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'Curiosidade de transar com você': gordas relatam 'fetichização' em apps

A modelo Laiane Morais, de 21 anos, relata ter sofrido com assédios nas redes sociais - Acervo pessoal
A modelo Laiane Morais, de 21 anos, relata ter sofrido com assédios nas redes sociais Imagem: Acervo pessoal

De Universa, em São Paulo

24/07/2022 17h47

"Cara, eu nunca transei com um cara gordo, mas tenho muita curiosidade. Tipo, não me vejo namorando um cara gordo, até porque malho demais para isso. Mas pra transar acho que seria de boa. Bora?"

Essa é uma das mensagens que o promotor de loja Vicktor Alves, de 26 anos, recebeu de um desconhecido no aplicativo de relacionamento Grindr.

Viktor mora em Brasília e conta que está acostumado com este tipo de abordagem. "Não digo diariamente, mas a frequência é muito grande. Geralmente, fico sem palavras, sem reação. Sei que eu não deveria estar acostumado, mas é difícil reagir, costumo bloquear a pessoa na hora", afirmou a Universa.

"As pessoas falam como se fosse um favor se relacionar com você. Essa fetichização não envolve só pessoas gordas, mas pessoas pretas, trans, travestis. Servimos para matar o desejo das pessoas, mas não somos validados para o afeto." - Vicktor Alves

Mensagem recebida por Vicktor Alves no Grindr - Reprodução - Reprodução
Mensagem recebida por Vicktor Alves no Grindr
Imagem: Reprodução

O ambiente Grindr, em que não é necessário dar um "match" antes da conversa e é possível criar perfis anônimos, permite, na opinião de Vicktor, este tipo de abordagem. "As pessoas usam o aplicativo como se elas criassem um personagem em uma terra sem lei porque, se a pessoa me mandar uma mensagem como aquela e me bloquear, eu não tenho nenhum tipo de acesso de quem é você. É uma liberdade que acaba disseminando este tipo de preconceito."

A modelo Laiane Morais, de 21 anos, conta que, nas redes sociais, passa frequentemente por situações parecidas com a relatada no Twitter.

"Recebo inúmeras mensagens do tipo 'nossa, você me desperta uma curiosidade'. Mas me sinto como qualquer outra pessoa. Meu sobrepeso nunca foi um problema; minha barriga caída nunca me impediu de usar um biquíni. Esse tipo de comentário se torna chato, mas tento não ligar e sim ensinar que mulher gorda pode sim ser amada pelo seu corpo e suas personalidades", diz a modelo.

Ela conta que este tipo de fetichização com o corpo é semelhante ao que mulheres trans passam. "É um fetiche de saber qual a sensação de estar com uma pessoa que não se identifica com o seu gênero, o fetiche da mulher gorda e questionamentos como 'será que cabe? Será que aguento? E essa barriga?' E essas mulheres nunca são vistas com romantismo. Primeiro, vem o fetiche de saber as curiosidades."

"Mulheres gordas passam sim por esse tipo de situação porque nunca somos desejadas o suficiente." - Laiane Morais

A professora Agnes Arruda, pesquisadora em Comunicação e Mídia e idealizadora do projeto "Pequeno Dicionário Antigordofóbico", afirma que, em uma sociedade em que corpos padrões são os desejados, os gordos, principalmente de mulheres, são colocados em uma categoria de fetiche para despertar desejo.

BBW, sigla para Big Beautiful Women em inglês, que em tradução livre significa "mulher grande bonita", estava entre os termos mais pesquisados em sites pornográficos, segundo a análise anual do site Pornhub de 2019.

"É como se ela fosse uma coisa, uma não-mulher, e só na categoria de 'gordinha' ou 'bbw' que ela pode ser desejada." - Agnes Arruda

"Eu mesma já passei por isso muitas vezes. Em aplicativos de relacionamento é bem comum. Os caras acham que você topa qualquer coisa porque, no senso comum, ninguém quer ser visto com uma gorda, então é como se eles estivessem fazendo uma espécie de favor", afirma.

"Isso leva a uma postura de dominação e abuso, inclusive, uma vez que escondido acaba valendo tudo, mesmo que a mulher não queira, mas ela se vê forçada a aceitar, caso contrário, ficará sempre sozinha", completa.

A filósofa Malu Jimenez pesquisa gordofobia desde 2014 e é autora do livro "Lute Como uma Gorda: Gordofobia, resistências e ativismos". Em seu Instagram, a pesquisadora publica o que ela chama de "fotografias de resistência", com objetivo de discutir corporalidades dissidentes.

"Por causa disso, muitas vezes recebemos fotos de pênis de homens como se eu já estivesse pronta, inclusive, para ter uma relação sexual com essa pessoa. É a objetificação do meu corpo completamente, não tem nenhum 'oi' ou 'olá'", conta a pesquisadora.

A pesquisadora Malu Jimenez estuda gordofobia e relata também receber mensagens constrangedoras nas redes - @juqueirozfotografia - @juqueirozfotografia
A pesquisadora Malu Jimenez estuda gordofobia e relata também receber mensagens constrangedoras nas redes
Imagem: @juqueirozfotografia

"Existe um desejo sexual com esse corpo mas ele não pode assumido perante a sociedade. Existe uma crescente busca por pornografia com corporalidades gordas, mas dentro de quatro paredes ou no computador", diz a filósofa.

"A fetichização é uma discussão grande porque toda sexualidade e construção do desejo, dentro da lógica heteronormativa, desumaniza alguns corpos e enaltece outro. O mais grave dessas fetichizações é o corpo que só serve para dar prazer e não serve socialmente para namorar, trabalhar para ser professor, para ser o que ele quiser. Só serve para satisfazer o desejo", diz a pesquisadora.

"Gordofobia estrutural é um estigma que desumaniza a pessoa, não é só no fetiche sexual, mas quando ela precisa usar o transporte público, ela não consegue; no hospital, não tem maca ou aparelho de pressão ou ressonância; na escola, não tem cadeira. A por estar institucionalizada em vários lugares, essa pessoa é desumanizada. E acontece isso também no âmbito sexual, quando existe essa construção de fetiche de que 'para transar tudo bem', mas para andar de mãos dadas, não".