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'Após 3 anos vivendo sob ameaças e perseguições, vi meu agressor ser preso'

A modelo Rayanne Adorno Imagem: Arquivo pessoal

Rayanne Adorno, em depoimento a Eduardo Almeida

Colaboração para Universa, de Fortaleza (CE)

16/08/2022 04h00

Em 2019, a modelo e educadora Rayanne Adorno, 29 anos, começou a namorar o francês Malik Roy, 47, depois de se conhecerem pela internet e, em pouco tempo de relacionamento, foram morar juntos em Budapeste, na Hungria. Uma agressão, porém, mudou tudo o que ela projetava afetiva e profissionalmente, e precisou retornar às pressas ao Brasil.

Antes de fugir, Rayanne denunciou o agressor. Já em seu país, ela se viu vítima de injúria racial e stalking da pessoa que imaginou ser o "cara certo". Com o ex também morando no Brasil ao longo de três anos, outras quatro denúncias contra ele foram feitas às autoridades brasileiras. Malik foi preso em 18 de julho deste ano pelos crimes de stalking (ato de perseguir alguém de forma persistente) e injúria racial.

A Universa, Rayanne contou sua história e detalhes do que viveu.

"Iniciei minha carreira como modelo em 2013, por meio de uma amiga, à época, fotógrafa. Fizemos algumas fotos, enviamos para uma agência de Teresina (PI) e comecei a trabalhar em eventos. Por causa da instabilidade da profissão, também cursei Filosofia na Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Conheci o Malik pelas redes sociais em 2017. Ele estava em viagem pelo Brasil e o acompanhei pelo Nordeste, em lugares como Jericoacoara (CE) e Barra Grande (BA). Passamos por bons momentos durante esse tempo, até então, nos dávamos muito bem.

Rayanne Adorno em desfile de 2017 Imagem: Arquivo pessoal

Estávamos em Minas Gerais quando ele me fez a proposta de morar fora do Brasil. Sem uma fonte de renda segura, fiquei receosa de sair do país. Comecei a buscar oportunidades e, pouco tempo depois, recebi uma proposta de emprego em uma empresa de jogos turca, localizada em Budapeste. Com a situação da renda resolvida, viajei com ele. Comecei a conhecer a cidade, fiz amizades e estava prestes a assinar um contrato com uma agência de modelos. Mas isso começou a incomodá-lo cada vez mais.

Fui percebendo que minha independência e liberdade se tornaram um enorme problema na relação.

Ao mesmo tempo em que ele dizia que me apoiava, fazia de tudo para me desanimar. A cada nova vaga que eu buscava, ouvia frases como "não vai dar certo". Nada na visão dele era bom. Com o tempo, vi que ele agia assim como uma tentativa para que eu dependesse dele.

Quando decidi colocar um fim na situação, tudo se agravou. Ainda morávamos na mesma casa e, numa noite, ele entrou em surto e começou a gritar e me xingar. Com medo, me tranquei em um dos quartos, mas ele tinha as cópias das chaves e entrou. Os xingamentos continuaram e ele passou a atirar objetos em mim, como alimentos, já que esse quarto era ao lado da cozinha. Meu medo naquele momento era de que ele pudesse pegar uma faca. A discussão não tinha fim.

Rayanne em seus primeiros meses em Budapeste Imagem: Arquivo pessoal

Fiz o primeiro boletim de ocorrência ainda em Budapeste, no dia 31 de julho de 2019. Como eu estava assustada e não sabia o que fazer, fui imediatamente à embaixada brasileira. Relatei tudo o que tinha acontecido e recebi como sugestão ir à delegacia local e registrar uma denúncia. Por estar em outro país, encontrei muitos obstáculos para registrar essa denúncia.

Malik foi à delegacia, prestou depoimento e ficou decidido que ele não poderia ter mais qualquer contato comigo. Porém, três dias depois, comecei a receber ligações e mensagens. Entrei em contato novamente com a polícia e a embaixada e me disseram que a melhor coisa a ser feita era abrir mão de tudo e voltar para o Brasil.

Percebi que qualquer lugar era melhor do que permanecer ali. Eu sabia que se eu o perdoasse, as agressões poderiam se repetir e tornar mais intensas. Mas tudo era muito confuso

Ele passou a fazer outro tipo de abordagem: começou a ligar incessantemente e a mandar incansáveis mensagens: uma hora pedindo desculpas para eu voltar e outra hora me xingando.

