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'Ao buscar justiça para outras histórias, alcanço a justiça que não tive'

Joanna Maranhão em Atenas, em junho de 2022, na raia onde nadou a final dos 400 medley na Olimpíada de 2004 Imagem: Reprodução Instagram @jujuca1987

Alana Della Nina

Colaboracão para Universa, em São Paulo

12/08/2022 07h00

Esta é a versão online da edição de (11/8) da newsletter de Universa, que conversou com a atleta Joanna Maranhão. Ela usa sua experiência para prevenir e fazer justiça a novas denúncias de assédio no esporte. Quer receber a próxima edição na semana que vem no seu email? Clique aqui e se cadastre. Assinantes UOL ainda podem ter dez newsletters exclusivas toda semana.

Aos 17 anos, Joanna Maranhão esteve entre as cinco melhores nadadoras do mundo na categoria 400 metros medley; representou o país em quatro Jogos Olímpicos e conquistou inúmeras medalhas em Jogos Pan-Americanos. Mas carrega a sensação de que poderia ter feito mais. "Convivo com uma frustração muito grande por saber que, se eu não tivesse passado pelo que passei, teria sido uma atleta muito mais bem-sucedida", ela diz a Universa, referindo-se ao abuso sexual que sofreu aos 9 anos do seu então técnico, Eugênio Miranda.

A denúncia, em 2008, impactou a vida da ex-atleta de maneira irreversível. Entre brigas judiciais e idas e vindas da piscina, Joanna se aposentou de vez em 2018. Ela, que convive com as sequelas do trauma até hoje, decidiu dar um novo rumo para a sua vida e carreira. "Luto por um esporte seguro porque, ao trazer justiça para outras histórias, trago a justiça que não tive para a minha própria."

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Hoje, vivendo na Alemanha com o marido, o judoca Luciano Corrêa, e o filho Caetano, 3 anos, ela cursa um mestrado em Ética Esportiva e Integridade pela bolsa Erasmus, oferecida pelo Comitê Olímpico Internacional. Para sua tese, decidiu abordar o tema do assédio no esporte e mergulhou em uma extensa pesquisa com atletas brasileiros.

Os achados de Joanna impressionam: entre os 1043 atletas ouvidos -mais da metade deles mulheres-, 93% afirmaram ter sofrido abuso psicológico, 64%, sexual e 49,7%, físico. "Trabalhei só com os números, sem conhecer as histórias, mas eram muito altos. Eu só chorava, foi um processo muito doloroso", conta a pernambucana, que apurou ainda que o Brasil registra mais que o dobro de casos de assédio entre os países pesquisados.

Ela falou sobre os resultados da pesquisa em evento do grupo Mulheres do Brasil, no lançamento do manifesto Esporte Sem Assédio, na última semana. Para saber mais, a repórter Alana Della Nina, de Universa, conversou com Joanna por zoom.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

UNIVERSA :: A sua denúncia de abuso, em 2008, acabou definindo os caminhos da sua vida. Como é conviver com o estigma da mulher que denuncia a violência sexual?
JOANNA :: Olha, é muita terapia. Agradeço muito por ter uma família que me deu suporte e nunca me questionou. Minha mãe foi em todas as audiências para eu não ter que ficar cara a cara com ele. E sou casada com uma pessoa que compreende minhas questões com a minha sexualidade e minha luta por uma vida sexual estável. Ao mesmo tempo, hoje tem muita gente que olha mais para a minha experiência de abuso no esporte e minimiza o que realizei como atleta de natação.

Como você olha para essa trajetória?

14.jul.2015 - Joanna Maranhã mostra a medalha de bronze conquistada por ela nos 200 m borboleta do Pan de Toronto Imagem: Satiro Sodre/SSPress

Eu tinha talento e gostava de trabalhar duro, competir. Conquistei muita coisa. Cheguei muito perto de um pódio olímpico. E foi irado. Mas depois que essa história bateu na minha porta, nunca mais consegui ser a atleta que eu tinha sido até então.

Ao mesmo tempo em que tenho essa consciência —"se abraça, o que você fez foi foda, foi o suficiente" -, vivo essa frustração de saber que não fui capaz de atingir todo o meu potencial como atleta porque carregava um peso extra. Enquanto as minhas adversárias lutavam para melhorar segundos, eu estava lutando para que a piscina não me desse gatilhos. Agora é mergulhar no que estou fazendo para viver bem com isso, mas se eu disser que sou 100% satisfeita com a minha carreira, não é verdade, eu não sou.

