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'Para dor na alma não tem químio', diz paciente há 11 anos com câncer

Ana Michele Soares, finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Informação para vida - Julia Rodrigues/UOL
Ana Michele Soares, finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Informação para vida Imagem: Julia Rodrigues/UOL

Colaboração para Universa

03/08/2022 04h00

"Venceu a batalha contra o câncer". Este é um chavão quando contamos histórias sobre um câncer que foi debelado. Apesar de parecer inofensiva, inspiracional, positiva, este tipo de expressão pode ser problemática. E quem nunca conhecerá a cura do câncer, como se sente?

Essa foi a sensação que a jornalista Ana Michele Soares, 39, sentiu quando descobriu que teria que conviver com a doença para sempre.

Não morri, mas não vou ficar curada. Afirmar que uma pessoa morreu porque "perdeu" uma batalha contra o câncer invalida a vida toda dela. Eu estou vencendo há 11 anos, todos os dias em que eu me levanto da cama.
Ana Michele Soares, coordenadora da Casa Paliativa

Finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Informação para a vida, a criadora de conteúdo convive com o câncer desde os 28 anos. Ela é a coordenadora da Casa Paliativa, um espaço onde pacientes de doenças graves que ameaçam a continuidade da vida e cuidadores trocam experiências e aflições.

O projeto foi criado há dois anos, parte da Casa do Cuidar, centro de formação de profissionais paliativistas em São Paulo (SP). Inicialmente, a Casa Paliativa era virtual, uma comunidade no Facebook com mais de 2,2 mil participantes. Neste ano, abriu uma sede física no bairro Santa Cecília, centro da capital paulistana.

Em outubro de 2021, o grupo fez o 1º Fórum Nacional de Cuidados Paliativos, em um evento para pacientes. Mais de 1500 pessoas participaram online simultaneamente. Semanalmente, os participantes do grupo têm aulas sobre as diversas dimensões do sofrimento: desde questões emocionais até aspectos físicos.

"Não são todos que têm acesso a uma equipe multidisciplinar. Se eles ficarem munidos de algumas informações, podem questionar os seus médicos, suas equipes, mesmo que não tenham acesso a profissionais paliativistas", explica Ana Michele.

Nesses encontros, fala-se, por exemplo, sobre os efeitos colaterais dos tratamentos e como administrá-los. "Nem todo mundo sabe que não é normal ficar sentindo dor, vomitar ou ter insônia, por exemplo", diz.

Essas informações fazem, indiretamente, com que os próprios pacientes promovam a mudança em suas regiões, divulgando o que descobriram de novo. "Quando falo de cuidados paliativos, não estou falando de suspender o tratamento, mas dar às pessoas a possibilidade de fazer escolhas, oferecer informações para que ela possa entender como quer viver a partir daquele momento", fala a jornalista.

Uma nova vida

Ana Michele descobriu o câncer ainda na fase inicial, então não chegou a ficar muito impactada. "Tinha outras demandas que me preocupavam mais na época", afirma ela, que então vivia um relacionamento abusivo. Seu objetivo principal era sair daquela situação.

Três anos e meio após o tratamento, em 2015, ela descobriu uma metástase no fígado em um exame de controle. "Foi quando compreendi que seria um tratamento contínuo. Não estava mais falando sobre cura, mas sobre expectativa de vida, sobrevida. Pensei: 'o que fiz com o meu tempo?'"

Não foi o médico que contou para Ana Michele que ela teria que passar a vida fazendo tratamento. "Não tive essa comunicação. Achei que ia tratar, resolver e seguir em frente. Mas comecei a pesquisar, vi que na minha ficha estava escrito algo como tratamento paliativo", diz a jornalista, que passou a fazer pesquisas para compreender a própria condição.

"A falta de informação atrapalhava até a minha qualidade de vida. A partir do momento em que entendi qual era a minha situação, pude fazer escolhas."

Foi assim que Ana Michele descobriu os cuidados paliativos. "Eles olham para a dimensão física, emocional, espiritual, social e familiar. Vendo e dando atenção a esses aspectos, fica mais `fácil` lidar com esse caminho de uma doença grave que ameaça a continuidade de sua vida", explica a finalista. Ela defende que este tipo de abordagem deveria começar assim que a pessoa recebe o diagnóstico, "A partir do momento que há sofrimento, ele precisa ser bem manejado. E o diagnóstico já é um sofrimento. Você experimenta várias sensações sobre sentido de vida, culpa, castigo, religiosidade, existência."

Ana Michele criou a própria equipe. A primeira especialidade que priorizou foi o apoio psicológico. "Até o momento falavam apenas de quimioterapia, mas eu fui atrás do que estava doendo em mim. Eu tinha uma grande dor porque estava questionando o meu tempo. Era um sofrimento emocional para o qual muita gente não olhava. Você consegue conviver com dor física porque há medicamento, mas, para a alma, não tem quimioterapia ou dipirona que resolva".

