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'Salvamos muitas vidas', diz médica que rastreou síndrome ligada ao câncer

Maria Isabel Achatz, finalista do Prêmio Inspiradoras na categoria Inovação Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

Colaboração para Universa

10/08/2022 04h00

No final da década de 1990, Maria Isabel Achatz cursava o 5º ano da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC, em Santo André (SP), quando atendeu uma paciente que havia tido cinco tumores diferentes, um aparentemente sem relação com o outro, e um histórico familiar de câncer. Intrigada, a estudante de medicina foi buscar informações nos livros da biblioteca. Encontrou, então, um artigo que descrevia uma síndrome rara que levava ao aparecimento de tumores sucessivos. Era a síndrome de Li-Fraumeni, que naquela época tinha sido diagnosticada em apenas 200 pessoas no mundo. "'E você acha que encontrou uma aqui?', disseram meus orientadores, que não acreditaram", conta.

O interesse da estudante pela genética só aumentou com aquele caso e ela passou a querer saber mais também sobre oncologia. Assim, decidiu se especializar em oncogenética e dedicou toda a pesquisa posterior, no mestrado e no doutorado, a investigar a síndrome. Até agora, Maria Isabel, que é uma das finalistas do Prêmio Inspiradoras, na categoria Inovação em câncer de mama, já diagnosticou mais de 700 pessoas no país, 450 delas só desde 2018. Acompanha todas de perto, mesmo aquelas sem condição financeira de arcar com os custos.

Ela também se articulou para encaminhar pacientes com a síndrome para outros centros de referência no país, como os hospitais de clínicas da USP de Ribeirão Preto e o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Encontrar essa alteração nos permitiu salvar muitas vidas. Antes, quando as pessoas recebiam o diagnóstico de que tinham a síndrome, era como se recebessem uma faca no estômago. Maria Isabel Achatz

Em conjunto com pesquisadores de outros países, Maria Isabel desenvolveu um protocolo para acompanhar os pacientes com a síndrome. "Hoje podemos saber o grau de risco que cada um tem para desenvolver determinado câncer e isso permite estabelecer estratégias de diagnóstico precoce e cura", diz Maria Isabel.

No caso do câncer de mama, que é o mais comum para as mulheres, a indicação é que sejam feitos exames de imagem a cada seis meses. Para as que apresentam probabilidade ainda maior de desenvolver a doença, o protocolo prevê a cirurgia redutora de risco. Como o Brasil tem características próprias, ela também elaborou a primeira recomendação brasileira sobre o diagnóstico e o manejo do câncer de mama e de ovário hereditários no país. "Mesmo sem acesso a teste genético, um médico em Roraima encontra uma paciente com câncer de mama aos 30 anos, cuja mãe morreu da doença, tias e avós também tiveram, ele vai saber fazer um diagnóstico clínico e tomar as decisões de como acompanhar aquela paciente", explica.

Uma síndrome nem tão rara assim no país

Descoberta em 1969 pelos americanos Frederick Pei Li e Joseph Fraumeni Jr., a síndrome está relacionada a mutações no gene TP53. Chamado de "guardião do genoma", esse gene tem a função de reparar o DNA quando alguma célula sofre um erro ao passar pelo processo de divisão, impedindo a formação de tumores. A alteração no TP53, no entanto, compromete a sua capacidade e aumenta as chances de desenvolver sucessivos cânceres ao longo da vida.

A chance de um filho herdar a mutação do pai ou da mãe é de 50%. O risco das pessoas com a síndrome desenvolverem um câncer varia entre homens e mulheres. Entre eles, 48% têm algum tipo de tumor. Já entre as mulheres, 80% apresentam, pelo menos, câncer de mama. "No início das pesquisas, víamos mulheres muito jovens, de 20, 22 anos, desesperadas pensando quando seria a vez delas. Minha vida profissional inteira foi dedicada a esses pacientes, a entender o que acontecia aqui no Brasil, onde há tantos casos", diz a geneticista.

A origem no século 18

No primeiro ano de pesquisa, em 2004, Maria Isabel diagnosticou 35 famílias no Brasil com a síndrome de Li-Fraumeni. O número era alto, levando em consideração o número de pessoas com a mutação no resto do mundo. Ao apresentar os dados em um congresso na França, chamou a atenção de um representante da Organização Mundial de Saúde (OMS). Em 2005, teve a oportunidade de aprofundar sobre os casos como cientista visitante da agência internacional para pesquisa de câncer da OMS, em Lyon. Mas as diferenças da síndrome no Brasil a fizeram ir novamente em busca das famílias para achar uma explicação.

Uma das pacientes diagnosticadas aceitou levá-la para testar mais gente da família, na cidade de Ibiúna, interior de São Paulo. Junto com outros dois pesquisadores, ela colheu amostras de quase 30 pessoas. Na hora de ir embora, a matriarca do grupo mencionou um avô tropeiro: "Isso deve ser coisa dele, que viajava, demorava uns seis meses e deixou um monte de filhos por aí".

No século 18, os tropeiros saíam de São Paulo rumo ao sul, até chegar a Porto Alegre. As famílias que a pesquisadora havia diagnosticado até aquele momento viviam todas nesse eixo. A história inusitada precisava de comprovação científica e a pesquisadora fez um estudo equivalente a um teste de paternidade, mas mais aprofundado, capaz de mostrar a relação genética entre as famílias, que não eram aparentemente relacionadas. "Assim confirmamos que havia um fundador para esse fenômeno no Brasil", explica.

Vidas salvas pelo rastreamento e o diagnóstico precoce

Maria Isabel se tornou referência mundial na síndrome de Li-Fraumeni. Ela desenvolve projetos em parceria com diversos centros internacionais e chegou a substituir o próprio Fraumeni na divisão de epidemiologia e genética do câncer do Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, em 2016, quando ele se aposentou. De volta ao Brasil, em 2018, desde então a geneticista coordena a unidade de oncogenética do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

"Uma pioneira na genética do câncer, referência nacional e internacional sobre a síndrome de Li-Fraumeni. É assim que vejo Maria Isabel. Antes da sua pesquisa, todos achavam que era algo muito raro, mas hoje sabemos que é bastante comum no sul e sudeste do Brasil", observa Patricia Ashton-Prolla, médica geneticista, professora da UFRGS e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que participou de pesquisas sobre a síndrome ao lado de Maria Isabel. "Além disso, ela tem um trabalho muito próximo com as famílias e os pacientes, que é um cuidado que vai além da parte médica. E também tem um papel importante na formação de novos profissionais na oncogenética no país", diz.

Maria Isabel quer ver os testes genéticos e o rastreamento adotados como estratégia de saúde pública. Ela acaba de publicar um estudo de custo e eficácia na Lancet, uma das mais importantes publicações médicas do mundo, que pretende levar à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). A ideia é comprovar que vale a pena investir em rastreamento e teste genético. Só no caso da síndrome de Li-Fraumeni, a estimativa é de que esteja presente em 0,3% da população do sul e sudeste, o que significa mais de 350 mil pessoas. Metade delas pode desenvolver câncer. "O governo precisa entender que rastreamento e teste genético podem trazer vida para as famílias. E, claro, economia para os gastos públicos", afirma.

Sobre o Prêmio Inspiradoras

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias: Conscientização e acolhimento, Acesso à justiça, Inovação, Informação para a vida, Igualdade e autonomia, Influenciadoras, Representantes Avon. Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, basta consultar o Regulamento.

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