A decisão de denunciar não é fácil. Todo esse pesadelo trazia pra mim negatividade e cansaço. Nesse período, perdi seguidores, desativei as redes sociais, perdi o ânimo de fotografar, chorava, comecei a ter crises de ansiedade, dificuldade para dormir, os fios das minhas sobrancelhas começaram a cair, não conseguia estudar, já não saía mais de casa. Minha vida parou completamente.

A modelo Rayanne Adorno desfilando em 2018 Imagem: Divulgação

Como estava prestes a assinar um contrato com uma agência de modelos, em um primeiro momento decidi ficar na Europa, mas ameaças constantes dele me dizendo que sabia quando era meu voo para o Brasil e, se eu fosse para o aeroporto, algo de muito ruim poderia acontecer comigo. Com isso, me fizeram mudar de ideia e retornar imediatamente para casa.

Usei aplicativos de hospedagem para encontrar um lugar para ficar, mas logo depois ele descobriu e prontamente denunciou, conseguindo bloquear minha conta. Desesperada, e com pouco dinheiro, consegui ajuda de amigos de Budapeste e de lá, fui para outro país antes de voltar para o Brasil em segurança.

O agressor retorna ao Brasil

Na minha volta, tive ajuda de redes de apoio à mulheres em situação de risco. Com suporte consegui continuar firme nas denúncias e pude alertar outras mulheres sobre perseguições.

Da mesma forma que encontrei redes de apoio no Brasil, também descobri que pessoas tiravam prints de tudo o que eu fazia e mandavam ao meu agressor. Me afastei das redes sociais, pois mesmo ele estando longe eu me sentia vigiada, com medo. Depois de um tempo, percebi que eu estava me silenciando e me escondendo por causa de uma pessoa que só queria destruir minha vida.

Procurei me fortalecer até que descobri, em meados de setembro de 2019, que meu agressor também tinha voltado ao Brasil e, não satisfeito, começou a mandar mensagens com sua localização próxima a minha casa. Fiquei apavorada, muito angustiada e com medo. Será que a Justiça não iria me ajudar? Ou só me encontraria quando fosse tarde demais?

Toda vez que eu voltava para registrar um novo boletim de ocorrência, saía aos prantos da delegacia. Ao todo, foram cinco B.Os, sendo um em Budapeste em 2019, e os demais no Brasil em 2019, 2021 e, o último, em 2022.

Enfim, a prisão e um respiro

Dia 18 de julho de 2022, quase três anos após a vinda dele ao Brasil, recebi a notícia de que a Polícia Civil de Santa Catarina o tinha prendido. Embora seja uma prisão preventiva, foi um alívio. Nestes casos, a sensação de impunidade é tão certa, que eu pensei que ele nunca seria preso. Aparentemente, ele também, pois zombava da Justiça brasileira dizendo que aqui a lei não funcionava, que poderia fazer o que quisesse e nada aconteceria por ser europeu.

Rhayanne Adorno Imagem: Arquivo pessoal

Sei que não terei minha vida como antes, a perseguição me afetou de muitas formas. Agora, tento aprender a viver com ansiedade, crise de pânico, insônia, me sentindo exposta e vulnerável ao sair em público. Para lidar com todas essas questões, fiz acompanhamento com uma psicóloga durante um tempo, mas parei porque comecei a trabalhar.

Precisava ocupar a minha cabeça com alguma coisa, pois estava entrando em depressão e, de certa forma, precisava tentar voltar a viver. Recomeçar tem sido um caminho difícil, me sinto ainda desanimada, sem o mesmo vigor de antes, mas aos poucos estou voltando às atividades que antes sentia prazer em realizá-las. É um longo trabalho em busca da cura desses traumas.

Sou uma mulher preta, modelo e educadora. Carrego comigo a força dos meus ancestrais na luta pela liberdade como mulher em uma sociedade machista e preconceituosa. Para outras mulheres que estejam passando pela mesma situação que passei, é importante que tenhamos o conhecimento dos sinais de uma pessoa abusiva. A luta é desgastante, mas necessária."

Nota da edição: Segundo Matheus Zanatta, delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, Malik Roy está preso pelos crimes de Stalking (Art. 147-A do Código Penal) e Injúria racial (Art. 140, §3° do Código Penal). A reportagem entrou em contato por email e telefone com a Defensoria Pública do Estado do Piauí, órgão designado para a defesa de Malik Roy, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto para novas informações.

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