Você se aposentou da natação competitiva em 2018. Como é a sua relação com a piscina hoje?
É a melhor possível. Também tratei muito disso na terapia. Voltei a nadar em 2014, parei e voltei de novo. Eu pensava: 'Preciso fazer as pazes com a natação. Não posso permitir que o que ele fez comigo seja a memória mais forte disso aqui". Então, hoje, nadar -- não treinar -- é muito prazeroso. Acho que essa é a minha medalha olímpica.

Sua pesquisa de mestrado apontou que o Brasil tem mais que o dobro dos casos de abuso entre países que já fizeram levantamentos como esse. Como foi o processo de se debruçar diante dessa realidade hoje, mais de 20 anos após você ter sido vítima de abuso sexual?

Foi difícil e interessante. Minha orientadora sabia que eu era vítima, então me perguntou: 'O que você acha que consegue fazer?' Para preservar a minha saúde mental, optei pelo método quantitativo, em que não teria que entrevistar as vítimas. E também por achar que as pessoas questionariam menos a validade do meu trabalho.

Deu certo, mas foi um processo muito doloroso, principalmente por causa dos números alarmantes. Ao longo da pesquisa, mesmo sem saber nome, história de ninguém, tive momentos difíceis, em que eu só chorava.

Mesmo hoje, com uma exposição maior dos casos de abuso, os atletas ainda têm dificuldade em denunciar?
Sim, é um sistema difícil de combater. Quando alguém me diz: "Joanna, li tua história e você me encorajou a denunciar'', pergunto: 'Qual é a sua rede de apoio?' Denunciar não é o começo do fim. Pode ser o começo de um buraco muito profundo. Você pode ser questionada por pessoas próximas, ter que ficar frente a frente com o agressor, negando tudo, te acusando de mil coisas.

A maioria não tem a justiça que procura, que é a punição, então somos obrigadas a procurar justiça de outras maneiras. É por isso que luto por um esporte seguro, faço pesquisa, dou palestra, trabalho voluntariamente num Conselho de Ética. Trazendo justiça para outras histórias, de certa forma, trago a justiça que não tive para a minha própria história.

E quando falamos de abuso, não se limita apenas ao sexual. Existem diversas formas graves e nem sempre tão simples de identificar. Como é isso dentro do esporte?
Mesmo para mim, mulher feminista, esse entendimento demorou para vir. Além da sociedade patriarcal e misógina que a gente vive, o esporte tem estruturas de poder muito peculiares. E no alto rendimento, nesse lugar de autoridade, as pessoas são, no geral, homens. Diariamente chegam para mim histórias de pessoas que a gente respeita, mas são extremamente abusivas, como treinadores, dirigentes. Por outro lado, os atletas estão questionando mais essa violência. Ninguém precisa de um ambiente violento e nocivo para atingir bons resultados.

A Lei Joanna Maranhão (12.650/2012) mudou o prazo de prescrição de abuso sexual de crianças e adolescentes, que passou a ser contado a partir da data em que a vítima completa 18 anos. Como você vê hoje essa medida, mais de dez anos após ter entrado em vigor?
A lei é importante porque traz a vivência das vítimas para o ambiente jurídico, a compreensão de que é muito difícil verbalizar o abuso sofrido antes dos 18 anos. Por outro lado, a cada dia que passa, a denúncia fica mais velha e você tem menos provas. Na prática, o tratamento nos sistemas de denúncia é horrível, principalmente com as mulheres, as maiores vítimas de abuso. Ouvimos: 'Por que você está falando só agora? Tem alguma prova?'

Em abril deste ano, você foi a primeira mulher eleita para o Conselho de Ética do Comitê Olímpico Brasileiro. O que você faz?
Somos cinco pessoas para lidar com os casos. Cada processo legal, que conta com oitivas de todos os envolvidos e testemunhas, leva meses. Não estamos dando conta do número de denúncias que estão chegando.

Nas denúncias sexuais, a vítima pode demorar muito a falar. Então, é difícil ter prova física, cabal. Isso não significa que o Conselho não possa investigar ou não deva dar suporte. Ainda que você não possa punir o abusador, alguma coisa precisa ser feita. Se o ambiente esportivo falhou com aquela pessoa, na sua função de proteger e promover uma prática segura, tem algo errado.

Como garantir um sistema mais eficiente e justo para lidar com as denúncias?
Todo mundo fala em integridade no esporte, mas a maioria das medidas depende muito mais das instituições do que das pessoas vulneráveis. Qualquer trabalho de integridade tem que começar pelas margens: mulheres, pessoas negras, comunidade LGBTQIA+, pessoas com deficiência. São as pessoas, no geral, mais afetadas. A gente tem que começar pelas pessoas, não mais defender as instituições.

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