito, há cerca de seis meses. Ela identificou rapidamente o comportamento estranho e encerrou contato com o homem, que passou então a agredi-la por mensagens.

Print de conversa no Whatsapp mostra abordagem do suspeito de assédio - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Print de conversa no Whatsapp mostra abordagem do suspeito de assédio
Imagem: Arquivo Pessoal

"Recebi uma mensagem em um domingo à noite de um homem pedindo atendimento online com urgência. Ele falava que tinha uma deficiência, que tinha dificuldade em ser olhado e que estava mal, precisando ser ouvido imediatamente. E ele começou, então, a fazer ligações por áudio e vídeo. Não atendi. Escrevi que não poderia atendê-lo naquela hora, que não funciona assim, que se ele quisesse a gente agendava uma sessão durante a semana", relata Liliany.

"Ele continuou ligando, insistindo, e eu mais uma vez falei que ele precisava agendar e realizar o pagamento antes da sessão. Ele imediatamente começou a me ofender com palavras de baixo calão."

"Bota bunda e tetas de fora para atrair clientes. Capaz que eu ia por dinheiro fora com psicóloga. Só ia te pagar porque você é gata", teria dito o homem.

No dia seguinte, Liliany relatou a história em seu perfil no Instagram e se surpreendeu com a reação em massa de várias colegas de profissão, dizendo terem sido assediadas ou contatadas pelo mesmo homem.

"Choveu gente no meu Instagram falando que foi assediada por ele, ou que ele tinha tentado entrar em contato. Me toquei que se tratava de um cara que fazia isso em série", disse Liliany. Ela reuniu as vítimas e criou um grupo no Whatsapp, que já conta com mais de 70 profissionais, todas assediadas pelo mesmo suspeito.

Em seu perfil no Instagram, Lucas segue dezenas de psicólogas, todas mulheres e jovens. Se diz evangélico e costuma postar mensagens de autoajuda, tais como: "Não adianta olhar para o céu com muita fé e pouca luta".

Como identificar assédio?

O medo de denunciar, algo presente em quase todo caso de assédio sexual, pode se agravar em casos assim, uma vez que o código de ética da profissão garante sigilo ao paciente e tudo o que foi dito durante o atendimento. Letícia relata que teve receio de estar infringindo o código ao denunciar o assediador.

"Acontece que isso não foi um atendimento e ele não era um paciente. Ele forjou aquela situação para cometer assédio", explica.

"Que ele tem algum problema de ordem sexual, disso não temos a menor dúvida", diz Liliany. "Mas, no caso, não estamos falando de uma patologia. Trata-se de uma estrutura social que é machista. Os homens assediam mulheres em seu ambiente de trabalho."

Liliany afirma ainda que outras vítimas chegaram a indicar profissionais homens para ajudar Lucas, mas que ele não os procurou. "Se ele quisesse mesmo se tratar, teria aceitado a indicação de profissionais homens. Ele não quer tratamento, não quer ajuda", acredita.

Violência sexual no trabalho

Em abril deste ano, o CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo) e o SinPsi-SP (Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo) realizaram uma roda de conversa online para discutir este e outros casos de assédio sexual sofrido por psicólogas. Segundo o órgão, nove em cada dez profissionais da psicologia são mulheres. Uma nota de repúdio foi publicada:

"O CRP-SP e o SinPsi-SP repudiam a aviltante realidade da violência sexual contra psicólogas no exercício profissional. Por isso, nos solidarizamos com todas as profissionais e reafirmamos a nossa defesa intransigente dos direitos humanos e de condições dignas para a prática profissional psicológica", diz a nota.

Ainda de acordo com o Conselho, a violência sexual no trabalho "é uma realidade vivenciada pelas psicólogas, especialmente as profissionais clínicas, reservadas a um suposto espaço íntimo e privado, na atual conjuntura, também em contextos de prestação de serviços on-line", diz a nota.

"As psicólogas relataram situações diversas vividas em atendimentos on-line, tanto em sessões marcadas com urgência —nas quais o autor da violência, ao entrar na sessão e apresentar demanda em relação à sexualidade, coagia as profissionais, alegando sigilo profissional e as violentando verbalmente com conteúdo sexual, chegando a exibir partes do corpo e a se masturbar— quanto em atendimentos continuados nos quais, muitas vezes, a violência se expressa a partir do assédio, nomeada pelo autor como envolvimento afetivo, sem consentimento da profissional, caracterizando uma situação de violência", afirmou o Conselho profissional.

O órgão ainda encoraja as vítimas a denunciarem esse tipo de violência e disponibiliza um canal para orientação das profissionais, o comitê de enfrentamento da violência sexual na prática profissional.

O Ministério Público de São Paulo afirma que as investigações estão em andamento. O caso está nas mãos da 6ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital.

A defesa de Lucas Silva Dornelles não foi encontrada para comentar as acusações. O suspeito chegou a ser contatado por Universa, por telefone e mensagens de Whatsapp, mas quando questionado sobre as acusações, não respondeu e bloqueou o número da reportagem.

Crime de importunação sexual

A importunação sexual se tornou crime no Brasil apenas em 2018. Antes disso, existia apenas o ato libidinoso, considerado contravenção penal e punido apenas com multa. A lei prevê reclusão de um a cinco anos para quem "pratica contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro".