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Mãe viu filho ser expulso de loja de luxo: 'Racismo é um problema de todos'

Priscilla Celeste com o marido, Roni, e o filho caçula, Renan, de 16 anos Imagem: Reprodução/Instagram

De Universa, em São Paulo

04/08/2022 04h00

Quando se deparou com as imagens de Giovanna Ewbank enfrentando uma mulher que praticou racismo contra seus filhos no último sábado (30), em Portugal, a tradutora Priscilla Celeste, 62 anos, sentiu o coração apertar —para ela, foi impossível não lembrar que, há quase 10 anos, se encontrava na mesma posição: seu filho Renan, então com 6 anos, mesma idade de Bless, um dos filhos de Giovanna, foi expulso de uma agência de carros de luxo no Rio de Janeiro depois de ser confundido com uma criança em situação de rua. Ela e o marido são brancos e Renan é negro.

"Não tem como essa situação não ser um gatilho para famílias com filhos negros. Fico com o coração apertado de ver que, quase uma década depois, nossos meninos e meninas continuam vítimas da vilania do racismo", diz Priscilla.

O caso, que aconteceu em 2013, virou notícia em muitos jornais e programas de televisão —o casal chegou a dar entrevista ao "Jornal Hoje", ao "Encontro", ao "Fantástico" e até a veículos de fora do país. Mas hoje, em entrevista a Universa, Priscilla afirma que, assim como Giovanna Ewbank, só foi ouvida graças ao privilégio de raça e de classe.

"Giovanna Ewank e Bruno Gagliasso têm uma representatividade enorme. É muito importante reconhecer a amplitude da nossa voz enquanto pessoas brancas. Quantas mães negras se calam com medo da coisa se inverter? O racismo é o crime perfeito: a coisa se inverte com muita facilidade e a vítima passa a ser a descontrolada, a agressiva."

Desde então, a tradutora e o marido, Roni Munk, "mergulharam de cabeça" no assunto e passaram a se posicionar de forma ativa contra o racismo, cobrando a mesma posição de amigos e das escolas em que Renan estudou. No último mês de abril, o casal lançou o livro "Do outro lado, do lado de cá" (sem editora), dividindo os erros e acertos de uma família branca na educação de um filho negro e discutindo o papel dos brancos no combate ao racismo.

Eu não sou uma mulher negra, não sofri os impactos do racismo na minha vida, mas eu tenho um filho preto e isso me dá voz pra falar da minha dor quando o machucam.

"A gente não se posiciona diante do racismo num estalar de dedos, é um processo, e a gente vem nesse processo há 14 anos, motivados pelo amor ao nosso filho —mas isso não significa que quem não tem um filho negro não deve se envolver. O racismo é um problema de todos."

Imagem: Arquivo pessoal

'Luta contra o racismo virou propósito'

Em janeiro de 2013, Priscilla, Roni e o pequeno Renan, então com 6 anos, foram a uma agência da BMW na Barra da Tijuca, bairro de classe alta na zona oeste do Rio de Janeiro. O menino, que se afastou dos pais por alguns minutos, foi expulso da loja pelo gerente.

Segundo reportagem do UOL publicada na época, diante do espanto da criança, o funcionário teria insistido em expulsá-la da loja. Questionado pelo casal, ele teria respondido: "Eles pedem dinheiro, incomodam os clientes. Tem que tirar esses meninos da loja". Ao ser informado de que Renan era filho dos clientes que estavam à sua frente, o gerente teria ficado "completamente sem ação", segundo contou Priscilla, na época.

Aquela não foi a primeira vez que a família lidou com racismo contra Renan, mas, foi o episódio mais marcante por ter sido "muito violento".

Desde que o Renan chegou, pequenininho, aos 2 anos, a gente já ouvia no círculo de amigos comentários como 'ele nem é tão preto assim' ou 'ele tem traços finos'. Mas, quando aconteceu na BMW, foi tão violento que a gente sentiu essa indignação.

"Quando fomos convidados para dar entrevistas sobre isso, pensamos: 'Vamos nos expor?' Mas decidimos falar porque ele estava crescendo e precisava saber que estávamos do lado dele sempre, comprando essa briga. E foi transformador para nós. Ali entendemos que, como pessoas brancas, precisamos nos posicionar. Isso é que é ser antirracista."

Dois anos depois, a agência foi condenada a pagar uma indenização por danos morais de 22 salários mínimos (na época, cerca de R$ 16 mil), valor que foi doado pela família a uma instituição que acolhe crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

"Até então, a gente não tinha dimensão do racismo e dos impactos dele na vida das pessoas —individual e coletivamente", lembra. "Mas, a partir dali, a gente começou a estudar, entender, e de fato virou um propósito. Entendemos que era preciso mergulhar de cabeça nesse assunto para criar o nosso filho, e foi o que a gente fez."

Priscilla e Roni começaram a cobrar uma postura antirracista dos amigos, das escolas, e ouviram diversas vezes que estavam exagerando, que a defesa que eles faziam do filho "era mimimi".

"Diziam que o Renan estava protegido por ser nosso filho, mas a situação socioeconômica não blinda meu filho do racismo, assim como não blinda os filhos da Giovanna Ewbank e nem jogadores de futebol milionários", fala.

Roni, Priscilla Celeste e Renan, filho mais novo do casal, no lançamento do livro "Do outro lado, do lado de cá" Imagem: Arquivo pessoal

'Ele não vai até a esquina sem documentos'

Priscilla e Roni já tinham outros quatro filhos —todos brancos— quando Renan foi adotado, há 14 anos. A Universa, ela conta que, com o tempo, percebeu que educar o caçula, uma criança negra, seria uma experiência de maternidade completamente diferente.

"Ele tem 16 anos, está começando a sair sozinho, mas ele não vai até a esquina sem os documentos. Eu não tinha essa preocupação com os meus outros filhos", conta. "Eu não posso esconder meu filho do mundo, ele tem que viver, mas a gente está sempre assustado. Aqui em Ipanema, onde moramos, ele é quase sempre o único negro da turma e já sofreu racismo diversas vezes."

Priscilla conta que, quando Renan tinha cerca de 14 anos, a família estava voltando da praia e o menino andava um pouco à frente dos pais, até que uma senhora abordou o casal e pediu que tomassem cuidado, porque "aquele menino" poderia assaltá-los. "Sabe quando você leva aquela porrada? Na hora, pensei: 'Pronto. Meu filho foi promovido. Ele agora não é mais um menino pedindo dinheiro, ele é um potencial assaltante."

Em outra ocasião, Renan estava no clube que a família frequenta há anos, fazendo aula de tênis, e foi confundido com um funcionário que recolhe as bolinhas. O professor de tênis corrigiu a mulher que o confundiu, dizendo que ele era sócio do clube, mas, dois dias depois, na mesa de jantar, quando contou o que aconteceu aos pais, o menino desabafou: "Mãe, até quando vou ter que provar que sou sócio desse clube?"

"Ele frequenta o local há 14 anos. Quando eu passei por isso com nossos filhos mais velhos? Nunca. Porque a eles é permitido estar nesses espaços, enquanto o Renan incomoda, como se o lugar dele fosse outro."

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