Além disso, Ana Michele continua com a quimioterapia para evitar a progressão do câncer. Faz o tratamento a cada quinze dias. Em uma semana recebe os remédios e, na outra, ganha uma folga. Estima já ter feito mais de 150 sessões. "Eu vou adotando outras abordagens de acordo com o que preciso no momento. Não é fácil, hoje tive vontade de chorar porque um exame atrasou. É cansativo".

Papo de morte na internet

Logo que ficou sabendo que teria que conviver com o câncer, Ana Michele correu para a internet à procura de pacientes como ela. Queria saber como elas viviam. Infelizmente, ela não se identificava com nenhuma história. "Até quem falava um pouco sobre isso, falava com vergonha. E esse comportamento diz muito da nossa sociedade. É como se eu tivesse fracassado porque não poderia entregar para pessoas essa jornada de mulher vitoriosa e curada".

Como não havia quem falasse sobre o assunto nas redes sociais, Ana Michele decidiu compartilhar a sua experiência no Instagram. Em seu perfil, discute e informa sobre cuidados paliativos, mas também fala sobre a morte com leveza, dá risada. Ganhou notoriedade, escreveu o livro "Vida inteira: Uma jornada em busca do sentido e do sagrado de cada dia", de 2021, e, hoje em dia, tem mais de 150 mil seguidores.

"O maior convite que você tem para falar sobre a vida é compreender que existe um fim. É um chamado para autoconhecimento, para a existência. Eu estou viva e o que vou fazer com isso?", afirma a finalista.

Porém, além do medo de soar mórbido, há quem tenha vergonha de ter "perdido a batalha". "Não me envergonho de estar doente. Qualquer pessoa do meu lado pode estar doente, quem está lendo pode estar doente. Uma pessoa que você ama pode adoecer. É algo que acontece na vida", diz a jornalista.

Ana Michele conta que escreveu o livro em homenagem a uma amiga de quem foi cuidadora no fim da vida. Morte nunca havia sido um tabu para elas. "Não queria chegar ao fim da vida falando de arrependimentos. Do que gostaria de ter feito, das decisões que gostaria de ter tomado."

Uma casa extraordinária

Com o sucesso nas redes sociais, Ana Michele recebia muitas mensagens de outras pessoas na mesma situação que ela e a amiga. "A demanda começou a ficar muito alta, porque já não conseguia dar suporte para pacientes". A finalista sempre teve a vontade de criar um espaço de troca entre pessoas e cuidadores de pacientes com doenças graves que ameaçam a continuidade da vida. "Além do câncer, há vários diagnósticos que podem ser beneficiados pelos cuidados paliativos e queria ter esse espaço seguro para que a gente pudesse falar sobre tudo o que as outras pessoas não dão conta de ouvir".

Ela conheceu, em 2018, a médica Ana Cláudia Quintana, uma das sócias da Casa do Cuidar. "A Ana Michele, como porta-voz dos pacientes, representa uma postura revolucionária na formação do profissional de saúde, na conscientização de uma sociedade que exclui o paciente no momento em que ele tem o diagnóstico de uma doença grave como se ele se tornasse uma pessoa inválida de tomar decisões, ou incapaz de enfrentar a própria jornada de adoecimento, tratamento, de finitude. Ela faz com que outros pacientes percebam que os cuidados paliativos podem ser um propósito de vida, não de morte. Aprendem que podemos viver muito melhor se formos bem cuidados, não apenas direcionado à doença, mas ao ser humano que está com a doença."

Ambas fizeram colaborações, incluindo aulas ministradas por Ana Michele, e perceberam que tinham um interesse em comum. "A doutora Ana Cláudia trabalha com a capacitação de profissionais em cuidados paliativos, mas queria também fazer um "puxadinho" para pacientes. Ela não tinha, no entanto, quem pudesse tocar esse projeto. Aí foi meio que juntou a fome com a vontade de comer", brinca a finalista.

No grupo do Facebook, pacientes e cuidadores têm espaço para conversar e trocar experiências. "É uma comunidade surreal de bonita, porque essas pessoas com doenças graves finalmente se sentem pertencendo. Não é esquisito falar sobre medo de morrer, sofrimento emocional. Sobre o medo de deixar os filhos. Elas começaram a ter acolhimento", diz a finalista.

"É muito bonito o que tem acontecido dentro da Casa Paliativa, porque permitiu que assumíssemos o protagonismo do que estamos vivendo, que realmente entendamos que também é nossa responsabilidade a forma como queremos viver esse tempo, independente do quanto que ele seja. Cuidado paliativo não é sobre morrer, mas sobre como viver até lá. E esse `lá`, minha filha, ninguém sabe".

Sobre o Prêmio Inspiradoras

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias: Conscientização e acolhimento, Acesso à justiça, Inovação, Informação para a vida, Igualdade e autonomia, Influenciadoras, Representantes Avon.

Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, basta consultar o Regulamento.

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. O foco está nas seguintes causas: enfrentamento às violências contra mulheres e meninas e ao câncer de mama, incentivo ao avanço científico e à promoção da equidade de gênero, do empoderamento econômico e da cidadania feminina.